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Episódio 71 – A taça do campeonato de voleibol

sexta, dezembro 2nd, 2022

Os estudantes do Técnico têm, desde os finais dos anos 30, lugar reservado na História do voleibol português. Mais do que isso: o Técnico (através da equipa da AEIST – Associação dos Estudantes do Instituto Superior Técnico) venceu a primeira competição oficial realizada em Portugal (o Campeonato de Lisboa, em 1939/1940), venceu as primeiras sete edições do Campeonato Nacional de Voleibol (entre 1946/47 e 1953/53) e deu continuidade a essa fase dourada, conquistando 13 campeonatos nacionais dos primeiros 21 realizados em Portugal. A última taça de campeão chegou ao Técnico na época 1967/68, o que ainda hoje é suficiente para colocar o Técnico como segunda equipa nacional com mais campeonatos, com mais três que o Benfica (10) e apenas superada pelos 18 campeonatos do Sporting de Espinho. No palmarés consta ainda uma Taça de Portugal, conquistada em 1966/67 (e uma final em 1976/77).
Um dos testemunhos que contam a história dessa fase de ouro é Taça de 1948, cuidadosamente guardada pela AEIST e que faz o serviço para este episódio. É ainda anterior à chegada de João Raimundo à equipa, onde esteve desde 1950 até disputar o seu último jogo em 1957, em Rabat, a contar para a Taça dos Campões Europeus. No seu palmarés acumulou “seis ou sete campeonatos” e testemunhou uma viragem no voleibol nacional: o início da profissionalização. “Nessa altura, Portugal era um país esquisito, isolado e existia uma coisa chamada Cortina de Ferro. Conhecíamos a França, que tinha cá vindo jogar uma vez ou duas, e a Itália”, recorda. Mas tudo mudaria em 1954, com a visita de uma equipa Jugoslava ao país. Dois dos atletas não voltariam ao seu país de origem e tornar-se-iam os primeiros jogadores profissionais em Portugal, no Sporting. Ficou traçado o destino do primeiro campeonato nacional que o Técnico não ganhou (1953/1954), mas que viria a ser recuperado na época seguinte: “Em 1955 deu-se um milagre e ganhamos aquilo por 3-1 ou 3-2”, recorda.
Talvez venha dessa vontade de superação um estatuto muito especial que os jogadores do vólei do Técnico tinham dentro da Instituição. “Eram apontados. Olha, aquele faz parte da equipa, porque eles destacavam-se. E a equipa de vólei era qualquer coisa que era reconhecida no Técnico e fora do Técnico. Havia um carisma. Havia ali uma áurea”, recorda José Manuel Antelo, engenheiro formado pelo Técnico em 1955 e que, em 2022, com 90 anos de idade, voltou a ter cartão de estudante. Inscreveu-se em duas cadeiras de matemática no 1.º ano de Engenharia Mecânica. Porquê? “Nestes últimos 50 anos a matemática teve um de desenvolvimento e tomou direções completamente diferentes daquelas que tinha estudado e tenho curiosidade de aprender”.
Também inspirado por essa “áurea” chegava à equipa, em 1965, Luís González Briz, antigo estudante de Engenharia Química e Industrial do Técnico, onde permaneceu até 1971. “Tive a imensa alegria de conquista dois campeonatos nacionais seguidos”, recorda. Mas ser jogador do Técnico, nesse período, não era só estatuto, exigia também muita entrega. “Achei que indo para uma equipa ainda por cima vencedora me podia adaptar bem. Os primeiros treinos forma difíceis porque eles já eram quase todos uns craques. A minha sorte era que na altura era vulgar o chamado campeonato de reservas. Foi essa dinâmica que me seduziu”, descreve. Mas também exigia algum esforço financeiro, em contracorrente ao profissionalismo emergente: “Era vulgar pagarmos o duche. Quando treinávamos três dias por semana, havia no Técnico o Sr. Domingos da AEIST que nos ia cobrar após o banho, um escudo por cada duche que tomávamos”, lembra. Também as deslocações e as refeições eram apoiadas pelos atletas mais velhos, alguns já inseridos no mercado de trabalho. “Não só não tínhamos qualquer subsídio como ainda tínhamos de pagar para jogar”, resume.

O Técnico não foi só um projeto vencedor no panorama nacional do voleibol, foi também um dos berços da modalidade no país, em particular na sua transição para o território continental. A modalidade terá sido introduzida no país pelas tropas americanas estacionadas nos Açores durante a 1.ª Guerra Mundial. E quem a trouxe para o continente foi precisamente um antigo aluno do Técnico, Augusto Cavaco, considerado o “pai do voleibol em Portugal”. Destacou-se como jogador, mas sobretudo como treinador: “Foi treinador de nós todos e tutor, porque havia muitos que eramos órfãos, não tinham família e tivemos o nosso mentor desportivo e não só”, descreve João Raimundo. Fundou a equipa de vólei do Técnico e acompanhou-a de perto até à sua morte, em 1975. O seu legado mantém-se até hoje, com uma soma interminável de títulos e histórias, mas também com uma herança honrada pelos atuais estudantes do Técnico, que continuam a competir e a conquistar campeonatos regionais e nacionais universitários com as cores da AEIST. Atualmente com equipas masculinas e femininas A e B, os atletas de voleibol do Técnico personificam em cada lance a História do voleibol português.

 

História Extra:
A morte trágica de Augusto Cavaco, pai do voleibol nacional e guia espiritual de uma geração no Técnico
«Quando veio estudar para o Técnico fundou a equipa de vólei e acompanhou-a até 1975 quando morreu. Foi o nosso guia espiritual durante esses anos todos.
Numa altura de dificuldade até em termos económicos na AEIST – ele tinha na altura a única empresa em Portugal de sondagens -, ajudava a suportar as despesas que tínhamos em deslocações, transportes, etc.
Dava conselhos básicos e tão básicos que ainda hoje são raros: cumprir os horários, fazer o que ele mandava, esforçarmo-nos ao máximo para fazer as coisas como deviam ser, nunca desistir. Formaram-nos mesmo a nível pessoal e profissional de cada um. E foi padrinho de uma data de filhos nossos ao longo da vida. (Quando adoeceu passou a estar nos açores com mais regularidade para recuperação e descanso)
Houve um dia que ele estava nos Açores e foi almoçar a casa de um outro amigo na ilha de São Miguel. Quis ir num barco a remos, o mar estava mau, os pescadores avisaram-no. Ele quis ir sozinho a remos. E depois telefonaram a um de nós já retirado do vólei, o José Carlos Viana, jogador do Técnico também internacional, que na altura era Secretário de Estado da Marinha Mercante, a dizer que tinha havido um acidente e ele foi com um avião militar no próprio dia e foi com as autoridades, à Falésia, a um sítio chamado Mosteiros, uns rochedos no meio do mar, onde viu ainda o corpo que tinha o fato de treino do Técnico vestido,  depois desapareceu com o mar, umas horas depois…»
(João Raimundo)

Episódio 70 – O dínamo de Gramme

sexta, novembro 25th, 2022

Ter aparelhos capazes de gerar correntes contínuas de eletricidade pode não parecer nada de especial nos dias que correm (quase todos os gadgets eletrónicos, por exemplo, trabalham com corrente contínua) mas tal era ainda uma miragem até ao aparecimento do Dínamo de Gramme, que nos chegou a partir de uma técnica desenvolvida em 1871 por Zénobe Gramme. Após a construção e comercialização do dínamo por François Breguet, entre 1882 e 1885, a técnica tornou-se mesmo incontornável para a área da eletrotecnia. “É a primeira vez que se consegue a partir do movimento de rotação, numa bobine inserida num campo magnético, ter uma tensão constante, quase sem flutuações no tempo. Isso passou a ser usado em praticamente todos os dínamos construídos a partir desta altura”, explica Moisés Piedade, professor aposentado do Departamento de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores do Técnico e um dos fundadores do Museu Faraday.

Quando falamos de um dínamo elétrico referimo-nos a um conversor de energia que transforma energia mecânica de rotação numa tensão contínua sendo, por isso, considerado um gerador elétrico. Depois da pilha de Volta, o dínamo foi a primeira fonte de energia de tensão contínua com capacidade de gerar potências elétricas elevadas. Com o Dínamo de Gramme chegava assim a revolução: “é dos objetos, ao nível de geração da tensão contínua, que eu considero dos mais importantes na eletrotecnia. Até ali eram objetos também baseados na rotação de bobinas na presença de campos magnéticos, mas a tensão obtida era pulsada, com muitas variações no tempo”, explica. Esta mudança de paradigma “deve-se a uma invenção – o anel de Gramme – que é a maneira como é enrolada a parte da bobine móvel, que é um anel contínuo com diferentes tomadas em vários pontos. Essas tomadas são ligadas a um coletor que depois apoia sobre duas escovas, de modo que quando se roda, aquele anel roda no campo magnético, produz sempre a tensão positiva no polo positivo de saída, independentemente da posição em que está aquela bobina que roda”, aprofunda Moisés Piedade.

Gramme terá chegado a este dínamo através de uma experiência assim descrita por Moisés Piedade: “Fez um dínamo e ligou-o a outro situado a 500 metros de distância. Foi a primeira vez que se verificou que um dínamo gerava uma tensão contínua e o outro funcionava como motor. E isto foi uma revolução grande em termos de eletrotecnia porque mostrou que este dínamo pode funcionar quer como gerador, quer como motor. Nós hoje em dia, nos carros elétricos temos isso”. A mesma máquina pode, assim, ser um motor – a partir da eletricidade gerar energia mecânica, mas a partir da energia mecânica também gerar eletricidade.

Este exemplar histórico do Dínamo de Gramme encontra-se no Museu Faraday, no campus da Alameda do Técnico, partilhando a atenção dos visitantes com objetos que contam a história da eletricidade, da eletrónica, da informática, do som e da imagem, entre outras áreas do saber. É um dos poucos construídos por Breguet, conhecido sobretudo pela sua atividade enquanto relojoeiro de alta precisão. Um dos seus relógios mais famosos – o n.º 160 – terá sido encomendado por oficial da “Guarda da Rainha” e amigo íntimo da rainha Maria Antonieta, a quem seria alegadamente oferecido. Mas nunca chegou ao seu destino. O relógio “Rainha Maria Antonieta” é considerado o mais emblemático dos cerca de 1500 relógios que fez em toda a sua vida, tendo demorado 44 anos a ser concluído.
Ao valor do exemplar junta-se, assim, o valor de quem o construiu. Quando foi desviado para o Museu, o Dínamo de Gramme estava, contudo um pouco desvalorizado. Ou, por outras palavras, desmagnetizado e sem funcionar. Foi, de imediato, submetido à filosofia do Museu Faraday, assim resumido por Moisés Piedade: “as coisas que temos aqui têm que estar a trabalhar, se não estão, temos de as pôr”.

 

Episódio 69 – A câmara anecóica

sexta, novembro 18th, 2022

Comunicamos também através de silêncios. A expressão ganha, na câmara anecóica do Instituto Superior Técnico, um significado muito mais amplo: nesta pequena “sala” instalada no complexo interdisciplinar do campus Alameda é criado um silêncio artificial, um “silêncio de laboratório”, onde o que se ouve é pouco mais do que nada, como se escutássemos o zero. “Entramos num mundo completamente não sonoro. Isto é uma zona de laboratório onde absolutamente não há som, não há transmissão de som do exterior. Tudo o que ouvimos aqui é imediatamente emitido. Não há reflexão, não há reverberação e quando a gente se cala e não emite som temos aqui, de forma artificial, construído o silêncio”, explica José Bento Coelho, professor aposentado do Técnico e responsável pelos laboratórios de acústica da instituição. O termo anecóico significa, precisamente, “sem eco” e é esse o segredo deste instrumento que desde os anos 70 surpreende os visitantes e os deixa “em choque”. Falamos de uma câmara anecóica acústica (também há as eletromagnéticas e uma delas funciona na cave da Torre Norte do Técnico) e o seu mecanismo, explicado por José Brázio, professor aposentado do Departamento de Engenharia e Eletrotécnia e Computadores do Técnico, funciona mais ou menos assim: “É um volume onde se pode colocar uma fonte de uma forma específica de energia que irradia essa energia e com paredes tais que não refletem essa energia. As fontes emissoras são fontes de energia acústica – podem ser altifalantes, máquinas que produzem outro tipo de ruídos – e não existem reflexões dessa energia acústica quando incide sobre as paredes”. Por outras palavras, é como se as paredes (e teto e chão da câmara) fossem acusticamente transparentes, uma vez que não refletem o som e este perde-se. “Quando estamos numa sala normal, num espaço fechado, isso nunca acontece, porque há sempre superfícies que vão refletir e há o aproveitamento da energia que lá chega e volta para trás através da reflexão”, explica Bento Coelho. “Isto é uma sala apenas porque é um espaço fechado visualmente, porque sonoramente não é. Isto claramente é como se fosse um espaço completamente aberto”, complementa. “Numa sala normal grande parte do som que ouvimos é o som refletido. Ali passamos a ouvir só o som que vem através da sua condução óssea para o ouvido interno. Começamos a ouvir a nossa respiração e até a pulsação cardíaca e o sangue a passar nas nossas artérias”, descreve José Brázio. 

A “sala” é uma espécie de paralelepípedo completamente autónomo e isolado do resto do edifício. Está assente à base do edifício através de uma rede de molas. É como se fosse um edifício dentro do edifício. “No andar de cima podem pôr uma banda a tocar hard rock à vontade que aqui não chega nada”, garante Bento Coelho. As paredes, tal como o teto e o chão da câmara, são feitas com peças em forma de cunha, em material altamente absorvente do som, composto por fibras de vidro. E no meio da câmara, há uma rede que suspende os visitantes no espaço, para as pessoas andarem dentro dela, ou montarem as suas experiências e os seus equipamentos.

Foi a primeira e continua a ser única no país. Surgiu nos anos 70 integrada num movimento que definia o Técnico como a primeira escola do país a ter laboratórios completamente equipados. A câmara juntava-se um conjunto valiosíssimo de equipamentos de medida, como microfones e equipamento de processamento de sinal. A filosofia passava, como recorda José Manuel Fonseca de Moura, atual professor na Universidade de Cornegie Mellon (Estados Unidos) e antigo professor catedrático do Técnico, por definir que “a investigação tinha que ter coisas ligadas à prática. Ter gente de grande qualidade mas também instrumentos únicos”. “Nos finais dos anos 60, princípio da década de 70, a pensar fazer um Instituto na área das engenharias, Abreu Faro pensa em montar laboratórios competitivos relativamente ao panorama europeu. A câmara anecóica era um plano para o futuro”, explica.

Esta câmara anecóica serve, essencialmente, para caracterizar fontes acústicas. Apesar de algumas tarefas já poderem ser feitas de forma digital, graças às técnicas de processamento de sinais (onde se consegue separar o som emitido do som refletido), “há um conjunto de testes, de fontes sonoras, de microfones, sensores que tem que ser feito num espaço deste tipo para testar exatamente a emissão e a reflexão e os caminhos de propagação sem influências dos materiais envolventes”, aponta Bento Coelho. E atenção que a investigação faz-se com os técnicos lá fora. “Nós temos muita absorção, sobretudo no inverno. Também somos peças que refletem um pouquinho”. 

Para além disso, tem sido importante no teste de sensores tridimensionais para ruído ambiente, para sistemas de smart cities, que tentam medir o que é percebido pelo ser humano e analisar como é que os espaços podem influenciar a noção de bem-estar. “Tem muita importância por exemplo na arquitetura. Importa que as cidades sejam espaços cada vez mais agradáveis”, explica Bento Coelho. 

A câmara anecóica tem tido também ao longo das últimas décadas uma função fundamental do ponto de vista pedagógico, de apoio às aulas do Técnico, mas também aos visitantes externos que experimentaram viver sem eco. Já foi palco de gravações de música experimental, mas é a sua missão científica que se vislumbra firme no futuro. “Não vejo que tecnologicamente as coisas mudem muito, antes pelo contrário. Acho que há necessidades cada vez maiores de conforto sonoro e de qualidade acústica”, aponta Bento Coelho. Opinião partilhada por Fonseca de Moura: “Não é um mecanismo que se torne obsoleto. É um instrumento físico que estuda a propagação das ondas acústicas de determinados comprimentos de onda. E essas são imutáveis, continuarão”.

Episódio 68 – A maquete do campus Taguspark

sexta, novembro 11th, 2022

O campus do Técnico em Oeiras foi inaugurado em 2000 e assumiu-se como um peça fundamental do ensino e da investigação da instituição. Integrado no Taguspark, hoje autodenominado “cidade do conhecimento”, o campus é ainda uma pequena parte do que foi idealizado e fixado nos anos 90.
A maquete do campus Taguspark, datada desse período, faz lembrar uma espécie de sextante (vista de cima), com uma rotunda central e vários edifícios radiais e circulares interligados. No terreno, estamos ainda no início do processo de aplicação de uma ideia desenvolvida por José Tribolet e Lourenço Fernandes, professores no Técnico, ainda no final dos anos 80, e sintetizada no projeto chamado Portugália. “Estivemos na Califórnia a trabalhar no desenho de um projeto que era uma coisa que tinha 300 hectares e que visava criar toda uma estrutura nova no país que fosse rentável a 40 ou 50 anos de distância”, explica José Tribolet, professor catedrático jubilado do Técnico, também fundador, antigo presidente do INESC – Instituto de Engenheira de Sistemas e Computadores e um dos criadores e antigo presidente do Departamento de Engenharia Informática. O projeto consistia na criação de um “parque de desenvolvimento de empresas de nova tecnologia e que precisava de ter ensino, investigação e sobretudo jovens estudantes que ficavam lá a trabalhar e iam lançar as suas empresas”. Esta ideia para uma espécie de “Coimbra dos tempos modernos” materializar-se-ia na constituição de uma sociedade em que em que as partes académicas (ensino e investigação) ficariam com 30% e 30 hectares de terreno.

Estamos a descrever o código genético do atual Taguspark, que se instalaria em Oeiras, depois de terem sido consideradas possibilidades como Santarém, Mafra, Setúbal e arredores de Lisboa. Ao avanço da autarquia de Oeiras juntaram-se a Universidade Técnica de Lisboa (UTL), hoje integrante da Universidade de Lisboa e o INESC. Nuns estatutos muito discutidos, fixavam-se 15 hectares de terreno para o Técnico, dez para o INESC e cinco para a UTL, ficando ainda reservados quatro hectares para a construção de residências escolares.
Fechado o conceito, era tempo de dar forma a um projeto arquitetónico. Do concurso público saiu vencedor, em 1997, um projeto de Manuel Pardal Monteiro e João Pardal Monteiro (a saber: sobrinhos-netos de Porfírio Pardal Monteiro, o “arquiteto de Lisboa” (1897-1957) – que projetou, entre 1928 e 1935, as instalações do campus do Técnico na Alameda (ouvir episódio 19) – e filhos de António Pardal Monteiro, sobrinho de Porfírio, autor dos projetos de ampliação nas instalações da Alameda, as Torres Norte e Sul, e também o edifício conhecido como Pavilhão de Civil, nos anos 90). “A dada altura no Técnico havia uma corrente que dizia ‘os Pardais fazem tudo, isto não pode ser, vamos abrir um concurso público internacional para fazer o campus do Taguspark’. O meu pai concursos não era com ele. Já tinha uma certa idade e não precisava disso. Nós, pelo contrário, éramos jovens arquitetos e precisávamos de nos afirmar. Quando falaram no concurso decidimos que tínhamos que fazer e ganhar”, lembra o arquiteto Manuel Pardal Monteiro. E assim foi.
Do projeto ao terreno a viagem não foi fácil e ainda ficou muito por fazer. “Desenvolveu-se aos bocadinhos, à medida dos orçamentos (entre 1997 e 2008). Está uma pequeníssima parte no terreno, apenas”, explica Manuel Pardal Monteiro. “Os financiamentos não foram distribuídos. Se não fosse o Técnico, a sua força, a sua autoridade, e a sua capacidade de decisão, não tinha sucedido nada”, defende José Tribolet. A decisão foi tomada por Diamantino Durão, presidente do Técnico entre 1984-1991 e entre 1993 e 2000, que decidiu avançar de forma progressiva em de vez de esperar para ter financiamento para todo o projeto.

Voltamos a 2000, com o campus no Taguspark pronto a abrir ao público, agora com o testemunho de Guilherme Arroz, antigo professor do Departamento de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores do Técnico e antigo diretor adjunto para o Taguspark, durante o processo de abertura das instalações. “Todos nós tínhamos a visão de que era necessário olhar para as telecomunicações em Portugal e desenvolver uma coisa que nos permitisse seguir o que estava a acontecer no mundo todo. E quem diz telecomunicações, diz a introdução dos computadores, da automação, digamos da utilização de sistemas de informação em todo o tipo de atividades”, explica. A ideia para o campus era de “era preciso ter uma perspetiva diferente e mais interveniente do Técnico” (ouvir episódio 67). E apesar de grande parte do projeto estar por construir, Guilherme Arroz não tem dúvidas: “O Taguspark vai cumprir a sua missão. Está é com 20 anos de atraso”.

Episódio 67 – O projeto SUBA

sexta, novembro 4th, 2022

Estamos numa garagem do campus do Técnico no Taguspark, em Oeiras, no início do século XXI. Miniaturas de um carro Subaru Impreza, programadas por estudantes do Técnico, circulam numa pista à escala e com um traçado semelhante ao do autódromo do Estoril. Estão a disputar o Troféu SUBA, o culminar de um projeto interdisciplinar com o mesmo nome, transversal a vários cursos do Técnico. O objetivo da competição passava por dar um certo número de voltas no menor tempo possível, mas havia estudantes que faziam de tudo, como colocar o carro a ligar luzes, a tocar música, e não estavam livres de alguns despistes pelo meio.
Já o projeto pedagógico SUBA explorou o entusiasmo que o rally provocava nas gerações mais novas, no período áureo do piloto Colin McRae que deu nas vistas (e conquistou o Rally de Portugal de 1998) ao volante de um Subaru, para imprimir uma filosofia aos cursos do Técnico que seriam lecionados no novo campus do Taguspark (em Oeiras), inaugurado em novembro de 2000.

Moisés Piedade, professor aposentado do Instituto Superior Técnico e na altura coordenador do curso de Engenharia Eletrónica, explica o que esteve na sua génese: “criar um projeto que pudesse ir evoluindo e acompanhando as várias disciplinas ao longo do curso”. O objetivo inicial era que os estudantes pudessem estudar os sistemas elétricos e eletrónicos do carro, mas o alcance alastrou-se a grande velocidade. O SUBA “nasceu” na disciplina de desenho da Eletrónica e permitiu a criação de uma caixa de velocidades eletrónica com circuitos lógicos para a miniatura do carro que, entretanto, deixara de ser telecomandado, para que os alunos cumprissem determinados objetivos como dar ao bólide instruções de aceleração, travagem e mudança de direção. Por outras palavras, que o pudessem conduzir através de programação, testando-o em pistas criadas no chão dos laboratórios e na mencionada garagem.
“A ideia era que os alunos percebessem que o ensino de engenharia não é uma corrida de barreiras em que cada um segue a sua pista. As várias disciplinas estão interligadas”, complementa Rui Rocha, professor no Departamento de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores do Técnico, no campus Taguspark, onde lançou uma nova licenciatura em redes (na altura Engenharia de Redes de Comunicação e Informação). “Surgiu um conjunto de ideias novas, nomeadamente laboratórios conjuntos que envolviam projetos comuns a mais do que uma disciplina. E surgiu este projeto SUBA, que se podia empregar o mesmo modelo para uma disciplina de sistemas digitais ou, por exemplo, para um laboratório do Física”, recorda.

A ideia de Moisés Piedade tinha, nas palavras de Rui Rocha, essa capacidade de “deixar os métodos tradicionais e trazer os alunos para a aplicação de fazer engenharia”. Mas até se tornar real, necessitou de alguns acertos menos teóricos: “Comprei um carrinho destes, um modelo com 40cm de comprimento, para o adaptar e depois produzir uma série deles. Era um carro telecomandado, tinha um comando remoto por rádio, mas eu ignorei essas partes e fiz uma interface para ter acesso a todos os componentes elétricos do carro. O carro era alimentado a pilhas, e com isso previ logo poder utilizá-lo em várias disciplinas. Fiz uma interface que era montada no carro, tirando a carroçaria de plástico havia uma plataforma onde se podia pôr circuitos e sistemas desenvolvidos pelos alunos”, descreve Moisés Piedade. E agora sim, estava tudo pronto para um projeto que durou cerca de 8 anos e “deu vida” a dezenas de miniaturas do carro, dez deles ainda operacionais em 2022.
O SUBA inspirou ainda outros projetos pedagógicos, como o “Subódromo”, que consistia em testes de física numa pequena reta de dois metros em descida, e o “SUBAH”, uma tese de mestrado com um carro semelhante mas movido a hidrogénio.
A garagem, 20 anos depois, ainda preserva o traçado do Autódromo do Estoril, já foi palco de todo o tipo de experiências como uma diversidade de pequenos veículos e robots. É que afinal de contas o termo SUBA parece derivar de Subaru, mas os professores do Técnico gostam de sublinhar que é um acrónimo que sintetiza os objetivos do projeto: Seja Um Bom Aluno – SUBA.

Episódio 66 – O exoesqueleto humano

sexta, outubro 28th, 2022

Parece-se com uma bota mas é uma das primeiras estruturas externas de apoio ao corpo humano desenvolvidas por investigadores portugueses. No Técnico, entre 2007 e 2013, deram-se grandes passos no desenvolvimento de soluções de engenharia com aplicação na área da saúde, através da criação e desenvolvimento do exoesqueleto humano. O conhecimento de professores, investigadores e estudantes do Técnico colocava-se, com um nível de profundidade sem precedentes no país, ao serviço da melhoria da vida de quem vive ou convive com um problema de saúde. Neste caso, para solucionar uma patologia no tornozelo designada de pé pendente (quando a perna perde a capacidade de contrair e o pé “cai”). O desafio, aqui explicado por Jorge Martins, docente do Departamento de Engenharia Mecânica do Técnico, tem uma particularidade: “Somos muito sensíveis às patologias do tornozelo e temos um controlo motor muito fino em torno da musculatura para o tornozelo”.
É aí que surge o exoesqueleto, assim definido por Miguel Tavares da Silva, professor associado do mesmo Departamento: “é uma estrutura exterior ao corpo humano que funciona em paralelo com as estruturas biológicas e que o ajuda a desenvolver melhor uma dada tarefa ou, eventualmente, a recuperar uma função perdida”. Ao contrário da prótese, que substitui, o exoesqueleto apoia a estrutura biológica.
Os dois professores e investigadores do Técnico / Instituto de Engenharia Mecânica (IDMEC), impulsionados pelo financiamento do programa MIT Portugal, mobilizaram esforço e ideias de áreas como a biomecânica, métodos computacionais e robótica para aplicar no exoesqueleto. “Era uma área que estava a começar a surgir e podíamos dar contributos. Foi tudo uma enorme descoberta para nós”, recorda Miguel Tavares da Silva.

Esta aplicação externa para o tornozelo materializou-se num módulo que está na base e que suporta o pé, que é literalmente calçado e complementado por umas correias na parte da perna. A somar a essa estrutura, há ainda “um sistema atuador (motor, caixa redutora, componentes)” e um objeto extra “onde são efetuados cálculos, medições, um processamento, e depois é enviado um sinal de atuação para o motor que promove o movimento de articulação nas juntas”, explica Jorge Martins. “Com este sistema motorizado, conseguimos voltar a promover essa função, mas de uma forma externa. Já não é o cérebro que contrai o músculo para elevar o pé, mas sim o nosso computador externo que envia um sinal para o motor”, explica. “O que nós pensámos foi arranjar um exoesqueleto que precisamente levantava o pé durante a fase de balanço da marcha. O que ele faz é colocar uma corrente elétrica num músculo esquelético, que de alguma maneira vai estimular o mesmo impulso nervoso enviado pelo sistema nervoso central. Essa corrente elétrica vai fazer com que o músculo contraia na altura certa e com a força adequada”, complementa Miguel Tavares da Silva.
O projeto conseguiu cativar muitos estudantes de Engenharia Biomédica e de Engenharia Mecânica, que lhe dedicaram as suas teses de mestrado e doutoramento. Na lista de ângulos a explorar cabia quase tudo: modelos computacionais, modelações geométricas do exoesqueleto, seleção de motores e equipamento e muito mais.

O exoesqueleto foi testado essencialmente em pessoas saudáveis, não tendo sido efetuado um estudo clínico aprofundado com um número de doentes. Mas o projeto deixou uma “semente para outros projetos que têm vindo a avançar nas várias equipas de investigação, a nível computacional e de desenvolvimento de dispositivos médicos”, defende Miguel Tavares da Silva. “Este projeto foi também inspirador para outros grupos de investigação nacional”, argumenta.
A “bota” tem ainda a capacidade de despertar a curiosidade das pessoas para a investigação que se faz nesta área de interação homem-máquina. “Há um bocadinho de ficção científica sempre na cabeça das pessoas, muitos filmes como o Robocop e o Iron Man”, arrisca Jorge Martins. Não deixa de ser uma forma de espreitar o futuro. E que podemos esperar dele? Responde Miguel Tavares da Silva: “A tecnologia está a avançar rapidamente e a capacidade de engenho do ser humano é incrível: estão sempre a surgir ideias novas, conceitos novos. Diria que no futuro a patologia vai ser cada vez menos notória, cada vez mais vamos ter ajudas técnicas que nos vão permitir fazer uma vida próxima daquilo que é a forma de agir da maioria (para não usar a palavra “normal”, somos todos “normais”)”.

História Extra
Um professor que passa horas no Youtube
«(Passa horas no Youtube) a olhar para as pernas das pessoas. Tentamos encontrar vídeos de pessoas a entrar e a sair dos metros, onde há muita gente e as pessoas estão completamente desligadas do que estão a fazer, mais preocupadas com o meio que as rodeia, e tentamos encontrar estes cenários onde as pessoas estão o mais naturalmente possível a andar. E também os atletas de alta competição, os maratonistas… Portanto, horas a ver vídeos de pés na fase de push off, na fase de balanço, na fase de impacto com o solo. Faz parte do nosso dia-a-dia.»
(Jorge Martins)

Episódio 65 – O autómato de subestações

sexta, outubro 21st, 2022

A informatização da rede elétrica nacional e o seu funcionamento em rede é hoje uma realidade consolidada. Mas nos inícios dos anos 80 era apenas uma ideia projetada num aglomerado de circuitos e centenas de cabos que constituem o autómato de subestações, o equipamento com forma de armário que viria ajudar a revolucionar a rede elétrica nacional e se tornaria um símbolo do contributo do Técnico para esse processo. Hoje pode ser visto no Pavilhão de Eletricidade, no edifício da Torre Norte do campus Alameda do Instituto Superior Técnico, em Lisboa, no Laboratório de Alta Tensão Professor Domingos Moura, onde foi também concebido. José Luís Pinto de Sá, professor aposentado do Técnico (“trabalhei a maior parte destes anos neste laboratório, como área de investigação e depois como área de ensino”), foi um dos responsáveis pela sua implementação, que começou em 1987 e durou até inícios dos anos 2000. “A capacidade de ligar as redes entre si e criar uma grande rede só é possível com sistemas informáticos poderosos. E qual é o interesse de ter uma rede dessas? Permite, por exemplo, importar energia de forma segura, porque as redes estão interligadas”, explica.

Nos inícios dos anos 80, a EDP “não tinha informáticos, o sistema não estava informatizado, tinha adquirido uma dimensão difícil de controlar, nem tinha uma coisa que veio a ter dez anos depois: um sistema com um computador central, com ramificações por telecomunicações às subestações todas onde se recolhe informação, o que por sua vez permite controlá-las”. É o chamado “sistema de despacho” (hoje garantido pela REN) que permite distribuir os fluxos de potência de energia da melhor forma entre as várias redes, assim como solicitar às várias centrais elétricas disponíveis a sua produção de forma a cobrir o consumo da forma mais rentável. O passo intermédio passou pelo autómato de subestações e Portugal foi um dos países pioneiros, a par da França, a “instalar nas subestações um nível intermédio de inteligência”. “Não havia um computador central, mas passou a haver já computadores centrais/locais nas subestações”, descreve Pinto de Sá.
Foi essa necessidade – automatizar as reações locais, melhorar a qualidade de serviço – que esteve na origem do projeto de colaboração entre o Técnico e a EDP, que apanhou Pinto de Sá como assistente estagiário, em 1980, orientado por José Pedro Sucena Paiva. “Foram-me apontados os microprocessadores que eram na altura a grande novidade tecnológica que estava a aparecer na área de energia”, recorda. “Eu não sabia nada de microprocessadores. Era um desafio interessante e fui aprender”, complementa. O projeto era também uma resposta ao desafio emergente de dar um novo cunho à área de energia e de orientá-la para a investigação, que coincidiu com a chegada de professores do estrangeiro. “Corresponde a uma época revolucionária. Nas Faculdades de engenharia acreditou-se que o país ia finalmente fazer a sua revolução de desenvolvimento e que as universidades iam ter um papel importante no desenvolvimento tecnológico da nossa indústria. Passando a fazer investigação cá em vez de ir fazer ao estrangeiro. Ou em vez de fazer apenas engenharia corriqueira que era o que os professores das universidades faziam antes”, descreve.
O projeto do autómato de subestações foi um dos grandes exemplos de interação entre academia e o tecido industrial, indo muito além dos trabalhos apenas teóricos e académicos. “A cultura de servir o país motivou e entusiasmou muito os jovens. Foi um movimento cultural”.

 

História Extra
Descrição detalhada do autómato de subestações do Técnico
«Aqui neste espaço não é objeto mais visível, com luzes e com uma frontaria visível: é o simulador de subestações, um simulador discreto, que simula os acontecimentos binários que acontecem numa subestação e que são observados por aquilo que é a peça fundamental que é o autómato. Está aqui numa caixa, num armário. Nesse tempo (inícios dos anos 80) ocupava este espaço, era um conceito que havia de autómatos, com uma carta principal de processamento, um microprocessador, de 16bits…
Para compreender a importância histórica do equipamento há que notar que coincide quase com o aparecimento dos microprocessadores, que surgem em meados dos anos 70. Os primeiro microprocessadores de 16bits já são suficientemente poderosos e foi um dos conceitos que presidiu a este projeto, que foi concentrar tudo num microprocessador mais poderoso e complicar as coisas no software e no hardware.
Esse processador está ligado aquele simulador, por centenas de cabos… o que ocupa mais volume são os cabos todos.
Estão ligados por trás ao processador, e estão ligadas pela frente por cabos que depois vão ligar a réguas de terminais, que é um tipo de coisas que existe nas subestações reais. Das réguas de terminais de cada um destes fios sai um contacto que ia por uns cabos que estavam entrançados para um simulador.
Isto permitia que se simulasse acontecimentos. O simulador tem uma série de botões na parte da frente onde eu posso simular curto-circuitos, manobras na subestação, manobras comandas manualmente ou por alguns equipamentos que não faziam parte do autómato, equipamentos também de controlo que tradicionalmente eram eletromecânicos e que continuavam a ser quando se fez este projeto do autómato e funcionavam como fornecedores de dados, de informação binária para o autómato que, no fundo era um computador que controlava tudo, observava tudo o que acontecia, datava os acontecimentos com uma resolução de centésimo de segundo, fazia também observações de medida e fazia um processamento elementar das formas de onda, portanto produzia medidas digitalizadas e depois executava comandos sobre o simulador, testando o software que visava controlar as subestações.»
José Luís Pinto de Sá

 

Episódio 64 – Os tampos dos grandes auditórios

sexta, outubro 14th, 2022

Não é fácil entrar num dos cinco grandes auditórios (GA) do Pavilhão Central do campus Alameda do Técnico e não reparar nos seus históricos tampos riscados por gerações e gerações de estudantes. “Em 1972 já estavam todos escritos”, recorda Isabel Ribeiro, professora catedrática aposentada e professora distinta do Técnico e investigadora no ISR Lisboa – Instituto de Sistemas e Robótica. Foi nesse ano que entrou como estudante e começou a acumular memórias nos GA, ontem também viria a dar aulas. “Nesses tempos eu li: ‘se trabalhar dá saúde, que trabalhem os doentes’”, explica. 50 anos depois, percorre as palavras que se foram acumulando ao longo do tempo nos tampos de madeira: “Hashtags, já tem hashtags!”. Viagem por alguns tampos com Isabel Ribeiro: “Sporting… Benfica… ui!… também se podiam ler outros palavrões, mas há aqui coisas recentes: LEFT 20/21, Right 20/22, Ferraz, Invasões… ui!… não posso ler também, é o nome de um professor… Bloody Maggie, hashtag #tab. Ah! E agora noto uma coisa curiosa: dantes escrevíamos só com esferográficas, agora muitas inscrições com corretor branco: Macs… carambola… entradas… Beja, Évora, Sampaio, depois aqui parece um ET, um poliedro, aqui deve estar relacionado com álgebra, uma cartola, uns bigodes, alguém devia estar a preparar-se para ir de carnaval, Covilhã é melhor, porque alguém tinha escrito Guarda. Enfim…”.

Agora entramos nas memórias de Teresa Vazão, docente do Departamento de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores do Técnico: “Nestas salas sentaram-se ao longo dos anos muitos alunos. Na minha geração tiravam apontamentos tentando freneticamente apanhar o ritmo igualmente frenético com que eles eram escritos no quadro. Enquanto isso, não tínhamos telemóvel, as cabeças quando deambulavam ou deambulavam internamente ou deambulavam para o tampo da mesa. Estes tampos da mesa guardam a história do Técnico”, descreve. Não há nenhum risco seu (“é uma pena”), mas considera que os tampos não estão maltratados. Pelo contrário, “podemos entender isto como vestígios arqueológicos, digamos assim, de gerações e gerações de alunos e deixaram a sua história”. Viagem por alguns tampos com Teresa Vazão: “Havia alguns que desenhavam admiravelmente e se entretinham a fazer as suas obras de arte ou a deixar as suas mensagens de amor secreto. Nunca se sabe. Olhe, temos aqui um que achava que era mágico, outro escreveu “2800”, quem sabe se isto é o ano em que ele pensa acabar o curso ou o dinheiro que ele pensa ganhar ao final do mês…”.
Os GA eram, tradicionalmente, o sítio onde os estudantes da Escola iniciavam os chamados “cadeirões” do seu percurso académico. Teresa Vazão recorda os seus primeiros passos, há 40 anos atrás: “entrava neste campus com este pé direito enorme e sentia pela primeira vez o que era ser aluna do Técnico”.

E agora as memórias de Carlos Salema, que entrou como alunos em 1959 e se tornou docente do Técnico desde 1965 (atualmente professor emérito do Universidade de Lisboa e presidente do Instituto de Telecomunicações): “Os anfiteatros eram pequenos para a quantidade de pessoas, de maneira que me habituei a trazer um cadeirinha desmontável e sentava-me à frente entre a primeira fila e o estrado para poder assistir à aula. Ou então sentava-me no chão”.
Isabel Ribeiro recorda “sala muito grande, com muitos alunos, e com o professor em cima do estrado muito distante de nós”. Considera que os cinco anfiteatros “fazem parte da história do Técnico, que é uma coisa que não podemos apagar”. “Poderá ter que ser restaurado, mas mantendo exatamente esta traça”, defende.
Carlos Salema também não encontra nos tampos nenhuma marca sua e também não se lembra de ver os seus estudantes a rabiscar – “normalmente mantenho os alunos ocupados”, brinca -, mas há uma memória que todos têm em comum: o barulho ensurdecedor de todos os tampos a serem recolhidos no final de cada aula. Nas palavras de Teresa Vazão: “Imaginem este anfiteatro cheio de gente, que tinha que ir a correr para ter aulas noutro sítio qualquer… Imaginem este barulho da sala inteira, a sair ruidosamente, lá para fora”.

História Extra
Memórias de grandes aulas nos GA do Técnico
«Toda a gente se lembra do Professor Campos Ferreira. O que os distinguia dos outros: o brilho no olhar, o magnetismo, o entusiasmo que ele transpunha para a Matemática. O estarmos a abrir as portas de um mundo que achávamos que dominávamos e não dominávamos assim tanto. Estas aulas eram a porta de entrada para aquele mundo. Tinha um livro fabuloso, mas era um livro difícil de ler,na altura não eram livros eram folhas soltas que eram vendidas por um Sr. também muito conhecido, que era o Sr. Carvalhosa, que vinha sempre abrir a porta do Prof. Campos Ferreira, apagar o quadro no final. Notava-se a deferência que a escola tinha pela pessoa. E isto tinha uma certa magia na relação com o estudante. Estávamos perante um deus possível.»
(Teresa Vazão)

«Lembro-me de ter aqui aulas de Química, talvez Física, as aulas de Análise Matemática, aqueles cadeirões do 1.º ano eram no Anfiteatro de Eletricidade, onde agora está a Torre Norte, e lembro-me do Professor Jaime Campos Ferreira, que alguma vez fumava no giz e queria escrever com o cigarro.»
(Isabel Ribeiro)

Episódio 63 – O primeiro circuito integrado português

sexta, outubro 7th, 2022

Hoje estão em todo o lado e são cruciais para o funcionamento dos vários equipamentos que usamos no nosso dia-a-dia, mas até 1982 não havia ainda um único circuito integrado feito totalmente em Portugal. O primeiro foi pensado e criado no Técnico, cujos investigadores apanharam a boleia de um projeto internacional para inscrever os seus nomes em escala micrométrica. Um deles foi Moisés Piedade, professor aposentado do Departamento de Engenharia Eletrotécnica no Técnico, fundador e diretor honorário do Museu Faraday, que não tem dúvidas: “Isto abriu uma era nova. Houve depois vários circuitos, feitos no INESC / Técnico, desenhados e fabricados cá”.
A porta para esse conhecimento foi aberta por alguns professores do departamento que, na altura, estavam a fazer o seu doutoramento no estrangeiro (Luís Vidigal, Alves Marques, por exemplo). “Graças a contactos que tiveram durante essa fase da vida, trouxeram a possibilidade de integrarmos projetos que essas universidades estavam a executar em silício e, portanto, o Técnico apanhou a boleia dessas instituições estrangeiras, como a Carnegie Mellon, nos Estados Unidos, e a Universidade de Grenoble, em França”, explica Carlos Beltran Almeida, antigo professor do mesmo Departamento do Técnico, na época a frequentar o doutoramento e também ele um dos primeiros autores de circuitos integrados. “Trabalharam com pioneiros destes países neste tipo de participação que estava vedada à Universidade”, complementa.

Até esse ano, o caminho foi longo e feito essencialmente pelo setor industrial. “Quem fazia circuitos integrados (no país) eram as grandes companhias de semicondutores: recebiam componentes, montavam e entregavam circuitos – tratavam só da montagem. Toda a parte da conceção era feita no estrangeiro e todo o resto da indústria de circuitos, todo o know how tecnológico estava em posse das empresas”, atesta Carlos Beltran Almeida. “Não havia intrusos, ‘mirones universitários’ nesse domínio”, complementa. Tudo viria a transformar-se com a publicação do livro “Introduction to VLSI Systems”, em 1979, de Carver Mead e Linn Conway. “Esse livro veio abrir para todo o mundo, nomeadamente o Universitário, a maneira como se projetavam circuitos VLSI -Very Large Scale Integration. Eram circuitos que tinham mais de uma centena de milhar de gates no seu interior. Esse livro ensinou, digamos, a fazer projeto e as técnicas que estavam subjacentes à fabricação desses projetos”, defende Carlos Beltran Almeida.
O livro abriu conhecimentos de como se instalava o silício a nível dos ‘layouts’ das camadas que constituem um circuito integrado. “Não é só silício, é o silício com muitas impurezas, com camadas de isolantes, com camadas de metal e tudo aquilo numa sanduiche que foi explicada nesse livro. Para além de explicar isso, dava também exemplos das bibliotecas de alguns circuitos mais vulgares”,complementa.

Aberto o conhecimento e estabelecidas as colaborações, era então tempo de inscrever o nome do Técnico na história desta tecnologia. No âmbito de um projeto internacional, investigadores do Técnico puderam usar uma pequena área silício para fazer os seus circuitos, que foram inscritos lado a lado com de outros investigadores da Universidade francesa. “Neste silício, que pensávamos que era escasso, acabou por ser suficiente para meter 8 ou 9 projetos feitos em Portugal por vários grupos, vários investigadores”, recorda Carlos Beltran Almeida.
E como é que se desenhava um circuito integrado? Voltamos a Moisés Piedade: “As ferramentas eram muito toscas. Desenhávamos isto em folhas A3 quadriculadas e cada quadradinho correspondia a três micrómetros [hoje em dia já se trabalha em nanómetros, que são mil vezes mais pequenos], ou seja, a maior definição que eu podia ter em qualquer das camadas do chip era de três “microns”. A ferramenta que tínhamos era um editor gráfico para especificar retângulos, coordenadas de início, depois o tamanho – comprimentos, largura e o tipo de material. Tinha umas 10 ou 11 camadas e tínhamos uma coleção de lápis de cor onde desenhávamos em papel quadriculado as diferentes camadas. Era desenho mesmo”. E, tal como se faz nas pinturas, estas primeiras e históricas obras de arte foram assinadas por elementos do Técnico, há 40 anos.

Episódio 62 – O sextante de Gago Coutinho

sexta, setembro 30th, 2022

A chegada da Sacadura Cabral e Gago Coutinho ao Rio de Janeiro a bordo da aeronave “Santa Cruz”, a 17 de junho de 1922, marcou umas das páginas douradas do século XX português. Dois meses e meio depois da partida de Belém (Lisboa), a 30 de março, e após 62 horas de voo efetivo, o concretizar da primeira travessia aérea do Atlântico Sul representou também uma grande vitória do conhecimento e da tecnologia. Entre os instrumentos que tornaram essa travessia possível encontrava-se uma adaptação de Gago Coutinho, operada nas outrora oficinas de precisão do Instituto Superior Técnico, entre 1920 e 1921: o sextante de Gago Coutinho, também designado por “sextante de Coutinho” ou “sextante de horizonte artificial”. “Na navegação aérea levanta-se o problema da orientação, porque estamos acima das nuvens e muitas vezes não temos referências dos astros, que acontece com mais facilidade no mar. Isto era um dos grandes desafios que se colocavam nessa altura à navegação aérea”, explica Jorge Freitas Branco, professor aposentado de Antropologia do ISCTE. “Tratava-se de conceber um horizonte artificial. O que ele traz de novo é a possibilidade de orientação sem as estrelas, porque se constrói um horizonte artificial. Enquanto que até aí a orientação era feita com um horizonte real, com a linha do mar, o chamado horizonte”, complementa. O instrumento afinava o processo de cálculo de posicionamento, permitirá cálculos muito rigorosos. Para garantir que as “condições que tinha em mente para preparar os voos” eram cumpridas, o Almirante Gago Coutinho terá estado também fisicamente nas antigas instalações do Técnico a acompanhar o processo.
O primeiro teste do sextante de Gago Coutinho (e de um corretor de rumos também inventado por si) aconteceu em 1921 numa travessia Lisboa-Funchal. “Esse voo funcionou muito bem em termos de orientação”, conta Jorge Freitas Branco. O avião em que tinha saído não regressou, ficou destruído num acidente em Porto Santo, mas os tripulantes regressaram sãos e salvos, de barco. E já tinham lançado sementes na História.

Foi graças a esses instrumentos de navegação que a travessia até ao Brasil foi possível, não sem sobressaltos pelo caminho. “O voo para o Brasil foi feito aos soluços, porque não era possível fazer um voo direto. E teve muitos problemas. Houve uma aeronave que se afundou, destruiu-se. Eles naufragaram e foram salvos por acaso”. Duas aeronaves, a Lusitânia e a Pátria, ficaram pelo caminho e só com o hidroavião Santa Cruz a viagem pode ser completada. Escusado será dizer que perderam tudo o que tinham a bordo, incluindo o sextante. Tudo não: reza a lenda que Gago Coutinho se agarrou a um exemplar dos Lusíadas até ser resgatado.

Gago Coutinho, definido por Jorge Freitas branco como “uma figura conhecida como militar por ter feito a fixação das fronteiras nas Colónias, sobretudo em São Tomé, Angola e também em Moçambique”. A sua formação militar era de topógrafo, o que o levou a navegar “praticamente dez anos seguidos”, como complementa o Comandante Carlos Valentim, subdiretor do Museu de Marinha. “Fez 23.000 milhas, o equivalente a 314 dias de um ano. Depois teve uma experiência fundamental nas campanhas geográficas que levou a cabo quer em África, quer em Timor”, complementa. A ambição e coragem de Gago Coutinho e Sacadura Cabral, dois oficiais da Marinha dotados de saber técnico e científico, surgiram num momento em que “Portugal se encontrava num período muito conturbado durante a 1.ª República”. “A sociedade portuguesa tinha fome de heróis”, explica Carlos Valentim. “Surgem no momento exato numa sociedade pós-Grande Guerra, em que as dificuldades são imensas, em que há uma inflação galopante… Vêm dar o alento a uma sociedade que se encontrava em crise, num mundo que mudava muito rapidamente. Estamos a falar de um período entre guerras em que há uma tentativa de chegar mais além, há uma competição quer ao nível da velocidade, nos hidroaviões e nos aviões no ar, há uma competitividade no mar e em terra, desafiando o perigo e querendo chegar mais além, querer conquistar novos recordes”.

Deste momento alto da sociedade portuguesa, ficaram as histórias do conhecimento que se ganhou e do sextante criado por Gago Coutinho. A testemunhar a façanha está um exemplar do instrumento no Museu de Marinha, em Lisboa. É possível que um ou outro exemplar, construído nas oficinas do Técnico, repouse no fundo do oceano Atlântico desde 1922.

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