Episódio 56 – O crânio de crocodilo

Os crocodilos são a espécie de todo o reino animal que conseguem fechar a boca com mais força. E há registos de que muitos crocodilos tenham cravado os dentes no território que hoje é Portugal (Alcobaça e Lourinhã), no período Jurássico Superior (há mais de 145 milhões de anos), um indício de que Portugal também já foi um território tropical. São dois factos aleatórios, apenas ligados pelas histórias despertadas pelo crânio de crocodilo que atualmente repousa no Museu Décio Thadeu (Museus de Geociências do Instituto Superior Técnico), no campus Alameda, em Lisboa. Com cerca de dois palmos de comprimento, o crânio pertencia a um crocodilo do Nilo, recolhido na floresta de Mayombe, em Angola. Entre a ponta do focinho e a ponta da cauda, o animal não teria mais de cinco de metros.
“Este exemplar não terá mais de 100 anos. Ainda é um rapazola considerando que geralmente trabalho com animais com cerca de 250 milhões de anos. Este ainda é muito jovenzinho para idade geológica, o que não deixa de ter um grande interesse. Qualquer espécie tem coisas interessantíssimas para revelar”. A consideração é feita por Ricardo Araújo, investigador na área da paleontologia do Instituto Superior Técnico, no Instituto de Plasmas e Fusão Nuclear (IPFN). Fala-nos a partir de uma das salas do Museu – “um pouco cristalizada no tempo, uma espécie de Museu dos Museus” -, rodeado de fósseis de crocodilos, porcos selvagens, antílopes, carnívoros, livros antigos, minerais e rochas, fósseis de corais, de bivalves, trilobites, reconstituições na parede de ambientes antigos…
Mas o que faz um paleontólogo no Técnico / IPFN? “O facto de haver uma máquina de tomografia computadorizada que vai muito ao encontro da minha investigação e de haver uma coleção de animais atuais que podia comparar”, resume. A tecnologia existente na instituição – como a radiação x através da microtomografia computadorizada – permite, por exemplo, visualizar ossos dentro do ouvido interno sem tocar nem destruir o fóssil. Também dentro deste crânio de crocodilo há uma secção que só é acessível praticamente através da tomografia computorizada, precisamente a zona do ouvido interno. “É isso que os paleontólogos adoram: estruturas complexas envoltas em osso”, explica. “Isto permite que a estrutura do nosso ouvido interno seja possível de rastrear ao longo da história evolutiva quer dos humanos, quer dos crocodilos, quer de qualquer animal”, aprofunda.
O trabalho de investigação de Ricardo Araújo tem-se centrado precisamente nas informações evolutivas que é possível retirar através da análise do ouvido interno. “Dentro do nosso ouvido interno temos três canais. Com as tomografias conseguimos olhar para dentro do crânio e ver esses buracos que lá existem”, explica. No caso dos crocodilos, realizou um estudo em espécimes ainda dentro dos ovos, enquanto se iam desenvolvendo durante 93 dias, até se tornarem animais que conseguiam sair dos ovos. Os resultados da investigação foram publicados recentemente na conceituada revista Nature.

O crânio de crocodilo do Técnico insere-se numa coleção alargada de osteologia animal, composta por 24 crânios e outros pequenos fragmentos, recolhidos essencialmente nas antigas colónias portuguesas, entre 1913 e o fim da década de 40. Terá sido recolhida por Carlos Augusto Alves Pereira, antigo aluno do Técnico, formado em Engenharia Geológica e de Minas, e serviu como suporte pedagógico de ensino. A coleção “ainda não foi identificada de forma rigorosa” e ainda carece de um “inventário adequado”, nas palavras de Elisa In-Uba, que se encontra a desenvolver uma tese de mestrado no Técnico em parceria com a Faculdade de Belas Artes e que pode ajudar a dar os primeiros passos nesse sentido.
Essa catalogação pode ser fundamental para colocar a coleção na rota do conhecimento. Poderá, por exemplo, integrar bases de dados internacionais sobre a biodiversidade. “As maravilhas das coleções dos museus é que nunca sabemos como podem vir a ser utilizadas no futuro”, defende Judite Alves, subdiretora do Museu de História Natural e Ciência da Universidade de Lisboa. As coleções de história natural estão reconhecidas, desde 2018, pela União Europeia como uma infraestrutura de investigação fundamental para a Europa. O objetivo é tornar este recurso disponível para a comunidade científica e pô-lo ao serviço das grandes questões que hoje preocupam a sociedade. “O nosso crocodilo poderá integrar estas estruturas, uma vez a coleção estando estudada e inventariada”, aponta.

 

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