Episódio 50 – Portugal, o Hidroplanador

Tem cerca de 19 metros de envergadura e elevou-se nos céus, até aos 140 metros de altitude, partindo da Doca do Bom Sucesso, junto à Torre de Belém, em Lisboa, acabando rebocado por uma embarcação. Se tivesse acontecido ontem com um avião a motor, talvez não fosse nada de especial, mas estamos em 1934 e a falar de um hidroplanador (sem motor) construído desde 1929 por Artur Varela Cid, na altura um jovem estudante do Técnico. Alguns anos depois, repetiu o voo, a partir da Póvoa de Santa Iria, desta vez a 30 metros de altura. E a partir daí, “Portugal, o hidroplanador” nunca mais voou. Era apenas o terceiro hidroplanador do mundo a fazê-lo, numa altura em que o conhecimento aeronáutico ainda germinava.
“Era preciso misturar aerodinâmica com hidrodinâmica porque aterrar na água não é fácil. Mas na altura procurava-se muito isso porque nem sempre as superfícies terrestres estavam preparadas para poder aceitar uma aeronave com rodas. A água sempre dava outra segurança”, explica o Coronel Mota Raposo, diretor do Museu do Ar, onde o aparelho se encontra exposto (no pólo de Alverca).
É o maior objeto exposto no Museu, descrito assim pela Alferes Rita Amaral, Adjunto para a Comunicação de Eventos do Museu: “Um objeto gigante de madeira e tela, com fuselagem e asas de madeira. Não tem motor pelo que não precisa de ser revestido com metal, e é todo revestido em tela (neste momento nas asas não tem)”. “Pode não ter grande história para a Força Aérea e para a aeronáutica militar enquanto todo, mas enquanto evolução tecnológica é uma peça rara”, complementa. Deu um contributo inestimável para o conhecimento das componentes aerodinâmicas de voo e apresentava-se também como uma boa ferramenta de instrução para os aviadores. “Não haver ruído do motor, ter uma habilidade para procurar as ascendentes, gerir bem o voo aproveitando aquilo que a natureza nos dá e ouvir-se apenas o sibilar do vento é algo que é epíteto do que é voar”, resume Mota Raposo.

“Portugal” foi o primeiro grande trabalho de Varela Cid, que se viria a tornar também docente do Instituto Superior Técnico, até 1965. Dedicou toda a sua carreira à aeronáutica e é apresentado por Luís Braga Campos, professor catedrático do Técnico, jubilado e emérito, e que foi também coordenador do curso de Engenharia aeroespacial, como “um caso único de um pioneiro do lado da Engenharia”. “Ele fez um avião a partir do zero. Enquanto que todos os outros usavam aviões comprados. Num período de pioneiros na pilotagem, foi um pioneiro na Engenharia”. Foi possivelmente o único a fazer aviões de raiz em Portugal, tendo também feito o motoplanador São Miguel, também um hidroavião, após o término da 2.ª Guerra Mundial. Conseguiu uma Bolsa de Estudo do Instituto de Alta Cultura, que usou na Alemanha para construir um túnel aerodinâmico, provavelmente o primeiro em Portugal e que foi muito importante para estudantes e professores do Técnico poderem desenhar aviões. No Técnico lecionou três disciplinas – Aerodinâmica e Aeronâutica 1 e 2 – mas acabaria afastado em 1965 na sequência de algumas polémicas. “Acaba por ser uma figura um bocado trágica. Fez coisas boas, inegáveis mas meteu-se em controversas desnecessárias. A combinação das controvérsias e da mentalidade adversa do tempo acabou por prejudicá-lo”, resume Luís Braga Campos.

O que aconteceu ao hidroplanador Portugal entre os seus dois voos e 2016, data em que foi exposto no Museu do Ar, não é também totalmente claro. Passou um período nas instalações do Técnico e, provavelmente, algumas décadas guardado num armazém até ter sido entregue aos cuidados do Museu do Ar, nos anos 80, antes da morte de Varela Cid (1984). Ficou na reserva da coleção do Museu até 2008, ano em que se deu início ao seu restauro, num protocolo entre a Força Aérea e a Escola de Recuperação de Património de Sintra. “Quando cheguei o hidroplanador estava num armazém em Alverca, cheio de pó, com vários orifícios de mau manuseamento. As asas, para serem melhor acondicionadas, foram serradas a meio. Havia muitas das peças em falta e não havia os projetos originais do hidroplanador, o que dificultou um bocadinho a nossa intervenção”, recorda Gonçalo Carneiro, conservador/ restaurador da escola. No processo de restauro estiveram envolvidos cerca de 100 alunos, que o prepararam para novos voos enquanto objeto histórico quase um século depois.
Para o Técnico, para além dos seus hidroaviões e de todo o conhecimento aeronáutico que ajudou a produzir, Varela Cid levou também três aviões reais da 2.ª Guerra Mundial – um Bristol Blenheim, um bombardeiro ligeiro e dois caças pesados Bristol Beaufighter – que permitiram aos estudantes do Técnico conhecerem a estrutura e anatomia de um avião real. Motores, asas e muitas histórias em torno de Varela Cid, como as recordadas dos dias em que ele ia ao Técnico testar os motores do Bristol Blenheim e ninguém conseguia dar aulas.

 

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