Episódio 102: A ampola de Wehnelt

“Eu vi um espanto de que não me esqueço nos olhos dos alunos, de verem a trajetória dos eletrões, de verem os eletrões pela primeira vez, numa experiência que nós executávamos nas aulas de Eletrónica”. A memória remonta a 1979, altura em que Carlos Ferreira Fernandes se iniciava como professor no Instituto Superior Técnico. Deu aulas até 2020, mas nenhuma memória se sobrepõe ao fascínio provocado pelas aulas em que a ampola de Wehnnelt permitia, no escuro das salas de aulas do Técnico, ver o invisível, nomeadamente ver eletrões. “É-me particularmente importante falar deste aparelho que faz parte do espólio do Museu Faraday”, reforça o também diretor executivo do Museu. “Quando estamos a falar de um átomo, um átomo tem uma dimensão, tipicamente um número com doze algarismos, portanto é um milhão de milhão de milhões de vezes inferior a um metro, qualquer coisa que é impensável. Os eletrões ainda têm uma dimensão inferior a isso”, complementa.
A explicação de funcionamento é avançada por Moisés Piedade, diretor honorário do Museu e professor aposentado do Técnico: “Estas ampolas permitem ver o trajeto dos eletrões. Eles têm energia e, quando colidem com os átomos de um gás muito rarefeito que lá está, dão luz. Quando está a ver uma lâmpada néon, destas que há por aí nos anúncios, são eletrões que estão a colidir com átomos do gás e, portanto, depois a seguir dão luz. Libertam energia dos átomos”. A experiência entusiasmou estudantes do Técnico ao longo de gerações, mas na sua origem está uma verdadeira revolução no conhecimento do mundo e da sua estrutura. É uma recriação científico-pedagógica de uma experiência realizada por Joseph John Thomson, nos finais do século XIX, que abriria caminho para uma descoberta fundamental da física que permitiria perceber que os átomos eram “feitos de coisas mais pequenas”, os eletrões. “O Thomson verificou, de facto, que eram partículas que se estavam a mover e verificou que essas partículas tinham carga. Não conseguiu determinar a carga, mas conseguiu determinar a relação entre a massa que elas tinham e a carga que transportavam. Esta experiência de Thomson originou uma série de tubos e ampolas para demonstrar esta relação entre a massa e a carga de um eletrão”, complementa.

Entre esses tubos nasceria também, na década de 50, uma ampola fabricada pela marca Leybold (Wehnelt é o nome de uma das muitas pessoas que trabalharam na criação deste tipo de ampolas) que viria tornar-se um instrumento pedagógico de relevo nas aulas de Eletrónica no Técnico até ao final da década de 80. É, assim, “uma ampola de raios catódicos (feixes de eletrões) para determinação da relação entre a massa e a carga de um eletrão”. A visualização do processo é feita através da ação de uma campo magnético externo gerado por duas bobinas à volta da ampola que criam um movimento circular dos eletrões. “Portanto, fazendo um movimento circular consegue determinar-se o raio, sabendo a velocidade com que as partículas estão (que é relativamente fácil de saber), conhecendo o campo magnético, consegue determinar-se a relação massa sobre carga”, aprofunda Moisés Piedade. É a visualização do invisível, exercício ainda hoje praticado pelos visitantes do Museu Faraday, no campus Alameda do Técnico, mantendo viva a chama que há 43 anos entusiasmou tantos estudantes do Técnico. Voltamos a Carlos Ferreira Fernandes: “Era algo inesquecível. Quando lhe digo que me recordo de uma coisa que se passou há 43 anos, isso aconteceu várias vezes. Lembro-me de os alunos dizerem “Eu vi os eletrões e eles são azuis”. É engraçado, “azuis”. Eu lembro-me do azul…”.

História Extra: As aulas no escuro no Técnico para ver eletrões
«Estas aulas (em 1979) tinham algo aliciante, eram dadas às escuras. Logo isso… Às sete da manhã, nós tínhamos de fechar as persianas porque é necessário visualizar bem a trajetória dos eletrões, e isso requer uma certa escuridão. Muitas dessas aulas eram também apontadas para a noite. As aulas não decorriam completamente às escuras e, portanto, podíamos recorrer a alguma fonte de luz. Permitia-se aos alunos que vissem e fizessem algumas medições. Era uma aula de demonstração, precisamente por envolver um grande número de alunos e nós não termos essa peça em quantidades suficientes para cada grupo fazer o seu trabalho. Funcionava assim: o que nós púnhamos era um problema que, na verdade, tinha uma realização prática que eles iam fazer imediatamente a seguir. A aula tinha essas duas componentes: estão a fazer um problema e vão vê-lo. Mas quando vão vê-lo, não é uma simulação (porque pode simular-se). Não, era mesmo a realidade – eles iam ver a trajetória de partículas que tinham uma dimensão inferior à dos átomos. Quando estamos a falar de um átomo, um átomo tem uma dimensão, tipicamente um número com doze algarismos, portanto é um milhão de milhão de milhões de vezes inferior a um metro, qualquer coisa que é impensável. Os eletrões ainda têm uma dimensão inferior a isso. Ora, o ar deles, de verem, verem, não é uma coisa que é simulada, detetarem a presença de algo que é pequeno comparado com um átomo. E podíamos fazer uma experiência, manipulando o tal aparelho, fazendo com que a visualização deixasse de ser possível, desaparecesse. Eles deixavam de ver o eletrão. Mas eles estavam lá, e essa era a situação que era normal. Normalmente, não se vê. Isso ainda dava ‘mais sala’ à aula porque eles diziam assim: “afinal, quando estamos a vê-los, é porque estão lá. Mas quando deixamos de vê-los eles estão lá na mesma”»
(Carlos Ferreira Fernandes)

 

Categorias