Episódio 48 – Os AGVs: da feira da ladra ao ITER

Às vezes basta engenho, criatividade e tempo para dar força a uma ideia. Em poucos anos, um “cangalho”, construído com aproveitamento de rodas de patins e motores de para-brisas comprados na Feira da Ladra, materializou-se num conjunto de AGVs (Automated Guided Vehicles) cruciais para o funcionamento de um dos centros de investigação mais avançados do mundo (o ITER – International Thermonuclear Experimental Reactor), atualmente em construção em França.
Para perceber a história dos AGVs do Técnico, é preciso recuar aos anos 80. Um conjunto de professores do Departamento de Mecânica decidiu criar um novo projeto para motivar alunos, aqui relembrado por Carlos Pinto Ferreira, professor associado aposentado do Técnico e investigador do Instituto de Sistemas e Robótica (ISR): “Era um grupo de professores que começou a ter umas ideias completamente malucas: falar em robótica, robótica móvel, robótica inteligente, robótica submarina. Ficávamos sempre com aquela sensação de estarmos sempre a falar de coisas que nos pareciam pura ficção científica”. Dessas ideias surgiu a vontade colocar os alunos do Técnico a “pôr a mão na massa” e assim nascia uma disciplina nova – Projeto e realização de sistemas de controlo – e com ela o primeiro AGV do Técnico. Feito com material em segunda mão, oriundo da Feira da Ladra e do ferro velho de Sacavém, surgia o robot com 50cm, rodas de patins e motores de limpa-brisas para o movimento, simpaticamente apelidado de “cangalho” por Carlos Pinto Ferreira. É o processo de criar uma coisa nova: “Juntar essas peças todas para criar um sistema inteligente e reativo, que faça qualquer coisa. A robótica tem esse lado interessante de fazer síntese, de brincar aos deuses. E os alunos reagiram muito bem a isto. Criou uma energia muito interessante da parte de quem é novo e quer ser engenheiro”, defende.

“Nós não tínhamos muito dinheiro para fazer isto, não tínhamos nenhum. Como engenheiros tínhamos que usar o engenho para o que a gente precisava”. A visão é de Isabel Ribeiro, professora catedrática aposentada do Departamento de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores do Técnico e professora distinta do Técnico e investigadora do ISR, que acompanhou de perto o processo. Em 1988 já estava no Técnico como doutorada e também começou a fazer trabalhos com AGVs com os seus alunos. Dessa experiência à aplicação de boas ideias na indústria foi um pequeno passo. A empresa Efacec interessou-se pela tecnologia para a aplicar no transporte automático de materiais nas suas fábricas e Isabel Ribeiro montou uma equipa para concretizar a parceria. O Técnico avançava, no início dos anos 90, com o conhecimento de controle do veículo, software do veículo e e software de gestão da movimentação dos veículos e a empresa ficava responsável pela parte mecânica e eletrónica de potência.
Construíram-se quatro AGVs industriais, cada um com dois metros e com níveis de complexidade muito superiores ao “cangalho” original. “Tinham que andar para a frente e para trás e, portanto, tinham bobines, nas rodas da frente e rodas de trás, e tinham que fazer paragens de precisão. Tinham que recolher paletes com material em pontos precisos à saída dos armazéns automáticos, viajar pela fábrica e deixar estas paletes em cima de mesas de trabalho. A precisão com que paravam tinha que ser menor que um centímetro”, recorda Isabel Ribeiro. “Estávamos, sobretudo em Portugal, nos primórdios deste tipo de transporte automático de materiais. Não se sabia o que era”, complementa. Para Jorge Couto, atual responsável pela Costo Intralogistic e na altura representante da Efacec, a parceira teve o mérito de transformar inverter a tendência de desperdício de projetos que provêm das Universidades. “As boas ideias não eram devidamente industrializadas”, aponta.

O percurso desta “boa ideia” não ficou por aí e, alguns anos mais tarde, os seus princípios são aplicados numa escala ainda maior. Verdadeiros camiões, com 8,5 metros de comprido, 2,5 metros de largura e 3 metros de altura, são desenhados para a difícil missão de fazer a manutenção das paredes do gigante Tokamak do ITER, o reator de fusão nuclear deste projeto internacional de grande dimensão, 40 vezes maior que o do Técnico (ver episódio 11). Num ambiente com radiação, com curvas apertadas e sem margem de erro possível, a solução escolhida nasceu a partir da experiência do Técnico e de Isabel Ribeiro, depois de rejeitada uma proposta de uma equipa japonesa. “Fomos convidados a fazer um desenho conceptual alternativo ao desenho dos japoneses [no final dos anos 90]. Muitos anos passados, e já numa fase mais avançada do ITER, a ideia que está por trás dos veículos que já estão a ser construídos é a nossa. Portuguesa, do Técnico, do ISR. Terei muito orgulho quando o ITER começar a funcionar e pensar que um bocadinho de mim está ali”, partilha Isabel Ribeiro.

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