Episódio 26 – A Revista Técnica

“Tenho saudades da responsabilidade de fazer sair um número todos os meses. Era muito motivador e gerava muita adrenalina porque as coisas não eram fáceis”. Estamos no período entre 1968 e 1972 através das palavras de Guilherme Arroz, professor aposentado do Técnico, que também foi redator, chefe de redação e diretor da revista Técnica durante o mesmo período. “Fazer sair a revista para rua e receber o primeiro pacote de revistas que vinha da tipografia. Folhear aquilo dava um gozo do caraças”, continua. Quando chegou à Técnica encontrou uma equipa de cinco estudantes do Técnico e dois funcionários, incluindo “o Sr. Rodrigues, o mais antigo, que eram a espinha dorsal do seu funcionamento e passavam o conhecimento de equipa em equipa”. Garantiam a continuidade do projeto, que via os estudantes do Técnico sempre a rodar, assim como geriam assinaturas, anúncios e ensinavam os novos membros a fazer revisões de provas, a identificar os autores com quem falar e como diversificar e encontrar equilíbrios entre as áreas científicas.
Estes quatro anos são uma das muitas fatias da história desta mítica revista dos alunos do Técnico, cuja publicação durou entre 1915 e 1998, primeiro sobre a chancela de “Técnica Industrial” (de 1915 a 1917, com publicação interrompida pela 1.º Guerra Mundial) e depois já como Técnica, a partir de 1925. Na Biblioteca do Técnico estão 498 números da revista, também disponibilizados online no site da Associação dos Estudantes do Técnico. No seu interior contam-se cerca de 2000 artigos escritos por engenheiros, arquitetos e doutores, incluindo dez assinados por Alfredo Bensaúde, fundador do Técnico, mais de 500 artigos escritos por professores maioritariamente do Técnico e cerca de 400 escritos por estudantes. “Isto dá credibilidade à revista. Temos aqui 498 números da revista que são riquíssimos do ponto de vista da história da Engenharia, do Ensino e do Instituto Superior Técnico”, resume Isabel Marcos, coordenadora da Biblioteca do Arquivo e Museus do Instituto Superior Técnico.

“No início, a revista era dos estudantes do Técnico e tinha muito de notícias sobre o Técnico, sobre o ensino, tinha muitos artigos de professores orientados para os estudantes. Ao longo do tempo começou a ter artigos de caráter mais científico, mais desligado do interesse imediato dos estudantes. Na altura em que entrei, esse já era o aspeto prioritário. Eram artigos, escritos por professores e engenheiros, muitas vezes do Técnico, que relatavam os seus trabalhos científicos e de engenharia”, recorda Guilherme Arroz.
As coleções da revista estão à guarda da Biblioteca do Técnico, que também faz a medição entre informação que está nos artigos e o público. Em curso está também um projeto de divulgação digital do conteúdo da revista. “Interessa-me que as pessoas rapidamente possam aceder a conteúdos. Se quiserem encontrar algo sobre a mecânica do solo, automaticamente saibam que vão encontrar artigos sobre isso neste, neste e neste número… Se quiserem artigos escritos por um professor, saibam imediatamente onde é que podem estar”, resume Isabel Marcos. A recuperação de todos os artigos, para indexação e classificação – “um trabalho megalómano” – está em curso e prevê-se que fique concluída até 2024. “A recuperação de todos os títulos e autores já está feita e agora queremos posteriormente a recuperação do conteúdo”, explica.
Enquanto isso acontece, os exemplares da revista repousam, com todas as “condições ambientais, também limpeza, de forma a preservar aquele espólio documental”, na cave do Pavilhão de Eletricidade, junto à Torre Norte do Técnico, que tem guardados cerca de 2500 títulos de publicações periódicas que foram adquiridas pelo Técnico ao longo dos anos.

A revista Técnica, como explica Guilherme Arroz, “nunca chegou a ter o caráter de uma revista científica clássica, mas em contrapartida também já não era uma revista dos estudantes do Técnico, era mais abrangente. Tinha pessoas que queriam dar a conhecer o seu trabalho em Portugal, ou por razões curriculares ou para divulgarem o seu trabalho”. Perante a evolução da investigação científica internacional e nacional, acabou por perder espaço e extinguir-se em 1998. “Hoje em dia o que importa às pessoas é publicar, publicar, publicar, em revistas que têm referees, que são citadas e isso contribuiu diretamente para o currículo deles. A Técnica não tinha essa característica e portanto a partir de certa altura começou a ter menos interesse e a perder público. E nós não soubemos dar a volta a isso, não soubemos reencaminhar a Técnica para uma coisa diferente”, resume. E que volta poderia ter-se dado? “Faltou uma reformulação estratégica, que tanto poderia ser para uma revista científica ou uma revista de divulgação científica, como existe noutros países, voltada para o público em geral. Não há uma revista em Portugal de divulgação, no meu ponto de vista a Técnico podia ter evoluído para isso”, complementa.
Em novembro de 2021, contudo, o nome da revista voltou a ser impresso numa capa. Em versão totalmente digital, foi editada por iniciativa da Associação dos Estudantes do Instituto Superior Técnico. Na receita da nova formulação encontramos “artigos mais curtos, escrita mais simples, a revista em si ser montada de forma mais apelativa, para os estudantes terem mais interesse e quererem ler e conhecer o que é feito no Técnico”, como resume Madalena Caldas, estudante de Engenharia Química no Técnico, e que conduziu o processo de regresso da revista. Para além da alegria de ter participado nessa recuperação da revista, Madalena lida também com a “responsabilidade de não querer desonrar o que aconteceu no passado”. E para o futuro da Técnica, Guilherme Arroz aponta, no mínimo, uma necessidade: “Esta revista merecia, pelo menos, uma tese de mestrado, porque reflete muito a história do país numa certa fase, sobretudo na fase inicial da revista”.

Conteúdo complementar: Duas histórias e meia contadas por Guilherme Arroz e meia por Isabel Marcos

UM: Como era publicado um artigo na Técnica entre 68 e 72
«Eu era o redator [da área] de Eletricidade, olhava para os artigos. Não havia referees para analisar os artigos, era muito analisado à base de quem era o autor, qual era a sua credibilidade, qual era a diversificação daquele artigo relativamente a artigos recentemente publicados. Muitas vezes pegávamos no artigo, íamos ter com um professor do Técnico e dizíamos ‘há aqui um artigo que foi publicado’. Nem todos os artigos da Técnica eram de professores do Técnico. Era uma revista onde, por exemplo, investigadores do Laboratório Nacional de Engenharia Civil publicavam muito. Porque a Técnica fornecia separatas dos artigos e o laboratório estava muito interessado nas separatas, que depois circulavam lá dentro
Olhávamos para os artigos com algum bom senso e alguma ingenuidade, levávamos a alguns professores quando tínhamos algumas dúvidas sobre aquilo e a partir daí o artigo era aceite. Ia para a tipografia, recebíamos as provas da tipografia, fazíamos uma revisão de provas e na segunda fase mandávamos para o autor corrigir, se houvesse alguma coisa a corrigir. Às vezes os autores tentavam, nessa fas,e modificar o artigo e aí havia uma guerrazinha: ‘isto custa muito dinheiro’.
Nós eramos estudantes, não eramos propriamente especialistas naquelas matérias, nenhum de nós tinha o curso. Olhávamos para os artigos e apreciávamos por aquilo que nos interessava, pelo autor, pela instituição do autor, mas no fundo no fundo não tínhamos um processo muito trabalho de selecionar os artigos»

Dois: A revista Técnica e as visitas da PIDE
«Na Revista Técnica, os únicos ecos [da Agitação Estudantil] refletia-se nas alturas em que não conseguíamos publicar porque a Associação estava fechada. Havia uns meses em que gente saltava, compensávamos os assinantes nos anos seguintes. No trabalho concreto da revista nunca houve a tendência, por exemplo, para aproveitar a revista para fazer divulgação política ou sobre o movimento estudantil. Havia outras revistas para isso na associação. A revista nisso foi sempre muito independente. Na altura em que se faziam os relatórios anuais da revista, eles refletiam muito o que se passava na altura. Desde 1926 que houve resistência ao Estado Novo e desde essa altura que isso se podia ler nas entrelinhas dos textos dos relatórios. Na parte final, de facto houve ali algum isolamento para proteger a revista. Não era claramente um órgão de agitação política nem de agitação sobre o movimento estudantil.
Quando a revista não era publicada, escrevíamos “Por motivos alheios à nossa vontade…” e as pessoas sabiam quais eram os motivos.
Quando vejo o depósito [da Biblioteca] lembra-me o trabalho que dava arrumar periodicamente de cada vez que havia uma invasão da PIDE. A PIDE enterava e desmontava aquilo tudo completamente, virava os ficheiros do avesso, tirava as revistas para ver se havia alguma coisa lá por trás. Levávamos para aí seis meses para pôr aquilo direito.»

Três: As fotografias de capa da revista Técnica
«Aquilo que foi fascinante para mim foram as fotografias. E foi a preocupação que as várias direções tiverem em que fotografia não fosse aleatória, teve sempre a identificação ao longo dos anos do que ela era. Ela foi tão importante que até deu origem a artigos, que até era ela nos sumários a primeira indicação que aparecia, era tão fascinante que tinha sempre explicações detalhadas, que não interessava ao comum mortal, mas tinha sempre explicações sobre determinado motor que servia para aquele fim. Uma legenda nunca é assim.
Porque a finalidade desta revista reflete aquilo que era o ideal do Alfredo Bensaúde, que era um método pedagógico muito virado para a experiência, muito experimentado pelos alunos, e de facto a fotografia de capa reflete isso mesmo – uma fotografia de uma barragem de uma ponte, a construção do hospital de santa maria, a construção da ponte 25 de Abril, os silos, objetos – é fascinante». (Isabel Marcos)
«A fotografia era importante. Ou mais exatamente a capa era importante. Porque às vezes não eram fotografias, eram desenhos. Começaram a ser feitas simulações em computadores, gráficos obtidos por letras impressas numa folha grande por exemplo. Os gráficos demonstravam os avanços tecnológicos. Nas fotografias de capa da Técnico está a história da Engenharia Portuguesa. E a possibilidade de ir pesquisar e ver a importância que o Técnico teve no desenvolvimento industrial do país durante a maior parte do século XX» (Guilherme Arroz).

Ouvir também em: Spotify | Apple Podcasts | Anchor.fm

Categorias