Episódio 69 – A câmara anecóica

Comunicamos também através de silêncios. A expressão ganha, na câmara anecóica do Instituto Superior Técnico, um significado muito mais amplo: nesta pequena “sala” instalada no complexo interdisciplinar do campus Alameda é criado um silêncio artificial, um “silêncio de laboratório”, onde o que se ouve é pouco mais do que nada, como se escutássemos o zero. “Entramos num mundo completamente não sonoro. Isto é uma zona de laboratório onde absolutamente não há som, não há transmissão de som do exterior. Tudo o que ouvimos aqui é imediatamente emitido. Não há reflexão, não há reverberação e quando a gente se cala e não emite som temos aqui, de forma artificial, construído o silêncio”, explica José Bento Coelho, professor aposentado do Técnico e responsável pelos laboratórios de acústica da instituição. O termo anecóico significa, precisamente, “sem eco” e é esse o segredo deste instrumento que desde os anos 70 surpreende os visitantes e os deixa “em choque”. Falamos de uma câmara anecóica acústica (também há as eletromagnéticas e uma delas funciona na cave da Torre Norte do Técnico) e o seu mecanismo, explicado por José Brázio, professor aposentado do Departamento de Engenharia e Eletrotécnia e Computadores do Técnico, funciona mais ou menos assim: “É um volume onde se pode colocar uma fonte de uma forma específica de energia que irradia essa energia e com paredes tais que não refletem essa energia. As fontes emissoras são fontes de energia acústica – podem ser altifalantes, máquinas que produzem outro tipo de ruídos – e não existem reflexões dessa energia acústica quando incide sobre as paredes”. Por outras palavras, é como se as paredes (e teto e chão da câmara) fossem acusticamente transparentes, uma vez que não refletem o som e este perde-se. “Quando estamos numa sala normal, num espaço fechado, isso nunca acontece, porque há sempre superfícies que vão refletir e há o aproveitamento da energia que lá chega e volta para trás através da reflexão”, explica Bento Coelho. “Isto é uma sala apenas porque é um espaço fechado visualmente, porque sonoramente não é. Isto claramente é como se fosse um espaço completamente aberto”, complementa. “Numa sala normal grande parte do som que ouvimos é o som refletido. Ali passamos a ouvir só o som que vem através da sua condução óssea para o ouvido interno. Começamos a ouvir a nossa respiração e até a pulsação cardíaca e o sangue a passar nas nossas artérias”, descreve José Brázio. 

A “sala” é uma espécie de paralelepípedo completamente autónomo e isolado do resto do edifício. Está assente à base do edifício através de uma rede de molas. É como se fosse um edifício dentro do edifício. “No andar de cima podem pôr uma banda a tocar hard rock à vontade que aqui não chega nada”, garante Bento Coelho. As paredes, tal como o teto e o chão da câmara, são feitas com peças em forma de cunha, em material altamente absorvente do som, composto por fibras de vidro. E no meio da câmara, há uma rede que suspende os visitantes no espaço, para as pessoas andarem dentro dela, ou montarem as suas experiências e os seus equipamentos.

Foi a primeira e continua a ser única no país. Surgiu nos anos 70 integrada num movimento que definia o Técnico como a primeira escola do país a ter laboratórios completamente equipados. A câmara juntava-se um conjunto valiosíssimo de equipamentos de medida, como microfones e equipamento de processamento de sinal. A filosofia passava, como recorda José Manuel Fonseca de Moura, atual professor na Universidade de Cornegie Mellon (Estados Unidos) e antigo professor catedrático do Técnico, por definir que “a investigação tinha que ter coisas ligadas à prática. Ter gente de grande qualidade mas também instrumentos únicos”. “Nos finais dos anos 60, princípio da década de 70, a pensar fazer um Instituto na área das engenharias, Abreu Faro pensa em montar laboratórios competitivos relativamente ao panorama europeu. A câmara anecóica era um plano para o futuro”, explica.

Esta câmara anecóica serve, essencialmente, para caracterizar fontes acústicas. Apesar de algumas tarefas já poderem ser feitas de forma digital, graças às técnicas de processamento de sinais (onde se consegue separar o som emitido do som refletido), “há um conjunto de testes, de fontes sonoras, de microfones, sensores que tem que ser feito num espaço deste tipo para testar exatamente a emissão e a reflexão e os caminhos de propagação sem influências dos materiais envolventes”, aponta Bento Coelho. E atenção que a investigação faz-se com os técnicos lá fora. “Nós temos muita absorção, sobretudo no inverno. Também somos peças que refletem um pouquinho”. 

Para além disso, tem sido importante no teste de sensores tridimensionais para ruído ambiente, para sistemas de smart cities, que tentam medir o que é percebido pelo ser humano e analisar como é que os espaços podem influenciar a noção de bem-estar. “Tem muita importância por exemplo na arquitetura. Importa que as cidades sejam espaços cada vez mais agradáveis”, explica Bento Coelho. 

A câmara anecóica tem tido também ao longo das últimas décadas uma função fundamental do ponto de vista pedagógico, de apoio às aulas do Técnico, mas também aos visitantes externos que experimentaram viver sem eco. Já foi palco de gravações de música experimental, mas é a sua missão científica que se vislumbra firme no futuro. “Não vejo que tecnologicamente as coisas mudem muito, antes pelo contrário. Acho que há necessidades cada vez maiores de conforto sonoro e de qualidade acústica”, aponta Bento Coelho. Opinião partilhada por Fonseca de Moura: “Não é um mecanismo que se torne obsoleto. É um instrumento físico que estuda a propagação das ondas acústicas de determinados comprimentos de onda. E essas são imutáveis, continuarão”.

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