Episódio 86: Uma coleção arqueológica no Técnico

Uma caixa cheia de vestígios arqueológicos guarda, no Museu Décio Tadeu, no campus Alameda do Instituto Superior Técnico, algumas pistas que podem ajudar a perceber como era Lisboa há sete mil anos. Esse testemunho da milenar ocupação da capital por seres humanos foi descoberto por prospeções feitas em Monsanto, em 1917, dirigidas por Ernest Fleury (um dos cinco estrangeiros convidados por Alfredo Bensaude para dar aulas nos primórdios da Escola e o primeiro professor de Geologia e Paleontologia no Técnico). Entre os vestígios estavam ossos humanos pré-históricos, coisa rara de encontrar na cidade. “Em Lisboa conhecemos os locais dos vivos mas os mortos fogem-nos”, brinca Carlos Didelet, arqueólogo do Centro de Arqueologia de Lisboa e investigador no Instituto de Arqueologia e Paleociências da Universidade Nova de Lisboa e na Universidade de Évora.
Quando abriu a gaveta com a coleção arqueológica do Técnico teve a mesma sensação de “uma criança no dia de natal quando encontra aquela prenda de que estava mesmo à espera”. Soube da sua existência por acaso, através de duas colegas que estão a fazer a recuperação de vários painéis científicos que estão no Museu (ouvir Episódio 53 – Os painéis científicos). O investigador que também faz escavações em contexto de obras e prospeção de terreno em Monsanto realça a importância de um outro tipo de arqueologia: “Mais do que muitas vezes escavar no terreno, precisamos escavar nos museus. Saber o que há e já foi feito. Muitas vezes esse material fica guardado nos Museus e ao ser revisto é possível fazer um panorama muito mais complexo e com uma visualização muito maior”.

A coleção arqueológica do Técnico é composta, no seu conjunto, por vestígios pré-históricos da ocupação humana, como restos humanos, ossos, utensílios de alimentação e de trabalho, como um machado de pedra, pedras polidas, pontas de sílex e facas. “São relativamente raros no concelho de Lisboa, devido à qualidade da preservação. Ossadas humanas não são assim tão comuns”, explica Manuel Francisco do Departamento de Engenharia de Recursos Minerais e Energéticos do Técnico. “[Fleury], no âmbito da sua incursão pelo país, conseguiu reunir desde rochas mais antigas até coleções arqueológicas que são consideradas as mais recentes do registo do Museu”, complementa. “São materiais muito característicos do neolítico antigo evolucionado, mais ou menos no 5.º milénio antes da nossa Era, e vêm trazer mais interrogações do que que respostas”, contextualiza Carlos Didelet. Para o arqueólogo, este conjunto permite “construir uma imagem completa do que era a pré-história de Lisboa do que há dez anos atrás”. Entre outras coisas, permitem conhecer melhor os movimentos, os símbolos e informação antropológica de relevo sobre essas populações. “Esta coleção é uma pérola que está aqui, uma parte da história da cidade que ficou cristalizada graças ao trabalho de Fleury”. O conjunto está a ser estudado, analisado e comparado e dará origem a uma publicação científica. “Vai continuar a desvendar os seus segredos durante algum tempo. Vai permitir um discurso mais complexo e mais sólido sobre como é que era a pré-história de Lisboa há 7 mil anos atrás”, conclui.

 

História Extra
Como se escava hoje em Lisboa para se saber como era a Lisboa de antigamente?

«É preciso fazer um exercício de imaginação para imaginar como é que seria Lisboa há 7 mil anos atrás. No Centro de Arqueologia, desde 2015, temos desenvolvido um trabalho de investigação acerca da pré-história da cidade. E, por portas travessas, viemos para aqui ao Técnico.
Lisboa tem milénios de existência e a ocupação humana estende-se ao longo desses milénios. É quase inevitável que apareçam esses testemunhos arqueológicos.
A Lisboa do período que estudo – período neolítica entre 5 mil e 7 mil anos atrás – deve ser imaginada com uma topografia acidentada, com uma multitude de linhas de água, algumas bem expressivas. A ribeira de Alcântara, por exemplo, era o grande braço fluvial da cidade.
(…)
Recentemente, começámos a fazer a prospeção de campo, em Monsanto, a ver se era possível localizar antigos locais onde tinha sido feitas intervenções arqueológicas. O facto de ter sido construída Monsanto, permitiu que se encontrassem vestígios arqueológicos à época, nos anos 40 e 50. No nosso tempo foi possível relocalizar onde tinham sido feitas essas intervenções, sabemos que os locais ainda estão lá, em alguns sítios alterados. [Com a construção do Parque de Monsanto] criou-se uma camada protetora que nos permite recuperar informação que não foi obtida nessa época, mas que hoje com meios não-invasivos, é possível. Através de um georadar, é possível obter a leitura e identificar possíveis bolsas onde estarão os materiais arqueológicos ou estruturas. Dá indicação se vale a pena abrir ali uma escavação.
Por outro lado, Lisboa nos últimos anos tem conhecido uma grande explosão no mercado imobiliário e principalmente na zona mais antiga, como o Bairro Alto e a zona ribeirinha, e aparecem regularmente vestígios da ocupação pré-histórica de Lisboa. No Bairro Alto, no interior dos edifícios, levantamos o chão da época contemporânea ou daquilo que chamamos da época moderna e aparece-nos os contextos pré-históricos preservados logo abaixo dos pisos de época moderna.
Encontramos, por exemplo, muralha de época romana, contextos romanos muito bem preservados, a famosa estela com carateres fenícios mas escrita numa língua lusitana (com muitas aspas), onde era possível ler dois nomes de pai e filho que viveram em Lisboa há 3500 anos, antes da romanização, mas que sabiam ler e escrever com carateres fenícios…
(…)
Quando os proprietários dos imóveis querem fazer alguma intervenção de fundo, é obrigatório ter arqueologia prévia para intervencionar, registar e guardar os eventuais achados arqueológicos. Só quando a arqueologia acaba o seu trabalho, vêm os construtores.»
(Carlos Didelet)

 

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