Episódio 27 – O Autoclave de Charles Lepierre

Em 1911 chegava ao Técnico Charles Lepierre (1867-1945), investigador e professor de origem francesa que ficaria responsável pelo ensino da Química Tecnológica, da Análise Química e da Química Orgânica. Para além dos 26 anos de dedicação à Escola, trouxe também utensílios científicos que transformariam radicalmente o ensino no Técnico. Entre eles estava o autoclave, definido assim por Maria Cândida Vaz, professora e investigadora aposentada do Técnico: “um equipamento que usa água a determinadas temperaturas e pressão e que de certa maneira purifica o que nós queremos, desde preparação de meios para realizar testes microbiológicos, equipamentos que possam ser utilizados, inclusivamente em medicina, para descontaminar mesmo a roupa”.
O autoclave é, hoje em dia, um instrumento indispensável em todos os laboratórios de microbiologia, mas até ao final do século XIX a descontaminação e esterilização de elementos que intervêm nos trabalhos de microbiologia era ainda um grande problema por resolver. Louis Pasteur (1822-1895) confrontou-se com ele quando tentava produzir a vacina contra a raiva: não conseguia resultados porque todos os materiais com que manipulava os vários elementos da vacina estavam contaminados com bactérias na sua superfície e transmitiam-nas aos elementos da vacina que teriam que estar estéreis. É nesse contexto que surge a invenção de Charles Chamberland (1851-1908). Um instrumento com um princípio semelhante ao de uma panela de pressão que foi suficiente para salvar milhares de vidas (ler história do autoclave no documento extra).

Este autoclave do Técnico é considerado por Manuela Cadete, antiga funcionária no Laboratório de Análises do Instituto Superior Técnico, como um protótipo semelhante aos primeiros autoclaves desenvolvidos no mundo. “Depois houve uma grande evolução. Mas este foi o primeiro, de que eu tenha conhecimento. Mais tarde, venho eu própria a trabalhar com ele”, conta.
Este autoclave baseia-se num cilindro interno, que recebe água na parte inferior. É fechado hermeticamente, tem uma saída para a pressão e é aquecido a gás (os mais recentes passaram a ser elétricos) . “Este binómio pressão / temperatura fazia com que os elementos que estavam dentro desse cilindro fossem aquilo a que nós chamamos esterilizados: as tesouras, as pinças, os tubos e as placas de vidro que usamos”, explica. Consegue atingir os 121 graus centígrados e 1 bar de pressão. Essa combinação durante 15 a 30 minutos é o suficiente para eliminar as bactérias.

Este autoclave terá sido crucial para os trabalhos de Charles Lepierre (investigador que também dá o nome ao Liceu Francês de Lisboa – Lycée Français Charles Lepierre – Lisbonne), no início do século XX, em trabalhos relacionados com as águas minerais, mas voltou a ser fundamental para o Técnico já nos 80. “Eu entrei para o Técnico em 1972 e ainda o utilizei. Esteve parado muito tempo. Achava uma graça e um privilégio trabalhar com ele”,recorda Manuela Cadete. A maneira de trabalhar com o autoclave era quase “à moda de Pasteur”: por exemplo, um frasco de vidro que levava uma rolha antiga envolta em papal pardo, fechada com um cordel e com um laço, tudo feito à mão.
A existência deste autoclave no Técnico permitiu uma gigantesca evolução na microbiologia, uma área que na altura não era rotina no Técnico. “Permitiu-nos perceber que podíamos trabalhar em microbiologia com meios de cultura e que era uma área de trabalho que se estava a abrir. Se não tivéssemos aqui este autoclave – histórico, maravilhoso – nunca teríamos tido essa capacidade de perceber que era uma área em que podíamos avançar e explorar. Porque não tínhamos hipóteses de fazer nada em microbiologia sem o autoclave”, explica.
Os frutos desse crescimento da área científica: o Técnico e o seu Laboratório de Análises tornaram-se pioneiros em análises das águas para hemodiálises no país (“quando se está a pôr uma água na veia de um doente, ela não pode ter nada, nem bactérias, nada, zero, está vulnerável e pode ser sujeito a um febrão muito grande e uma grande infeção”), mas também de águas de consumo, de piscinas, residuais, entre outras.
O fim da segunda vida do autoclave chegaria no início dos anos 90, altura em que foi substituído por equipamentos mais modernos. “Fez-se uma aquisição quando notámos que haveria mercado de trabalho para rentabilizar aquele custo, porque crescemos muito em termos de trabalho de microbiologia”, conta.
E onde repousa ele agora? “Ainda está à vista, num laboratório de Química… e vaidoso, porque está muito bem conservado, está bonito. Olho-o como uma certa ternura”, confessa Manuela Cadete.

 

Conteúdo complementar: Uma história contada por Manuela Cadete
Análises de Água de Cabinda no pós-25 de abril

«Tínhamos uma colaboração com o Bispo da Diocese de Cabinda, no pós 25 de abril. Tinha a seu cargo muitas crianças órfãs, na sequência da Guerra. Tinham lá uma nascente, um pocinho, que era o que dava água às crianças. Ele tinha a noção que a água era um veículo que podia dar cabo da saúde das suas crianças. Telefonava-me e eu ensinava-o mais ou menos como fazer [para recolher e enviar a água para ser analisada no Técnico]: como desinfetar a boca do frasco, onde a colher, como desinfetar a torneira… Quando chegava uma amostra às 9h da noite ou coisa desse género, nós tínhamos que analisar imediatamente porque se não fizermos vamos alterar o resultado. É humano, é uma responsabilidade, temos que fazer.
A água estava sempre contaminada. Eu dizia-lhe como mais ou menos fazer. Despejar não sei quantos garrafões de lixívia lá para dentro para melhorar, etc. Foi uma colaboração de uma coisa muito má poder ficar menos má. As crianças foram posteriormente reconduzidas para famílias”.

 

Categorias