Episódio 103: O 1.º equipamento 4G em Portugal

Quanto tempo passa entre o nascimento de uma ideia e a sua concretização? A resposta depende muito do contexto e de cada área de conhecimento. Em Telecomunicações, como arrisca Carlos Fernandes, professor do Instituto Superior Técnico e investigador do Instituto de Telecomunicações, “desde o momento em que se planeia e se concebe um conceito novo, até ele chegar a um produto que sai para o mercado, para o grande público, passam tipicamente entre 15 e 20 anos”. “Tem de se começar a pensar, a ser criativo muito antes da altura em que é suposto as coisas acontecerem”, complementa. Estes saltos no tempo levam-nos até 1992, altura em que um projeto de investigação abria caminho para o aparecimento do primeiro equipamento 4G em Portugal. “Na altura em que a segunda geração entrou em funcionamento, nós estávamos a pensar na quarta geração. A terceira já estava a ser desenvolvida na altura e já estava numa fase terminal”, recorda.
O projeto envolveu vários parceiros europeus, incluindo o Instituto Superior Técnico e pretendia criar um sistema de comunicações móveis que fosse capaz de transmitir cerca de 150 megabits por segundo por utilizador. “Na altura, quando nós pensámos neste tema (e foram vários parceiros a nível europeu), a ideia era transmitir vídeo de alta definição e não havia ideia na altura de uma aplicação que fosse particularmente interessante para o grande público”, explica. A grande ambição do consórcio, incluindo a cadeia de transmissão britânica BBC, era “verem-se livres do cabo e terem câmaras de vídeo de alta qualidade que permitissem transmitir a sua informação para a regie via rádio”. São coisas corriqueiras hoje em dia, mas na altura não existiam. Exemplos: a reportagem televisiva em direto, “sem fios”, é hoje uma prática corrente mas só se tornou norma em Portugal depois de 2010.
A possibilidade de transmitir grandes quantidades de informação, de transmitir vídeo de alta definição sem fios tornava-se uma possibilidade. Mas… “este projeto nasceu demasiado fora do tempo. Ele provou que era viável, mas o GSM (que era a segunda geração) ainda tinha muito para dar. Estava a começar, portanto ninguém iria apostar num sistema destes”, explica Carlos Fernandes. “A mesma coisa aconteceu com o 3G, depois aconteceu o 4G, e nós estamos a ver que o 5G começa só agora a apresentar características que nós já estávamos a experimentar naquela altura. Só agora é que se vislumbra uma aplicação que justifique um investimento para os operadores”, aponta.
À frente do seu tempo, como convém na investigação nesta área, e também “único no mundo”, o projeto contou com um forte contributo do Técnico a nível de hardware mas também de conceção de sistema do software. A liderança estava a cargo da companhia portuguesa “Radio Marconi” e a mensagem a transmitir é clara: “Não havia previamente qualquer outro projeto que tivesse desenvolvido algo idêntico”.

Para dar corpo à ideia era necessário construir um objeto, assim descrito: “A melhor descrição é olharmos para o astronauta, daqueles que saem das naves espaciais e que fazem as suas missões cá fora, que têm um género de caixote nas costas. Basicamente, era isso”, descreve Carlos Fernandes.
Um caixote com cerca de 1,10 metros de altura e 60 centímetros de largura, com 60 quilos, que incluía uma torra com duas lentes semicirculares e antenas (na fotografia). Tudo isto era complementado por um cinto com 12 baterias que, amarradas à cintura, alimentariam o sistema (que consumia 60 watt).
“Foram feitos vários testes previamente e houve membros da equipa que quiseram experimentar e sentir o peso. Era suportável. Eu não experimentei [risos], mas houve quem experimentasse, de facto”, recorda.
A experiência a sério foi efetuada durante a Expo 98 (ver texto extra), no então Pavilhão da Utopia (atual Altice Arena), tendo o aparelho funcionado sem falhas. “Todos nós na equipa estávamos ansiosos para ver aquele sistema a funcionar com aquela perturbação, porque o ambiente daquele pavilhão, muito grande, cheio de pessoas… não sabíamos exatamente qual é que seria o efeito no nosso sistema”, recorda.
Passados 25 anos, é abundante o número de telemóveis ao dispor dos utilizadores, reinando já a tecnologia de 5.ª geração. Mudanças de conceitos e de sistemas de comunicações à parte, é sempre bom lembrar que muito antes de podermos aceder à informação na palma das mãos, já investigadores do Técnico carregavam uma espécie de telemóvel gigante e sem teclado. O tempo entre uma ideia e a sua aplicação também pode ser, literalmente, carregado às costas.

História Extra: Uma utopia do final dos anos 90: Investigadores apresentam 4G na Expo 98
«O projeto terminou em 1998 com uma demonstração na Expo 98 no Pavilhão da Utopia (na altura era assim que se chamava). Funcionou perfeitamente e sem falhas. Todos nós na equipa estávamos ansiosos para ver aquele sistema a funcionar com aquela perturbação, porque o ambiente daquele Pavilhão, que é um pavilhão interessante, muito grande, cheio de pessoas… não sabíamos exatamente qual é que seria o efeito no nosso sistema. Obviamente que, como engenheiros, nós éramos capazes de prever que não haveria problema, mas há sempre aquela ansiedade e, portanto, naquele dia, no dia da demonstração, ficámos obviamente ansiosos à espera que aquilo funcionasse. Acabou por funcionar muito bem. Qual é que era a nossa realização, quando é que diríamos que aquilo tinha funcionado? Era quando o operador pudesse circular livremente por todo o pavilhão sem qualquer fio e manter a sua transmissão para a regie sem que houvesse qualquer quebra na transmissão e, de facto, isso aconteceu, o que nos deixou a todos bastante satisfeitos. Portanto, nessa altura, aquilo de que me lembro era a satisfação de todas as pessoas e do público, também a querer aparecer – sempre que há uma câmara, o público gosta sempre de fazer “adeus!” e é mais ou menos disso que tenho ideia.
Foi possível demonstrar com um dispositivo portável – eu não lhe vou chamar “portátil” porque o rádio que foi construído pelos diversos parceiros pesava qualquer coisa como 60 quilos e consumia cerca de 60 watt. O dispositivo era pesado, era carregado às costas por uma mochila, mas bem pesada e aquilo teve autonomia para funcionar durante uma hora no Pavilhão da Utopia. Enquanto as pessoas enchiam o pavilhão, o sinal estava a ser gravado e depois era transmitido para aquilo a que chamamos uma estação base, que estava colocada no topo do Pavilhão. Daí, por fibra ótica, era transferido o sinal para uma sala onde havia visitantes e convidados, para verem o sistema a funcionar pela primeira vez.
Nós queríamos fazer a prova dentro do Pavilhão da Utopia, transmitindo todo aquele ambiente próprio daquelas feiras mundiais, com pessoas de várias nacionalidades e um público muito generalizado, desde miúdos a pessoas adultas e de muita idade. Naquele ambiente meio de festa, as pessoas entram nos pavilhões à procura de diversidade… e quando entravam ali no Pavilhão da Utopia, estavam na expectativa de ver um espetáculo que era interessante, que tinha pessoas e, bom, parecia um bocadinho o Cirque du Soleil e era isso que planeávamos filmar. Mas depois, à última da hora, houve um problema de direitos de autor e acabámos por não poder filmar o espetáculo, mas permitiram-nos, pelo menos, filmar o ambiente das pessoas e aquilo que me lembro de ver (e que aliás está registado em vídeo) era trazer aquele equipamento que era pesadíssimo, fazê-lo “vestir” ao operador de câmara (eram precisas duas pessoas para ajudar a colocar aquilo às costas) e depois ele andar, com aquele dispositivo muito estranho por ali a filmar. Isso era muito estranho para todos.»
(Carlos Fernandes)

 

Nota:
O Desenvolvimento desta tecnologia ocorreu no âmbito do projeto MBS – Mobile Broadband Systems, (1992-1995) e do projeto SAMBA – System for Advanced Mobile Broadband Communications, (1996-1998).
O projeto MBS foi liderado pela Companhia Portuguesa Radio Marconi (CPRM) e envolveu 16 parceiros europeus: British Telecom Labs, Deutsche Aerospace AG, Thomson Semicond, Philips Microwave Limeil, Alcatel Face, Technical University of Aachen, Nowegian Telecom Res, Instituto Superior Técnico, BBC, VTT, Daimler-Benz Research, Thomson CSF-LER, Thomson CSF–RCC, Thomson CSF–CNI, Université de Lille, e CNET France Telecom.
O projecto SAMBA foi liderado pelo Centro de Estudos de Telecomunicações da Portugal Telecom, e envolveu, a Deutsche Aerospace AG, Technical University of Aachen, BBC, IMIS Conseil, Robert Bosch, TMN, Instituto Superior Técnico, Instituto de Telecomunicações, BBC, Thames TV, Daimler-Benz Research, TELENOR, Telis, and Mitsubishi Electric Co.

 

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