Episódio 33: O Laboratório de Análises Portátil de Isabel Gago

Isabel Gago é um nome indissociável da história do Técnico: primeira mulher engenheira química, segunda mulher engenheira e a primeira mulher professora do Técnico. A herança que deixou à Instituição vai para além da memória enquanto professora, tendo também sido responsável pela construção de alguns objetos icónicos, como o “Laboratório de Análises Portátil”, ainda durante a primeira metade do século XX.
Falamos de “uma mala que se abre e que expõe todo o arsenal de material para ensaios e que descreve também todos os ensaios que se podem fazer, em particular os ensaios de microanálise, dentro do domínio da mineralogia”, explica João Salvador Fernandes, professor associado do Departamento de Engenharia Química do Técnico. Atualmente guardado no Departamento de Engenharia Química do Técnico, este Laboratório foi “feito ao milímetro” para permitir que os investigadores pudessem usá-lo em trabalho de campo sem precisarem de recorrer a mais nada. “Tinha que haver reagentes em quantidade para cada visita e, ao mesmo tempo, permitia fazer todo o tipo de ensaios sem ter que voltar ao laboratório”, explica João Salvador Fernandes, que descobriu o objeto já depois do falecimento de Isabel Gago (1913-2012).

Descrito ao pormenor em dois artigos da Revista Técnica de 1946, o objeto adapta uma mala de viagem e converte-a num laboratório. É composto por diversas “caixas” que são como estojos com portas de correr, expondo diversos tipos de material: frascos com reagentes, frascos de ácidos fortes, acessórios, almofarizes, uma lupa de relojoeiro, provetas, pipetas, uma ampulheta, vidros de relógio, lâminas, cadinhos e até uma pilha seca de 4,5 volts e outros materiais que já não estão. Entre eles, um está descrito na Revista Técnica como “não existindo no tamanho adequado para caber na caixa”: um maçarico de gasolina. “Havia (ainda) uma lamparina de álcool que se perdeu entretanto, e existia também um equipamento adequado a um tipo de ensaio – a técnica do método eletrográfico – que utilizava a pilha de 4,5 volts e que promovia a oxidação do minério de maneira a que se pudesse fazer a deteção dos seus elementos”, explica.
O interior do Laboratório Portátil, todo em madeira, feito provavelmente nas Oficinas do Técnico (nos anos 40 “conhecidas como oficinas de muito grande qualidade”), utilizava a parte de cima da mala como mesa de trabalho para que as análises pudessem ser feitas por cima dos joelhos do operador. O Laboratório é, de resto, um dos muitos exemplos do engenho que Isabel colocava na construção de “montagens experimentais”, feitos à medida, para que se conseguisse realizar os ensaios que ela pretendia. “Em termos de tamanho, precisão, era tudo desenhado por ela”. Entre os mais notáveis está ainda uma mesa de trabalho onde se pode arrumar material de laboratório. “Tinha que criar, porque não tinha meios. Os financiamentos na altura eram muito reduzidos e portanto era preciso ter muita imaginação para conseguir fazer as coisas e conseguir trabalhar, e conseguir resultados experimentais, como era o caso dela. Ela era muito ativa e quando tinha vontade de fazer uma coisa, não olhava a meios”, explica João Salvador Fernandes.

Isabel Gago dedicou todo o seu percurso ao Instituto Superior Técnico, desde que ingressou como aluna em 1933. Terminou a licenciatura em Engenharia Química em 1939 e foi, a par de Maria Luísa Pereira dos Santos, uma das duas primeiras Engenheiras Químicas licenciadas pelo Técnico. Permaneceu na Escola como assistente, seguindo a carreira de docente universitária até se aposentar em 1984, com 70 anos. Lecionou bastantes cadeiras, em geral na área da eletroquímica e da hidrometalurgia, e deixou marcas em várias gerações de alunos: “Quando havia uma sessão solene no Técnico em que ela estava presente a, fila – como eu digo para o ‘beija mão’ era uma coisa digna de se ver”, recorda João Salvador Fernandes. “Jubilou-se em 1984 e eu tê-la-ia tido como professora nesse ano, portanto já não a apanhei. Mesmo depois de se jubilar continuou a trabalhar por aqui até praticamente aos 80 e muitos anos”, complementa.
Para além da relação com estudantes e do rigoroso trabalho de investigação, ficam também na memória outros “diálogos” que Isabel Gago estabeleceu com autores dos livros que ofereceu à Biblioteca do Departamento. Por exemplo, num livro de John Bockris, um dos grandes eletroquímicos do nosso tempo, anotou o seguinte comentário numa passagem do livro: “Mas isso já eu sabia, eu tinha deduzido isso antes de ti”.

Conteúdo Extra: Duas histórias contadas por João Salvador Fernandes

Um: Isabel Gago, os computadores e a máquina Polaroid
«Conheci a professora Isabel quando comecei a trabalhar como monitor aqui neste laboratório, no laboratório de eletroquímica. Nós na altura todos os membros do grupo tínhamos secretária na mesma sala. Portanto, eu estava na mesma sala da Professora Isabel Gago e do meu orientador na altura e, portanto, convivíamos diariamente e na prática acabei por ajudar também um pouco a professora Isabel porque ela nessa altura estava a iniciar um trabalho em que precisava de tratamento computacional de dados. Então ela comprou um computador – estamos a falar de mais ou menos 1990 – e decidiu-se a trabalhar com ele mas não sabia programar. Portanto, acabei por fazer o trabalho de programação para o tratamento dos dados eletroquímicos que ela produzia. Toda a gente que trabalhou aqui, todos os colegas que ainda cá estão tinham um respeito enorme pelas caraterísticas específicas dela. Todos reconhecíamos que era uma pessoa fora do comum.
O grande empenho em fazer as coisas da melhor maneira, apesar de todas as dificuldades. Diria que o trabalho que ela fazia em 1990 e tal, em termos tecnológicos talvez já se pudessem fazer de uma maneira um pouco mais moderna, mas lembro-me que ainda utilizava por exemplo uma máquina Polaroid para tirar fotografias ao ecrã de um osciloscópio, isso era a técnica que se usaria nos anos 60 talvez mas nos anos 90 tínhamos alternativas um pouco mais viáveis e até rigorosas para tirar dados.
Ela contava diferentes histórias e teve um percurso também que passou por exemplo por Moçambique e pelos efeitos de uma linha de Alta Tensão que passava por cima de Lourenço Marques, na altura. E as dificuldades que ela teve para implementar toda uma gaiola de Faraday lá dentro, para conseguir fazer os ensaios dentro da própria gaiola. Todas estas histórias tinham uma parte bastante animada que mostravam bem o feitio dela.

Dois: Ser Mulher no Técnico no início do século XX
«Isabel Gago foi a primeira mulher professora no Instituto Superior Técnico, sendo também uma das duas primeiras Engenheiras Químicas e como engenheira apenas antecedida pela engenheira civil, Maria Amélia Chaves. Penso que ficou logo no Técnico depois de se formar, o que aconteceu em 1939. Foi um feito e lembro-me de ela contar que mesmo entre homens colegas ser mulher e estudante de engenharia não era bem visto. Lembro-me de ela contar que um colega teria dito “eu quando casar quero que seja com uma mulher a sério”. Há episódios marcantes em que ela assumiu papéis de engenharia pura, portanto um papel que nessa altura era visto como um papel de homem. Mas se pensarmos por exemplo no caso paralelo da engenheira Maria Amélia Chaves, que se dedicou mesmo ao exercício da Engenharia Civil – ela ia a obras, por exemplo. Naquela altura devia ser uma tarefa muito difícil de executar num mundo completamente de homens.
Terá sido muito prejudicada pelos tempos em que viveu, e mesmo assim fez algumas viagens, algumas visitas de estudo, fez algumas estadias em laboratórios estrangeiros, mas nada comparável com aquilo que nós podemos fazer hoje. E portanto a sua própria carreira acabou por ser marcada por essas dificuldades.
A engenheira Isabel Gago, no seu estágio de fim de curso, fez o estágio na Secil, e teve que se mudar para Setúbal para viver numa pensão. Nessa altura tinha que levar a mãe, porque uma menina não podia viver sozinha noutra terra. Segundo ela me contou, uma vez, no dia em que fez a primeira inspeção ao forno rotativo, a fábrica parou porque todos os homens quiseram ver a mulher a inspecionar o forno.
Isabel Gago sentia-se um pouco traída pela forma como foi tratada ao longo dos anos no Técnico, sem dúvida pelo facto de ser mulher. Ela podia ter tido uma carreira ou um estatuto melhor. Ela disse-o nas últimas entrevistas que deu quando começou a aparecer este movimento de reconhecimento e foi homenageada juntamente com a Prof. Sílvia Costa como as duas grandes primeiras professoras do Técnico. Sentia-se essa mágoa nela. Mas o tempo passou e penso que o Técnico já estava em paz com ela e ela em paz com o Técnico.
Deixou um livro publicado e deixou mais trabalhos. Naquela época não se faziam doutoramentos, não tinham oportunidade de os fazer, não tinha orientadores na altura no país, e não tinham possibilidades de ir para o estrangeiro, portanto ela até certo ponto foi um pouco prejudicada. Só passou a Professora com a Lei Pintassilgo, portanto com a criação do Estatuto da Carreira de Docente Universitária, mas todo o conhecimento por um lado e a maneira de estar e o profissionalismo e a postura dela perante a vida ficaram para todos nós».

 

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