Episódio 72 – A cana dos foguetes

Não foram poucas as noites quentes de julho pontuadas pelo ruído de foguetes a celebrar a conclusão do curso por estudantes do Técnico. Subia aos céus da Alameda um foguete por cada ano que cada estudante do Técnico concluíra com sucesso. E a lançá-los de cigarro na mão esteve, durante décadas, o Sr. Carvalhosa (ou o Professor Carvalhosa, ou Eng.º Carvalhosa, dependendo das versões), funcionário do Técnico entre 1965 e 2003.
A prova – a cana dos foguetes que enquadra este episódio – é propriedade inestimável de Isabel Ribeiro, professora catedrática aposentada e professora distinta do Técnico e investigadora no ISR Lisboa – Instituto de Sistemas e Robótica, tendo sido lançada e recolhida em maio de 1978. O lançamento de foguetes fazia parte da tradição do Técnico, mas tinha sido descontinuada após o 25 de abril, sobretudo por questões de ruído. Em maio de 1978, a jovem Isabel Ribeiro e dois colegas acabavam o seu curso e decidiram procurar “quem antes tratava desses assuntos”. “O Professor Carvalhosa, como nós chamávamos, fornecia-nos os foguetes. E foi lançar os nossos 15 foguetes (um por cada ano de cada um dos três estudantes) no cimo do Pavilhão de Eletricidade. Estávamos eufóricos, fumámos charuto, bebemos champanhe…”, recorda. Ficava retomada a tradição que prosseguiu mais umas décadas, como o comprova o testemunho de Teresa Vazão, professora do Departamento de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores do Técnico, que terminou o curso em 1985: “Dirigíamo-nos a ele, dizíamos: Sr. Carvalhosa acabei o curso, vamos combinar aqui o lançamento dos foguetes… trazia-se os namorados ou as namoradas, íamos para o jardim e lá vinham os foguetes do Técnico”.

Falamos de António Alves Carvalhosa, que foi jardineiro, porteiro e contínuo do Departamento de Matemática durante as décadas que dedicou ao Técnico. Abria e fazia a manutenção dos Grandes Auditórios, vendia folhas de ponto e sebentas, mas tornou-se conhecido como o “Engenheiro Pirotécnico” pelo lançamento de foguetes. E tudo começou assim: “Estava no portão da Alameda e houve um aluno que chegou ao pé de mim a perguntar sobre foguetes. Era um contínuo do Central, o Soares, que os deitava, mas parou durante um ano ou dois. O aluno perguntou-me: ´Não arranja foguetes para mim?´. E eu: ´talvez´. Descobri um fogueteiro da Lourinhã, através das Festas de Monsanto, e então comecei a gastar foguetes de lá e comecei a deitar. E deitei muitos anos. Peguei eu na tradição”. A técnica era puxar do cigarro e recorrer a um pedaço de pano tipo charuto para apoio e lá ia o foguete. Foram centenas de estudantes do Técnico que viram o seu sucesso ecoar na cidade pelas mãos de António Carvalhosa. Uns pediam para serem eles a lançar, outros tiravam fotografias com ele ou levavam-no ao jantar de comemoração e “para a paródia”.
Antes do “serviço” ser executado por contínuos do Técnico, a tradição seguia um molde “self-service”. Uma papelaria em frente ao Técnico vendia pequenos foguetes, que eram lançados pelos próprios estudantes. José Manuel Antelo, engenheiro de profissão aposentado e novamente estudante do Técnico em 2022, formou-se em 1955 e nunca esqueceu o seu último dia. Naquela altura deitava-se um foguete por conclusão do último exame (e não por anos de curso). “No nosso ano o último exame foi de economia política, que era uma cadeira para todos os cursos, todos os cursos do 6.º ano terminaram ao mesmo tempo. Então foram todos os cursos que fizeram ali um arraial de foguetes que foi uma coisa impressionante”, recorda. Na década seguinte foi a vez de Rui Louro concluir o seu curso, lançar o seu foguete mas também a ver a polícia política a confundir o significado das celabrações. “Numa altura, o lançamento dos foguetes coincidiu com a queda de Oliveira Salazar da cadeira. Como nessa manhã houve muitos foguetes, a PIDE entrou no Técnico em força e queria prender toda a gente que lançou os foguetes”, conta.

A tradição terminou oficialmente nos 90, mas a chama nunca se chegou a apagar totalmente. Quer substituindo o fogo de cana pelo fogo preso ou recrutando oficionsamente os serviços do antigo funcionário do Técnico. “Depois de me reformar ainda cá vim umas duas ou três vezes. Chegaram a ir lá alguns buscar-me para vir cá”, confessa António Carvalhosa. Talvez mais do que a vontade de soltar foguetes, falasse mais alto a saudade de uma pessoa que tinha “sempre um sorriso nos lábios e era uma personagem querida por todos”, como define Isabel Ribeiro. E como a saudade nunca nasce só para um lado, também mora nas palavras do “Professor Carvalhosa”: “Tenho saudades e pena de não continuar. Mesmo que me pedissem, já não faria que arranjava problemas. Mas vontade tinha eu de os deitar. Tenho saudades desses tempos, tenho sim senhor”.

Histórias Extra

Um: A história de uma cana que foi guardada pelos avós
«Quando acabei o curso no fim de maio de 1978, eu e dois colegas pensámos nesse dia de manhã deitar foguetes e fomos falar com quem antes tratava desses assuntos. O Professor Carvalhosa, como nós chamávamos, era o Sr. Carvalhosa que era contínuo na Matemática e a quem nós pedimos. Fornecia-nos os foguetes. E foi lançar os nossos foguetes no cimo do Pavilhão de Eletricidade, com 15 foguetes. Estávamos eufóricos, fumámos charuto, bebemos champagne, enfim.
E depois pensei “eu gostava de ficar com estas canas”. Então fomos para a Alameda onde a maior parte dos foguetes deve ter caído à procura de foguetes. Encontrei um, não sei se era o meu, mas passou a ser o meu foguete que levei para casa. E a minha mãe disse “eu não quero cá isso que isso cheira muito mal”. E cheirava ainda a pólvora. E a minha avó “ó minha filha, eu guardo-te o foguete”. Os avós servem para isso. Foi colocada uma etiqueta e foi guardado num armário na casa deles. Quando faleceram, a casa esteve fechada algum tempo e quando foi necessário desmanchar a casa, o foguete estava lá guardado.»
(Isabel Ribeiro)

Dois: Naquele tempo os foguetes eram lançados por estudantes
«Tenho saudades da vivência no Técnico como um todo. Considero que foi um tempo muito feliz da minha vida. Naquela altura [anos 50], no último exame deitava-se um foguete. Às vezes estávamos na aula e ouvíamos foguetes. Mas no nosso ano foi diferente. O último exame foi de economia política, que era uma cadeira para todos os cursos. E foi o último exame de todos, no dia 30 de junho [de 1955]. Todos os cursos do 6.º ano terminaram ao mesmo tempo. Então foram todos os cursos que fizeram ali um arraial de foguetes que foi uma coisa impressionante, possivelmente o protesto que havia dos vizinhos todos os anos, naquele ano deve ter atingido o máximo, porque eram foguetes por todos os lados, aquilo parecia um arraial minhoto. De maneira que lancei o meu foguete com todo o cuidado não fosse aquilo explodir na mão. Cada um lançava o seu foguete. Ia comprar-se ali à entrada na Rovisco Pais, numa papelaria. Muito mais tarde é que pensei no perigo que aquilo representava. Não fui apanhar a cana. Pensei: “acabou, a cana fica”. Todos lançaram um foguete nesse dia. Foi o salve-se quem puder.»
(José Antelo)

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