Episódio 58 – Gasparzinho

Um robot acorda todos os dias às 10h30, em Lisboa, na ala pediátrica do Instituto Português de Oncologia (IPO), e deambula de forma autónoma pelos corredores do edifício. Os sensores laser ajudam-no a evitar obstáculos e está programado para dar os bons dias a quem passar, assobiar, conversar e até mesmo jogar. Estamos em 2014, período em que o Gasparzinho, um robot com competências sociais, faz companhia a crianças que passam pela instituição, tentando contribuir para o seu bem-estar tornando-as mais ativas. O robot manteve-se pelo IPO até 2019.
“Tudo o que sejam projetos que integrem uma melhoria de quotidiano e integrem alegria e uma dose de loucura são aceites e recebidos de bom grado”, descreve Filomena Pereira, responsável pelo serviço de pediatria do IPO de Lisboa. A “loucura” passava pela criação de um robot que fosse capaz de acompanhar uma criança a um ritmo acelerado, para que pudessem correr atrás dele. “Era um desafio muito grande. Não havia nada no mercado que fizesse isso”, recorda João Sequeira, professor no Departamento de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores do Instituto Superior Técnico. Por aconselhamento dos médicos da instituição, o Gasparzinho não se move tão depressa como inicialmente projetado, atingindo ainda assim uns bons 50/70 cm por segundo. “Os médicos referiram que se um robot deste tipo puder levar ao aumento da atividade física dos miúdos, isso só por si já é positivo”, recorda João Sequeira. E assim foi desenhado o Gasparzinho, pensado para promover a interação. “As crianças geralmente têm dificuldades com alguns tipos de tratamentos. A utilização de robots para de alguma forma acalmar, distrair as crianças, pode ser muito positivo”, complementa. “Entrámos numa espiral de ideias de projetos que podiam ser feitos aqui. Foram feitos imensos projetos de jogos, interação, muita coisa. A presença do “bicho”, como eu lhe chamava, modificou aqui muito o quotidiano, introduziu uma novidade”, recorda Filomena Pereira. Das ideias surgiu então o projeto de construir um robot para “ser um amigo, gerar conversas, gerar piadas, ser um animador, como mais um interveniente ativo e positivo do espaço”, como descreve Paulo Alvito, sócio fundador da empresa IdMind, que ficou responsável pela sua execução.

Pelos corredores do IPO, o Gasparzinho foi acumulando interações e histórias inspiradoras: “Todas as histórias a que fui assistindo enquanto o robot esteve ativo de interação com as crianças ainda hoje me motivam imenso para continuar a trabalhar nesta área”, diz João Sequeira. Recorda uma criança que chegou ao IPO numa cadeira de rodas empurrada pela mãe. Passados 30 minutos já estava fora da cadeira, agarrada ao robot. Outras que corriam atrás do robot, que fugia deles (por estar programado para evitar obstáculos). E outra de uma criança que estava em fase terminal da sua doença, e que já conhecia o Gasparzinho, cuja mãe foi pedir para levarem o robot ao seu quarto. “Coloca-nos a pensar como temos que encarar toda a programação do desenvolvimento de dispositivos deste tipo para reagir de forma adequada a estas situações. Tem que haver um cuidado extremo em conhecer as pessoas, conhecer o lado humano”, aprofunda João Sequeira.
O Gasparzinho, nome escolhido pelas crianças, nasceu também dessa procura para “colocar robots a fazer qualquer coisa que fosse útil para a sociedade”. A ideia transformou-se em projeto científico – com o nome de Monarch – alicerçado num consórcio de investigação internacional. “O desafio era de tal forma ambicioso que as pessoas perceberam que havia muito espaço para colocarem as suas próprias áreas de investigação específicas e com potencial para seguir novos caminhos, que é o que qualquer investigador deseja”, descreve João Sequeira, que também coordenou esse projeto de investigação. O projeto exigia competências diversas como tecnologias de visão, aspetos de interação pessoa-robot e tomadas de decisão.

O projeto teve um impacto significativo na forma de fazer robots hoje em dia. “Por exemplo, a nível dos materiais, do aspeto exterior do robot e o seu impacto na pessoa: o volume e o aspeto que um determinado robot deve ter para que possa ser melhor aceite, o tipo de sons que deve produzir…”. Do Gasparzinho, derivaram, por exemplo, robots como o “Viva”, que se encontra no Pavilhão do Conhecimento, em Lisboa, e um outro que estará em breve na área de exposições do Museu Mineiro do Lousal (ouvir Episódio 37 – Os Modelos de Minas de Freiberg). Depois deste projeto, surgiram também robots com classificação médica, como a foca robótica, de origem japonesa. Quanto ao Gasparzinho, a sua missão no IPO de Lisboa ficou ainda algo incompleta, como defende Filomena Pereira. “Tenho saudades do projeto, sobretudo do que não foi feito. O potencial era muito grande. Gostaria que fosse reanimado esse projeto com esse “bicho”, porque de facto era um bicho simpático, ficava bem aqui nos nossos corredores”.


Histórias Extra:

Um: Como se transforma uma ideia num robot?
«Na altura fizemos um inquérito a cerca de 100 crianças. E deram-nos ideias curiosas: que tinha que ter um tablet no peito, que podia fazer os trabalhos de casa. Foram respostas muito curiosas que de alguma forma serviram de inspiração para o designer que fez os esboços do robot», conta João Sequeira. Chegava então a “encomenda” às mãos de Paulo Alvito da IdMind:
«(O robot foi feito) com base na velocidade que se pretendia para o robot e do tipo de movimento. Pretendia-se um robot ágil – introduzimos um tipo de locomoção omnidirecional, significa que se pode movimentar em qualquer direção. O primeiro passo que demos foi criar uma base com os motores, as rodas e as baterias. Era só a base ainda sem corpo superior, para termos um ponto de partida. Chegou-se a um look com uma forma que eu diria que não é humana, que se identificaria mais com um cartoon, um desenho animado.
Com um aspeto amigável. A altura também apropriada ao utilizador. Não criar falsas expetativas em relação ao que os robots conseguiam fazer naquele espaço.» (Paulo Alvito)

Dois: O Robot com insónias ou crises de sonambolismo
«Depois do projeto (Monarch) acabar, em 2016, continuei a ir ao IPO e a desenvolver a um ritmo muito mais lento o software do Gasparzinho. E a partir de certa altura comecei a verificar um padrão que me resultou estranho e para o qual não tinha explicação. De vez em quando chegava ao IPO e o Gasparzinho estava desligado. Primeira reação: o pessoal chateou-se com o Gasparzinho, foi ao botão da energia elétrica e desligou…
Repeti experiências durante meses… Limitei-me a observar o que tinha acontecido, durante meses. A partir de certa altura as observações começaram a ser muito substanciais e decidi colocar no sotware do Gasparzinho um pedaço de código que me registe segundo a segundo o que está a acontecer. Durante um ou dois meses e comecei a analisar os registos e acabei por descobrir que o Gasparzinho, por volta das 20h, regressava ao seu ponto de repouso (estava programado para fazê-lo às 19h e qualquer coisa). A partir das 8 horas saía fora da zona e ia dar uma voltinha e a suas voltas duravam até à 1h da manhã, a fazer barulho.
Este padrão manteve-se durante meses, muitos meses, sem que as pessoas do IPO dissessem absolutamente nada. Admito que a certa altura houvesse um certo desconforto com o Gasparzinho. Não o desligavam, deixavam a bateria acabar…
Há um conjunto de pessoas que tem a capacidade de influenciar a forma como o robot se comporta. É um erro de programação, de código, não havia qualquer intenção que tivesse aquele tipo de comportamento.
Aconteceu um bocadinho antes da pandemia começar…
Começamos a perceber que no IPO havia muita gente que tendia a humanizar o robot, que é uma coisa que para quem está nesta área é delicioso.
Lembro-me de receber uma chamada num domingo à noite: «venha cá, venha cá que o robot está muito quente, como se estivesse com febre. » (João Sequeira)

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