Episódio 54 – O Kit de Electromagnetismo

Manuel Abreu Faro (1923-1999) fez todo o seu percurso de aluno e professor no Instituto Superior Técnico e inspirou gerações de estudantes com a visão e o estilo que imprimia nas suas aulas na área das telecomunicações e da eletrónica. Moisés Piedade, fundador e diretor honorário do Museu Faraday, foi seu aluno mas diz integrar “os 5% de alunos que não era tão entusiasta” com as suas aulas, por serem muito teóricas (embora fosse “um pedagogo fantástico”). Foi por isso com surpresa que encontrou no antigo gabinete de Abreu Faro, quando recolhia objetos para a coleção do Museu Faraday, já em 2014, um Kit de Eletromagnetismo. “Para mim foi uma surpresa ver que Abreu Faro, que dava aulas quase sem ter uma ligação à prática da Engenharia, teve um objeto destes. Demonstra que tinha interesse pela tecnologia e que não estava só interessado na teoria, que gostava de comprovar aquilo que estava a ensinar”, resume.
O Kit de Eletromagnetismo integra já o espólio do Museu, dentro da sua caixa de madeira de origem (cerca de 60cm por 40cm e 15cm de altura). É composto por várias outras caixas que se sobrepõem, onde estão os diferentes objetos que podem ser selecionados para as múltiplas experiências básicas de eletromagnetismo que se podem fazer. Por exemplo: fazer uma pilha eletroquímica, fazer um motor elétrico a partir das várias partes de um campo de um magneto, de bobinas quando passa a corrente, observar determinadas correntes, entre outras.
O objeto tem um valor histórico, por “pertencer a quem pertencia”, mas também está pronto para desempenhar, no futuro, o papel de inspirar os mais novos. “O kit vai ficar no Museu Faraday e vamos fazer algumas daquelas experiências com alunos de escolas”, garante Moisés Piedade.

Voltamos às aulas de Abreu Faro, agora pela memória de Custódio Peixeiro, professor do Departamento de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores do Técnico: “Eram aulas muito vivas, contagiantes, alegres. Nós sentíamo-nos entusiasmados com aquilo que ele estava a dizer. Para além do necessário formalismo matemático que existe numa disciplina de Engenharia de Ondas Eletromagnéticas, ele dava aulas muito vivas, com muitas interpretações físicas dos fenómenos, dava muitos exemplos de aplicação também”. O fascínio em torno da figura de Abreu Faro não se extingue nos tais 95% de alunos fascinados pelas suas aulas. “Guardo uma enorme dívida que tentei pagar escrevendo um capítulo sobre ele. Ajudou a minha geração de muitas formas.Teve uma influência decisiva na vida de centenas de investigadores em todas as áreas”, explica Custódio Peixeiro.
“Abreu Faro é quase um puzzle muito complexo”, diz Maria Inês Queiroz, investigadora da Universidade Nova de Lisboa. “Manuel Abreu Faro foi um professor, um investigador, um político se quisermos, mas acima de tudo um pensador, um estratega da política científica em Portugal”, explica. Foi o primeiro catedrático do Técnico na área de telecomunicações, em 1956, e acumulou funções de grande influência como a presidência da Comissão de Estudos da Energia Nuclear, do Instituto de Alta Cultura e, mais tarde, a vice-presidência da Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, ambas antecessoras da atual Fundação para a Ciência e Tecnologia. “Na década de 50 ele era já um professor catedrático que tinha uma perceção talvez diferente dos outros professores: percebeu a importância de ligar o ensino à investigação”, explica Maria Inês Queiroz. Nessas funções, ajudou toda uma geração de jovens estudantes a fazer investigação fora do país, através de bolsas de estudos, aumentando o volume de massa crítica em Portugal. No Técnico teve também um papel decisivo na criação do Complexo Interdisciplinar (ouvir Episódio 25 – A “Exaltação dos ritmos dominantes das origens”), onde hoje há um auditório com o seu nome.

O seu legado deixou sementes no sistema científico nacional, em particular na influência da visão estratégica que Mariano Gago, ministro da Ciência e Tecnologia entre 1995 e 2002, aplicou em Portugal. O também antigo professor do Técnico e antigo aluno de Abreu Faro costumava recordar a sua filosofia do seguinte modo (citação aproximada na memória de Maria Inês Queiroz): “Eu não sou um investigador, sou um professor. A minha missão é garantir que vocês têm condições para virem a ser cientistas”. Missão cumprida.

 

Histórias Extra:

Um: Abreu Faro, um visionário da promoção da ciência e da cultura científica
«O mais surpreendente talvez no plano do discurso [de Manuel Abreu Faro] foi a forma como percebeu a importância da promoção da cultura científica, que é uma coisa que já só ouvimos falar em Portugal no final do século XX, quase, com Mariano Gago. Diria que foi o primeiro a pensar na promoção da cultura científica como uma forma de sustentabilidade, de legitimação da ciência enquanto política pública. Quase que diria, extrapolando um bocadinho, que é o primeiro a falar na necessidade da comunicação de ciência em Portugal. Isso diria que era muito à frente do seu tempo em Portugal. Não lhe conheço nenhuma iniciativa mais concreta de estímulo à cultura científica, mas no discurso…
Diria que o principal do seu legado está no que aconteceu mais tarde em termos de política científica. Esta influência e convivência [de Mariano Gago] com Abreu Faro terá influenciado a forma como percebeu também a importância deste princípio da criação de uma cultura científica para garantir a sustentabilidade da ciência no nosso país.»
(Maria Inês Queiroz)

Dois: Giz, ponteiro e cigarro – Uma imagem-memória de Abreu Faro na sala de aula
«A primeira imagem que me lembro é dele a segurar o ponteiro, por trás de uma secretária muito grande. Por trás dele estavam os quadros elevatórios (dois quadros que sobem e descem com os contrapesos que lá estão), onde se escreve a giz. Lembro-me de ele movimentar-se de um lado para o outro e de ter também sempre na mão um cigarro, a fumar. Na altura era comum. Há histórias muito curiosas acerca disso. Dele trocar o giz pelo cigarro e de vez em quando “fumava” o pau de giz.
Em muitas das aulas dele havia uma espécie de aura poética por cima, expressa também no seu livro “A peregrinação de um sinal”: “Por isso, sem escrever, nas minhas aulas, onde sabia possível, nunca enjeitei a possibilidade de humanizar, comparar, trazer a matemática e a física para o drama e a poesia do homem”.»
(Custódio Peixeiro)

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