Episódio 82: O molinete de Estêvão Cabral

Hoje sabemos que a velocidade da corrente em cursos de água não atinge o seu máximo à superfície, sendo necessário medi-la também em profundidade. Mas até ao final do século XVIII essa dúvida ainda pairava sobre as mentes curiosas e não havia nenhum instrumento capaz de o fazer. Foi assim, até um padre jesuíta português radicado em Itália – Estêvão Cabral (1734 – 1811) – ter publicado a descrição de um aparelho capaz de fazer medições da velocidade do escoamento em rios a diferentes profundidades. Ficavam publicadas, em 1786, as bases do “molinete de Estêvão Cabral”.
“Foi uma contribuição perfeitamente pioneira. Este equipamento é especial porque é uma invençãode uma figura com uma grande relevância para nós, uma figura da ciência e um português”, defende Maria Manuela Portela, professora associada com agregação do Departamento de Engenharia Civil e Arquitetura do Técnico e investigadora na área da hidrologia e recursos hídricos superficiais no CERIS – Investigação e Inovação em Engenharia Civil para a Sustentabilidade. “Como a velocidade não é uniforme, para sabermos o caudal temos que saber a velocidade a diferentes profundidades”, explica. Medir a velocidade da corrente dos cursos de água é fundamental para estimar o caudal, a quantidade de água transportada, fundamental para os estudos da hidráulica. “Conhecer o caudal é um meio de contabilizar a disponibilidade hídrica e de gerir os recursos hídricos. Não pode haver gestão dos recursos hídricos, e em Portugal ainda mais, se não houver um conhecimento do quantitativo de que nós dispomos. Esse quantitativo mede-se nos rios”, aprofunda.

O primeiro exemplar do aparelho terá sido construído apenas alguns anos depois da publicação do documento assinado pelo padre jesuíta. Falamos de uma roda de latão de eixo vertical com seis pás planas, alojadas numa caixa metálica. Muito depois disso foram construídas as duas réplicas que estão no Técnico, uma no Museu de Civil e uma outra nos corredores do edifício de civil do Técnico. Terão sido construídas em 1986, para a celebração do centenário da então Direcção-Geral dos Recursos e Aproveitamentos Hidráulicos. Flutuaram até ao Técnico já neste século, onde ainda permanecem por cedência temporária protocolada com a Agência Portuguesa do Ambiente após a extinção do Instituto da Água, em 2010.

Entre os primeiros molinetes construídos e as réplicas celebrativas não fica claro se o molinete de Estêvão Cabral terá sido ou não amplamente utilizado. Mas uma dúvida não existe sobre a invenção e o seu autor: “foi sem dúvida pioneiro e media com rigor em profundidade. E demonstrou que a velocidade do escoamento não era máxima à superfície, que era preciso penetrar no escoamento para assim se obter o perfil de velocidade”.

 

Histórias Extra

Um: Como funcionava o molinete?
«Este molinete é de eixo vertical, mergulhado na vertical no escoamento, e consta essencialmente numa roda de latão, com cerca de 16.5 centímetros de diâmetro e está provida de oito pás planas radiais e cada uma tem 5,5 centímetros de altura. Ela tem a roda e está alojada numa caixa metálica com duas tampas, circulares, uma superior e outra inferior. Está lá alojada como se fosse um cilindro, só que a parede do cilindro está fechada em metade do perímetro das tampas e na outra metade está aberta, Portanto, quando a roda era mergulhada na água criava-se um binário, porque uma parte da roda estava protegida do escoamento e a outra era atuada pelo escoamento. Esse binário fazia-a rodar e ela tinha uma bandeirola cá em cima e, portanto, contava as rotações que ela dava num dado intervalo de tempo. Esse intervalo de tempo era medido com um pêndulo. E, portanto, ele sabia a rotação da bandeirola e sabia o intervalo de tempo. Depois, era preciso transformar esta rotação da bandeirola numa velocidade. Para esse efeito, calibrou o seu aparelho através da medição das velocidades à superfície, porque ele só queria calibrar, só queria estabelecer uma relação entre a velocidade de rotação da bandeirola e a velocidade do escoamento. Procedeu a medições da velocidade superficial e assim calibrou as rotações do molinete e apresentou diagramas que nos permitem já saber a velocidade do escoamento em função da profundidade. Uma vez calibrado, era só uma questão de o ir mergulhando. Ia mergulhando e contava as rotações e assim sucessivamente. Admitiu que havia uma proporcionalidade entre a velocidade e as rotações.»
(Maria Manuela Portela)

Dois: Estêvão Cabral e Portugal, partir para voltar
«Nasceu em 1734, no concelho de Castelo Branco. Aos 14 anos foi para Coimbra estudar com os Jesuítas e entrou na companhia de Jesus aos 16 anos. Estava no Colégio de Jesus quando em 1759 o Marquês de Pombal ordenou a expulsão dos jesuítas de Portugal. Foi para Itália, julga-se que para Tivoli, nas proximidades de Roma. Terá sido professor de matemática e de geometria no Colégio de Tivoli.Regressou a Portugal em 1788 em consequência da morte do pai. Trabalhou para a coroa por determinação da rainha Dona Maria I. Ela solicitou-lhe precisamente que analisasse os danos causados na parte jusante do rio Tejo e que propusesse soluções para remediar esses danos, devido às cheias, a que frequentemente era sujeita, e ele apresentou os resultados do estudo sobre as soluções para remediar os danos no rio Tejo e nas zonas ribeirinhas na Academia das Ciências de Lisboa e julgo que este estudo está lá arquivado (1788). Posteriormente também desenvolveu estudos para a ribeira da Ota e para o Rio Mondego. Veio a falecer aos 77 anos, em 1811. Entre os seus 37 e 52 anos publicou 4 livros: dois sobre geometria e um sobre monumentos antigos do território e da cidade de Tivoli. E um quarto livro no domínio da hidráulica. Nesse quarto livro é que inclui um apêndice (era meramente um apêndice) em que apresentava o equipamento que havia concebido para medir a velocidade nos cursos de água naturais, que não somente à superfície. Não lhe foi dado talvez o destaque que merecesse, porque foi um apêndice de um livro de hidráulica.»
(Maria Manuela Portela)

 

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