Episódio 90: O processo individual da aluna Maria de Lourdes Pintasilgo

É um conjunto de documentos que inclui as cadeiras realizadas, os trabalhos apresentados, as notas obtidas, os colegas de turma e que integra o processo individual de uma antiga estudante do Técnico. Seria igual a tantos outros que repousam nos Arquivos do Técnico, se não registasse, passo a passo, o processo de Maria de Lourdes Pintasilgo (1930-2004), desde o momento que entrou na Escola, no curso de Engenharia Químico-Industrial em 1947, até ter à sua conclusão, em 1953. Este processo individual testemunha o percurso académico de uma Engenheira distinta e pioneira, que deixou marcas profundas na sociedade e política portuguesa. Foi a primeira mulher portuguesa Ministra e primeira (e até ao momento única) mulher Primeira-Ministra de Portugal (entre 1979 e 1980).
“Dizem as pessoas que conviveram com ela que sempre tomou consciência do seu papel de mulher e da ausência das mulheres da vida política, das organizações e, portanto, que veio para o Técnico por gosto mas também por decisão racional”, conta Alexandre Tojal, investigador e cocurador do Museu da Presidência da República, que lhe dedicou uma exposição em 2022. “Dizia-se que não havia mulheres engenheiras e ela disse: ‘então vou tirar um curso de Engenharia’. E na verdade, ao longo do seu curso eram cerca de 250 alunos e só três eram mulheres. Foi uma pioneira”, complementa.
Ainda antes da sua atividade política, fez um percurso na vida universitária e ligado à Juventude Universitária Católica (JUC) feminina. “O seu feitio é imediatamente de uma líder, alguém que sabe ouvir mas que toma a liderança com facilidade”, argumenta Alexandre Tojal. Torna-se presidente da JUC e preside ao primeiro congresso internacional da estrutura. Pelo seu currículo passou também a criação da Comissão da Condição Feminina, enquanto Ministra dos Assuntos Sociais e a chefia da Comissão Permanente de Portugal na UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), após a sua saída do governo.

O seu legado e exemplo são, ainda hoje, uma inspiração constante para o país e, em particular, para quem estuda e pretende estudar no Técnico. Em 2016, a Escola decidiu implementar o Prémio Maria de Lourdes Pintasilgo, com o objetivo de “promover a relevância da igualdade de género no Técnico, e reconhecer o papel crucial que as mulheres desempenham em todas as áreas da Engenharia”. Arlindo Oliveira foi presidente do Técnico entre 2012 e 2019 e recorda que a ideia “veio da constatação de que muitas áreas da Engenharia não eram muito atrativas para as mulheres”. “Pensámos que estabelecer um prémio que tivesse como imagem uma pessoa tão importante como a Maria de Lourdes Pintasilgo seria uma forma de termos um modelo que pudesse projetar esta imagem que a Engenharia não só pode ser feita por mulheres, mas que há muitas mulheres que encontram sucesso e satisfação na profissão de Engenharia. A Engenharia é também ou talvez até muito especialmente para as Mulheres”, complementa o professor do Técnico e investigador do INESC ID.
O Prémio é, desde então, atribuído anualmente a duas mulheres: uma Engenheira já avançada na sua carreira, que já demonstrou provas e é uma pessoa reconhecida, e uma jovem graduada. “Foram já distinguidas pessoas que são importantes na sociedade portuguesa e até internacional”, defende Arlindo Oliveira.

A documentação que regista o percurso da antiga estudante da Escola e algumas representações digitais do seu processo poderão também, em breve, ser pesquisadas no sistema de gestão de arquivos que a Universidade de Lisboa está a finalizar. “Temos muitas solicitações de acesso a processos individuais de um conjunto de pessoas conhecidas da política, do meio da cultura, por exemplo, para desenvolver trabalhos de investigação, para desenvolver documentários, filmes, livros…”, enquadra Ana Silva Rigueiro, diretora do Departamento de Arquivo, Documentação e Publicações da Universidade de Lisboa. “O processo conta-nos a sua história”, acrescenta. E a história de Maria de Lourdes Pintasilgo é simplificada desta forma por Alexandre Tojal: “A perspetiva dela era sempre de construção, de abertura ao outro e nunca de exclusão”. Para Arlindo Oliveira, deu “uma série de contribuições muito interessantes na visão que ela tem da sociedade, da engenharia e do papel das mulheres na sociedade”. E não tem dúvidas: “O facto de ser Engenheira do Técnico também contribuiu um bocadinho para ela ser a pessoa que foi”.

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