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Episódio 90: O processo individual da aluna Maria de Lourdes Pintasilgo

sexta, abril 14th, 2023

É um conjunto de documentos que inclui as cadeiras realizadas, os trabalhos apresentados, as notas obtidas, os colegas de turma e que integra o processo individual de uma antiga estudante do Técnico. Seria igual a tantos outros que repousam nos Arquivos do Técnico, se não registasse, passo a passo, o processo de Maria de Lourdes Pintasilgo (1930-2004), desde o momento que entrou na Escola, no curso de Engenharia Químico-Industrial em 1947, até ter à sua conclusão, em 1953. Este processo individual testemunha o percurso académico de uma Engenheira distinta e pioneira, que deixou marcas profundas na sociedade e política portuguesa. Foi a primeira mulher portuguesa Ministra e primeira (e até ao momento única) mulher Primeira-Ministra de Portugal (entre 1979 e 1980).
“Dizem as pessoas que conviveram com ela que sempre tomou consciência do seu papel de mulher e da ausência das mulheres da vida política, das organizações e, portanto, que veio para o Técnico por gosto mas também por decisão racional”, conta Alexandre Tojal, investigador e cocurador do Museu da Presidência da República, que lhe dedicou uma exposição em 2022. “Dizia-se que não havia mulheres engenheiras e ela disse: ‘então vou tirar um curso de Engenharia’. E na verdade, ao longo do seu curso eram cerca de 250 alunos e só três eram mulheres. Foi uma pioneira”, complementa.
Ainda antes da sua atividade política, fez um percurso na vida universitária e ligado à Juventude Universitária Católica (JUC) feminina. “O seu feitio é imediatamente de uma líder, alguém que sabe ouvir mas que toma a liderança com facilidade”, argumenta Alexandre Tojal. Torna-se presidente da JUC e preside ao primeiro congresso internacional da estrutura. Pelo seu currículo passou também a criação da Comissão da Condição Feminina, enquanto Ministra dos Assuntos Sociais e a chefia da Comissão Permanente de Portugal na UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), após a sua saída do governo.

O seu legado e exemplo são, ainda hoje, uma inspiração constante para o país e, em particular, para quem estuda e pretende estudar no Técnico. Em 2016, a Escola decidiu implementar o Prémio Maria de Lourdes Pintasilgo, com o objetivo de “promover a relevância da igualdade de género no Técnico, e reconhecer o papel crucial que as mulheres desempenham em todas as áreas da Engenharia”. Arlindo Oliveira foi presidente do Técnico entre 2012 e 2019 e recorda que a ideia “veio da constatação de que muitas áreas da Engenharia não eram muito atrativas para as mulheres”. “Pensámos que estabelecer um prémio que tivesse como imagem uma pessoa tão importante como a Maria de Lourdes Pintasilgo seria uma forma de termos um modelo que pudesse projetar esta imagem que a Engenharia não só pode ser feita por mulheres, mas que há muitas mulheres que encontram sucesso e satisfação na profissão de Engenharia. A Engenharia é também ou talvez até muito especialmente para as Mulheres”, complementa o professor do Técnico e investigador do INESC ID.
O Prémio é, desde então, atribuído anualmente a duas mulheres: uma Engenheira já avançada na sua carreira, que já demonstrou provas e é uma pessoa reconhecida, e uma jovem graduada. “Foram já distinguidas pessoas que são importantes na sociedade portuguesa e até internacional”, defende Arlindo Oliveira.

A documentação que regista o percurso da antiga estudante da Escola e algumas representações digitais do seu processo poderão também, em breve, ser pesquisadas no sistema de gestão de arquivos que a Universidade de Lisboa está a finalizar. “Temos muitas solicitações de acesso a processos individuais de um conjunto de pessoas conhecidas da política, do meio da cultura, por exemplo, para desenvolver trabalhos de investigação, para desenvolver documentários, filmes, livros…”, enquadra Ana Silva Rigueiro, diretora do Departamento de Arquivo, Documentação e Publicações da Universidade de Lisboa. “O processo conta-nos a sua história”, acrescenta. E a história de Maria de Lourdes Pintasilgo é simplificada desta forma por Alexandre Tojal: “A perspetiva dela era sempre de construção, de abertura ao outro e nunca de exclusão”. Para Arlindo Oliveira, deu “uma série de contribuições muito interessantes na visão que ela tem da sociedade, da engenharia e do papel das mulheres na sociedade”. E não tem dúvidas: “O facto de ser Engenheira do Técnico também contribuiu um bocadinho para ela ser a pessoa que foi”.

Episódio 89: O contador de energia, Aron

sexta, abril 7th, 2023

A história do exemplar de contador de energia Aron do Técnico começa numa busca por “velharias” feita nas caves e nos laboratórios da Escola a pensar na futura coleção do Museu Faraday, a funcionar desde 2017 no campus Alameda. Numa dessas jornadas, depois da abertura forçada de armários que já não tinham chave, veio a surpresa: “Aquilo estava cheio de contadores muito antigos, mesmo muito antigos. E provavelmente muitos deles vieram do Instituto Industrial e Comercial de Lisboa (que antecedeu o Técnico entre 1869 e 1911)”, conta Moisés Piedade, responsável pelo Museu Faraday e professor aposentado do Departamento de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores do Técnico. Foram encontrados cerca de 30 contadores, alguns repetidos, tendo oito deles (com diferentes máquinas internas) integrado um painel que pode ser visto no Museu. Entre essas peças destacava-se um aparelho da marca alemã Aron, “o único diferente dos outros todos”.
Se hoje em dia é corriqueiro saber-se que há instrumentos que medem com exatidão o consumo elétrico de cada um, com reflexo nas contas de eletricidade a pagar, no final do século XIX ainda estava tudo por inventar. E o contador Aron, com patente registada em 1882, foi um dos pioneiros. “Na altura [quando encontrou o contador] eu nem conhecia o princípio do funcionamento. Ao ver aquele contador, a primeira reação que se tem é achar que é um relógio”, conta. Perante o objeto, a equipa do Faraday foi investigar e descobriu que se tratava do “primeiro contador que media a energia consumida com uma precisão espetacular” e que “realmente funcionava bem”. Desenvolvido por um cientista alemão, Hermann Aron (1845-1913), este contador eletromecânico incorporava um visor numérico (de 0 a 9), que andava numa roda de discos, com os dígitos selecionados a aparecerem numa janela.

Até esse período, a energia elétrica habitualmente usada era proporcionada por geradores de corrente contínua, como o dínamo de Gramme (ouvir episódio Episódio 70 – O dínamo de Gramme). Em 1882, nos Estados Unidos, Thomas Edison (1847-1931) começou a querer vender energia da corrente contínua, mas antes de o conseguir teve que fornecer energia gratuitamente durante um ano, por não haver contadores. Em 1885 foi a vez de Berlim apresentar um concurso para a compra dos primeiros 100 contadores de energia para aplicar num bairro da cidade. Na lista de concorrentes dois nomes: Edison e Aron. Apesar da maior experiência do primeiro, seria Aron a vencer o concurso com um aparelho que tinha “uma precisão muito superior aos que o Edison forneceu”. “É revolucionário porque o Edison tinha quatro ou cinco patentes a partir do contador químico”, realça Moisés Piedade.
No Técnico não há exemplares desse contador químico de Edison, mas isso não foi problema para a equipa do Museu Faraday. Após um contacto do curador de uma exposição sobre contadores de energia que viria a ser apresentada no MAAT (Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia) e que procurava esse instrumento, a resposta foi simples: “Eu disse: não temos mas vamos fazer uma réplica. Ficou lá exposta o tempo todo”, recorda Moisés Piedade.
O curador da exposição intitulada “Contadores de histórias”, o arquiteto e historiador Joaquim Moreno, relembra a base da exposição: “O Museu da Eletricidade é um monumento à produção de energia, não explica nada da distribuição nem do consumo”. “Tinha de encontrar outra coisa que me permitisse explicar a distribuição e o consumo. Como é que a energia saía dali e chegava a casa de toda a gente. Foi aí que achei que o objeto sociotécnico para contar a história disto tudo era de facto o contador”, complementa. A réplica construída pela equipa do Faraday dava assim o mote para a exposição que esteve exposta em 2022.

Dos primeiros 100 contadores de Berlim até Aron desenvolver um negócio com mais de mil funcionários passariam apenas 27 anos. O professor universitário com nome de origem judaica morreria em 1913 e deixava como herança uma empresa que viria a ter também um grande papel no desenvolvimento da rádio. Gerida por um filho, nasceria a empresa Nora (Aron ao contrário para diluir o nome e fugir à perseguição de que os judeus foram alvo). Começava uma nova era em que a rádio também teria um grande papel a contar as histórias que estavam por chegar.

Episódio 88: A parede verde

sexta, março 31st, 2023

À entrada do rés-do-chão do edifício de Mecânica I, no campus Alameda do Técnico, uma parede mudou de cor ao longo dos últimos anos. A partir do branco característico da construção, e com a ajuda sustentável da rega com “água cinzenta”, ergue-se uma parede verde capaz de abrigar uma grande diversidade de espécies de plantas.
A raiz da ideia, que viria a dar origem à parede verde do Técnico, surgiu em 2017, numa troca de ideias entre Ana Galvão e Cristina Matos Silva, ambas docentes do Departamento de Engenharia Civil e Arquitetura do Técnico, que fundiram as suas áreas de interesse – ambiente e recursos hídricos e construção – e deram corpo ao projeto. Primeiro em testes de laboratório, depois aplicando-a na própria parede. Falamos de uma parede modular, num total de dois metros quadrados, que consiste num conjunto de potes empilhados, produzidos com plástico reciclado. “Um dia estávamos a olhar para a parede nua da entrada do edifício e pensámos que ficava bem aqui, porque tinha uma casa de banho. Era uma ligação muito orgânica e muito direta”, conta Ana Galvão.

A parede verde do Técnico “não é horta, porque não conseguimos tirar de lá produtos, mas é um jardim vertical, também chamado de parede verde ou jardim vertical”, descreve Cristina Matos Silva. Estas soluções “são importantes para a regeneração dos nossos centros urbanos quando não temos muito espaço. As paredes verdes têm a vantagem de serem visíveis facilmente e trazem muito bem-estar. Mas como falamos de um plano vertical temos algumas dificuldades associadas, nomeadamente envolvimento da vegetação e meio de crescimento”. É aqui que entra o ponto forte da parede verde do Técnico: está ligada ao tratamento da água e a sua rega é feita através da reutilização da água dos lavatórios do edifício, as chamadas “águas cinzentas”. Para além de não necessitar de água potável para manter as plantas, esta parede consegue ainda tratar água em excesso que lhe seja adicionada, que ficará disponível para outros usos como a lavagem de pavimentos ou irrigação de jardins.
“Um dos desafios destas paredes, e de uma maneira geral dos espaços verdes em meio urbano, é que para haver verde é preciso água”, justifica Ana Galvão. “Atualmente com as condições climatéricas e alterações climáticas que vimos a sentir, a escassez na zona mediterrânica é um desafio com o qual temos que lidar. Esta parede procura dar resposta a esses desafios”, complementa. Como se faz? Utilizando a água que já está disponível na cidade de forma natural, pelas atividades humanas (as águas cinzentas) e que representam 60 a 70% da água usada no nosso dia-a-dia. “Neste caso fomos ainda um bocadinho mais longe”, defende. A parede verde do Técnico pode ser irrigada com águas cinzentas e o excesso de água que passe através da parede vertical sai filtrado depois de passar pelas raízes das plantas que “atuam como um filtro”. Podem, assim, ser reutilizadas para outras funções.
Antes da montagem do sistema na parede, a solução foi testada em laboratório, “para ser mais pequeno e controlado, para controlar que tipo de “águas cinzentas” colocávamos e em termos científicos para podermos estudar melhor a coisa”, explica Ana Galvão. Agora, está também em curso um projeto de estudo da qualidade do ar envolvente e análise da parede verde como barreira térmica para controlar a temperatura do edifício.

A iniciativa integra-se no projeto Pensar Verde, promovido pelo projeto Técnico Sustentável, que alberga outras coberturas e espaços verdes no campus e tem-se tornado um atrativo para algumas visitas à Escola. Cristina Matos Silva arrisca explicar porquê: “Uma parede verde exuberante traz bem-estar. Sentimo-nos bem perto de espaços verdes”. E esta parede tem uma mensagem pedagógica extra, resumida por Ana Galvão: “Da próxima vez que lavarem as mãos, pensem que essa água pode ser utilizada muito mais para além do que vai para ali pelo cano abaixo”.

Episódio 87: O quenotrão

sexta, março 24th, 2023

A história da primeira pessoa a doutorar-se no Instituto Superior Técnico cruza-se com a do quenotrão, objeto que hoje pode ser observado no Museu Faraday, no campus Alameda, e que foi fundamental para o trabalho que conduziu a esse momento histórico da Escola. Manuel Alves Marques (ouvir episódio 18 – O 1.º laser em Portugal) concluía em 1962 o seu doutoramento, o primeiro a ser feito na íntegra no Técnico, na área da Engenharia Eletrotécnica, durante o qual estudou as vibrações das moléculas em torno de determinados metais. Para isso, recorreu à espectroscopia de Raman, técnica de identificação da estrutura química que deu um Prémio Nobel ao investigador indiano, Chandrasekhara Venkata Raman, em 1930. Para estudar essas propriedades, Alves Marques (1930- 2010) criou uma instalação de origem onde aplicaria a técnica de difração de raios-x. Na mesma instalação surgia o quenotrão, um retificador de vácuo que era usado para proporcionar alta tensão contínua para o funcionamento de ampolas de raio-x.

“Naquela altura, na parte da física experimental, era preciso criar uma nova instalação, fazer o projeto de uma instalação para se obter determinados resultados experimentais. Passava sempre por aí”, explica Isabel Cabaço, professora aposentada do Departamento de Física do Técnico, que se licenciou em Engenharia Química, em 1968. A instalação, que Isabel Cabaço ainda conheceu enquanto aluna orientada por Alves Marques, estava na cave do Pavilhão de Máquinas e servia para obter medidas de polarização, “que na altura pouquíssimas pessoas faziam”. “O quenotrão trabalhou durante muitos anos, foi muito útil, permitiu a elaboração de uma tese de grande qualidade [tese de Alves Marques, orientada por António Silveira, figura marcante da Escola], foi usado por estudantes e do meu ponto de vista é um objeto lindíssimo”, descreve.

O quenotrão do Técnico tem cerca de 80cm de comprimento e é parecido com uma lâmpada elétrica em forma de pêra mas com duas extremidades com casquilhos, em vez de uma. Para que serve? “Basicamente é uma válvula de um retificador de vácuo mas para altas tensões. Suporta tensões inversas com um retificador de 250 quilovolts”, explica Moisés Piedade, professor aposentado do Departamento de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores do Técnico e um dos fundadores do Museu Faraday. Todos rádios e pequenos aparelhos semelhantes, por exemplo, são alimentados a corrente contínua, que ou vem de baterias ou da corrente elétrica alternada. “Há sempre um retificador, um conversor de corrente alternada e corrente contínua metido pelo meio. E, neste caso especial, estas válvulas são para produzir tensões extremamente altas contínuas que eram basicamente usadas nas ampolas de raio-x”, acrescenta. Era precisamente como complemento desse tipo de ampolas que o quenotrão era utilizado na instalação concretizada por Alves Marques. Ainda hoje, no campus Taguspark, existe “uma máquina de verificação de circuitos eletrónicos, circuitos impressos, baseada em raio-x, onde se fazem radiografias a circuitos eletrónicos para ver ligações que não são visíveis a olho nu”, conta. 

Depois de ter deixado de funcionar, no final dos anos 80, o quenotrão ficou arrumado numa cave do Edifício Civil. Quando Moisés Piedade visitou o espaço, à procura de objetos de eletrotecnia para o Museu Faraday, havia uma inundação. “Às tantas já não conseguia avançar porque já tinha 10 cm de água”, relembra. Mas continuou e acabou por encontrar este objeto, sem que na altura soubesse ainda o que era. “Moisés salvou o quenotrão das águas”, brinca Isabel Cabaço.

 

História Extra:
Professor Alves Marques: Muito trabalho, sono e meditação
«O Prof. Alves Marques era uma pessoa muito honesta, muito sóbria e era um trabalhador infatigável. Levantava-se às 4h da manhã (e deitava-se às 22h) e era frequente dormitar. Quando havia concursos e provas, ele que era membro do júri e às vezes um dos membros principais, adormecia…. ou meditava.
Ele ia muitas vezes a congressos internacionais, e muitas vezes custeava as despesas de deslocação e de inscrição para permitir que os seus colaboradores tivessem Bolsa. Era frequente estar a ouvir uma palestra e estrar a dormitar, mas quando a palestra terminava ele era a primeira pessoa a pôr uma questão pertinente.»
(Isabel Cabaço)

Episódio 86: Uma coleção arqueológica no Técnico

sexta, março 17th, 2023

Uma caixa cheia de vestígios arqueológicos guarda, no Museu Décio Tadeu, no campus Alameda do Instituto Superior Técnico, algumas pistas que podem ajudar a perceber como era Lisboa há sete mil anos. Esse testemunho da milenar ocupação da capital por seres humanos foi descoberto por prospeções feitas em Monsanto, em 1917, dirigidas por Ernest Fleury (um dos cinco estrangeiros convidados por Alfredo Bensaude para dar aulas nos primórdios da Escola e o primeiro professor de Geologia e Paleontologia no Técnico). Entre os vestígios estavam ossos humanos pré-históricos, coisa rara de encontrar na cidade. “Em Lisboa conhecemos os locais dos vivos mas os mortos fogem-nos”, brinca Carlos Didelet, arqueólogo do Centro de Arqueologia de Lisboa e investigador no Instituto de Arqueologia e Paleociências da Universidade Nova de Lisboa e na Universidade de Évora.
Quando abriu a gaveta com a coleção arqueológica do Técnico teve a mesma sensação de “uma criança no dia de natal quando encontra aquela prenda de que estava mesmo à espera”. Soube da sua existência por acaso, através de duas colegas que estão a fazer a recuperação de vários painéis científicos que estão no Museu (ouvir Episódio 53 – Os painéis científicos). O investigador que também faz escavações em contexto de obras e prospeção de terreno em Monsanto realça a importância de um outro tipo de arqueologia: “Mais do que muitas vezes escavar no terreno, precisamos escavar nos museus. Saber o que há e já foi feito. Muitas vezes esse material fica guardado nos Museus e ao ser revisto é possível fazer um panorama muito mais complexo e com uma visualização muito maior”.

A coleção arqueológica do Técnico é composta, no seu conjunto, por vestígios pré-históricos da ocupação humana, como restos humanos, ossos, utensílios de alimentação e de trabalho, como um machado de pedra, pedras polidas, pontas de sílex e facas. “São relativamente raros no concelho de Lisboa, devido à qualidade da preservação. Ossadas humanas não são assim tão comuns”, explica Manuel Francisco do Departamento de Engenharia de Recursos Minerais e Energéticos do Técnico. “[Fleury], no âmbito da sua incursão pelo país, conseguiu reunir desde rochas mais antigas até coleções arqueológicas que são consideradas as mais recentes do registo do Museu”, complementa. “São materiais muito característicos do neolítico antigo evolucionado, mais ou menos no 5.º milénio antes da nossa Era, e vêm trazer mais interrogações do que que respostas”, contextualiza Carlos Didelet. Para o arqueólogo, este conjunto permite “construir uma imagem completa do que era a pré-história de Lisboa do que há dez anos atrás”. Entre outras coisas, permitem conhecer melhor os movimentos, os símbolos e informação antropológica de relevo sobre essas populações. “Esta coleção é uma pérola que está aqui, uma parte da história da cidade que ficou cristalizada graças ao trabalho de Fleury”. O conjunto está a ser estudado, analisado e comparado e dará origem a uma publicação científica. “Vai continuar a desvendar os seus segredos durante algum tempo. Vai permitir um discurso mais complexo e mais sólido sobre como é que era a pré-história de Lisboa há 7 mil anos atrás”, conclui.

 

História Extra
Como se escava hoje em Lisboa para se saber como era a Lisboa de antigamente?

«É preciso fazer um exercício de imaginação para imaginar como é que seria Lisboa há 7 mil anos atrás. No Centro de Arqueologia, desde 2015, temos desenvolvido um trabalho de investigação acerca da pré-história da cidade. E, por portas travessas, viemos para aqui ao Técnico.
Lisboa tem milénios de existência e a ocupação humana estende-se ao longo desses milénios. É quase inevitável que apareçam esses testemunhos arqueológicos.
A Lisboa do período que estudo – período neolítica entre 5 mil e 7 mil anos atrás – deve ser imaginada com uma topografia acidentada, com uma multitude de linhas de água, algumas bem expressivas. A ribeira de Alcântara, por exemplo, era o grande braço fluvial da cidade.
(…)
Recentemente, começámos a fazer a prospeção de campo, em Monsanto, a ver se era possível localizar antigos locais onde tinha sido feitas intervenções arqueológicas. O facto de ter sido construída Monsanto, permitiu que se encontrassem vestígios arqueológicos à época, nos anos 40 e 50. No nosso tempo foi possível relocalizar onde tinham sido feitas essas intervenções, sabemos que os locais ainda estão lá, em alguns sítios alterados. [Com a construção do Parque de Monsanto] criou-se uma camada protetora que nos permite recuperar informação que não foi obtida nessa época, mas que hoje com meios não-invasivos, é possível. Através de um georadar, é possível obter a leitura e identificar possíveis bolsas onde estarão os materiais arqueológicos ou estruturas. Dá indicação se vale a pena abrir ali uma escavação.
Por outro lado, Lisboa nos últimos anos tem conhecido uma grande explosão no mercado imobiliário e principalmente na zona mais antiga, como o Bairro Alto e a zona ribeirinha, e aparecem regularmente vestígios da ocupação pré-histórica de Lisboa. No Bairro Alto, no interior dos edifícios, levantamos o chão da época contemporânea ou daquilo que chamamos da época moderna e aparece-nos os contextos pré-históricos preservados logo abaixo dos pisos de época moderna.
Encontramos, por exemplo, muralha de época romana, contextos romanos muito bem preservados, a famosa estela com carateres fenícios mas escrita numa língua lusitana (com muitas aspas), onde era possível ler dois nomes de pai e filho que viveram em Lisboa há 3500 anos, antes da romanização, mas que sabiam ler e escrever com carateres fenícios…
(…)
Quando os proprietários dos imóveis querem fazer alguma intervenção de fundo, é obrigatório ter arqueologia prévia para intervencionar, registar e guardar os eventuais achados arqueológicos. Só quando a arqueologia acaba o seu trabalho, vêm os construtores.»
(Carlos Didelet)

 

Episódio 85 – O cartaz “De que são feitas as coisas?”

sexta, março 10th, 2023

Em 1981, o Instituto Superior Técnico acolhia uma exposição de física intitulada “De que são feitas as coisas?”, e estava-se longe de imaginar que a mesma estaria na base da mudança estrutural que viria a acontecer na ciência e na promoção da cultura científica em Portugal. A exposição, dividida pelo Salão Nobre e pelo átrio do Pavilhão Central do campus Alameda do Técnico, estava associada uma conferência sobre física de partículas da Sociedade Europeia de Física, que trouxe esse ano à Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, mais de 500 físicos e nomes como, Richard Feynman e Abdus Salam. “Era uma conferência de topo internacional, feita num país onde praticamente não havia física de partículas. Havia todo o ambiente na Europa de Portugal pós-revolucionário”, recorda Mário Pimenta, professor do Departamento de Física do Técnico e atual presidente do Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas (LIP). A exposição aconteceu de 8 a 20 de julho, num “ano de calor insuportável”, foi feita com o apoio do CERN (Organização Europeia para a Investigação Nuclear) e incluía placards, filmes, publicações de banda desenhada e uma espécie de feira de ciência com várias áreas científicas representadas. Mário Pimenta, que esteve responsável pela banca de eletromagnetismo, recorda: “Teve um impacto enorme, as pessoas estavam muito ávidas de saber o que acontecia. Era Portugal a abrir-se para a Europa e para o Mundo… Foi o princípio de facto da história da física de partículas experimental em Portugal”.

O cartaz da exposição “De que são feitas as coisas?” testemunha também o início do impacto que um homem – José Mariano Gago, estudante do Técnico entre 1965 e 1971; presidente da Associação dos Estudantes do Instituto Superior Técnico (AEIST) no ano de 1969/70 e, posteriormente, professor catedrático do Departamento de Física do Técnico a partir de 1979 – teve em todo o sistema científico português. “Mariano Gago [que integrava o grupo de investigadores recém-chegados a Portugal que estava na organização da Conferência e Exposição] era muito sensível à divulgação científica, e em particular na educação de adultos, e tinha uma coluna no Diário Popular. Aproveitando a vinda dessa gente, decidiu fazer um evento de repercussão pública, não deixar só os cientistas todos fechados na Gulbenkian e levar às pessoas do governo para mostrar e fechar acordos, que também se fez, mas transformar isso num acontecimento público”, recorda Mário Pimenta.
Mariano Gago, que esteve no CERN até regressar a Portugal, em 1978, apresentou um curso livre de física de partículas, no mesmo ano. “Foi um bocadinho a semente de fazer a Física Experimental de Partículas em Portugal”, defende. O LIP viria a ser criado em 1986, no momento da adesão de Portugal ao CERN, e teve Mariano Gago como presidente e fundador. Conta hoje com 200 pessoas, 95 delas doutoradas. Foi na mesma Conferência de 1981 que se fez o primeiro acordo, entre Portugal e o CERN, com o seu então diretor, Herwig Schopper, a testemunhar “o ambiente positivo de um país que acreditava que a ciência (fundamental) era fonte de progresso”.
A partir da exposição no Técnico, Mariano Gago, que veio também a ser Ministro da Ciência e da Tecnologia, entre 1995 e 2002, e Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, entre 2005 e 2011, continuou a organizar eventos de divulgação pelo país até ao surgimento do Ciência Viva, em 1995. “É com a criação do Ciência Viva que se dá esse salto qualitativo imenso. Dá-se outro salto imenso com a Expo 1998 e [a construção] do Pavilhão do Conhecimento”, aponta Mário Pimenta.

O balanço da ação de Mariano Gago é feito também por Manuel Heitor, professor catedrático do Departamento de Engenharia Mecânica do Técnico, que também foi seu Secretário de Estado e tornar-se-ia mais tarde Ministro da Ciência e da Tecnologia e Ensino Superior (2015 e 2022): “O principal resultado é que hoje Portugal tem o grupo da população a nível europeu com o maior nível de cultura científica. Isto não aconteceu por acaso, são 30 anos de investimento na cultura científica”. “Sempre aprendi com ele a não tomar decisões de forma muito rápida. Para o bem e para o mal, às vezes demorava muito tempo a tomar decisões, porque era dominado por um grande clima de incerteza até saber qual era a decisão a tomar. Estar sempre a questionar e a garantir que a construção do futuro se faz pensando a incerteza e que não vale a pena ter certezas. Trazer a incerteza do contexto social para todas as questões”, recorda.
Também Ana Noronha, professora do Departamento de Física do Técnico e Diretora Executiva do Ciência Viva, recorda a filosofia de Mariano Gago que acreditava que “para se desenvolver a ciência era preciso que a população soubesse e percebesse a importância da ciência e porque é que essa ciência seria crítica para o desenvolvimento do país”. É uma estratégia que passava pela “ação nas escolas, criando uma rede de Centros de Ciência Viva, e ações diretas com a população em todo o país”.
Mariano Gago morreu em 2015, com apenas 66 anos de idade. Em sua homenagem multiplicam-se os prémios, encontros e até dá nome ao Largo onde se encontra o Pavilhão do Conhecimento. Tudo segue uma lógica descrita por Manuel Heitor: “Mais do que saudade é fazer acontecer o legado dele”.

Episódio 84: As bicicletas do Técnico

sexta, março 3rd, 2023

O campus Alameda do Técnico está, hoje em dia, rodeado por uma rede de ciclovias e por docas de estacionamento da Gira, o serviço público de partilha de bicicletas de Lisboa, entre outras soluções de mobilidade. É já expressivo o número de membros da comunidade académica que se faz deslocar de bicicleta até ao Técnico, mas não é preciso recuar muito no tempo para encontrar uma realidade completamente diferente. Em 2015, chegavam as “bicicletas do Técnico” através do primeiro de dois projetos que colocaram o veículo de duas rodas no radar das opções de mobilidade sustentável da comunidade.
Nascia o projeto “A pedalar” com a missão de emprestar bicicletas de forma gratuita “para testar o percurso casa-trabalho e desmistificar os receios de andar na cidade de bicicleta”. Marta Pile, da Área de Estudos, Planeamento e Qualidade do Técnico, coordenou o projeto, que se integrava na Semana Europeia da Mobilidade e concretizava uma ideia que tinha sido apresentada e descontinuada pela Reitoria da Universidade de Lisboa. “Na altura havia poucas pessoas a vir de bicicleta para o Técnico, não havia praticamente estacionamentos de bicicleta, e tivemos esta ideia de acordar um bocadinho a nossa população para esta realidade sustentável e prazerosa que é andar de bicicleta”, recorda. O “A pedalar” colocou ao serviço da comunidade 40 veículos (20 alugadas em segunda mão, dez emprestadas por membros da comunidade e outras dez adquiridas pelo Técnico com o patrocínio da Caixa Geral de Depósitos). O balanço não deixa dúvidas: “Apesar de ter havido muita adesão, apesar de não haver ciclovias ou estacionamentos específicos para bicicletas no campus, houve adesão e a população ficou desperta”, acrescenta.

Hoje em dia, o projeto ainda tem duas bicicletas disponíveis gratuitamente “para que as pessoas utilizem num registo de algumas horas, de um dia para o outro, dois dias, para experimentarem”. As outras oito transitaram para o projeto “U-bike Portugal – Operação Técnico”, que começou a emprestar bicicletas elétricas à comunidade do Técnico a partir de 2018. É aqui que entra Mário de Matos, da Área de Instalações e Equipamentos do Técnico, e responsável técnico desde 2016 do projeto. Em resposta a uma chamada para promover o uso de bicicletas elétricas e convencionais na comunidade académica, surgiu esta nova vaga de mobilidade sustentável. “Começámos a desenvolver um projeto de colocação de parqueamentos para bicicletas nos campi do Instituto Superior Técnico e definição das caraterísticas técnicas das bicicletas, em particular das elétricas”, recorda Mário de Matos. “A evolução tem sido exponencial, mas em 2016 não havia ainda conhecimento disseminado do que é que era uma boa bicicleta elétrica e quais as caraterísticas ideais”, complementa. Encontrado o modelo, era tempo de distribuir as bicicletas pela comunidade através de sorteio, em setembro de 2018. Eram 20 bicicletas para 350 inscritos no projeto que pudesse rodar o mais possível. “A ideia é que os utilizadores ao fim de algum tempo pudessem entusiasmar-se de tal forma por este meio que os levasse a adquirir a sua bicicleta”, explica. Esse modelo, que veio a ser interrompido pela pandemia, permitiria que houvesse mais utilizadores a usar as bicicletas do projeto. Até hoje, foram 132 os utilizadores que usaram essas vinte bicicletas.
Com o projeto U-Bike nasceu também nesse ano, na garagem do Pavilhão de Civil do campus Alameda, a cicloficina, um espaço dedicado ao apoio ao utilizador da bicicleta, totalmente financiado pelo Técnico. O objetivo é “disponibilizar ferramentas a qualquer momento, como encher um pneu, disponibilizar apoio mais alargado a nível de troca de ideias e apoio sobre como se faz a manutenção da nossa própria bicicleta”, explica Mário de Matos.

Com os dois projetos ainda em curso, o balanço não se faz apenas pelo aumento do número de utilizadores de bicicleta na cidade e no campus, mas também na transformação de infraestruturas como os parqueamentos. “Antes do projeto [U-bike] se iniciar tínhamos cerca de 50 lugares e apenas no campus Alameda. Neste momento, temos aqui 200 lugares e também no campus Taguspark (Oeiras) e no campus Tecnológico e Nuclear (Loures), onde não havia qualquer lugar para estacionar as bicicletas”, explica Mário de Matos. E tem valido a pena? Marta Pile responde: “Neste momento já há ciclovias, uma maior cultura de andar de bicicleta aqui em Lisboa e menos receio”.

Episódio 83: FeedBot, o braço robótico

sexta, fevereiro 24th, 2023

Quase todos os dias, à hora de almoço, é comum observar-se nos vários refeitórios do Técnico grupos de professores e investigadores em discussões e partilha de ideias. Um desses grupos integra vários professores do Departamento de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores (DEEC) e investigadores do Instituto de Sistemas e Robótica (ISR-Lisboa), incluindo Manuel Marques, portador de paralisia cerebral, e João Paulo Costeira, um dos seus colegas de trabalho. A assistência ao investigador do Técnico no processo de alimentação é encarada com naturalidade. “Se o Manuel precisa de comer, alguém dá de comer. Faz parte da rede social. O vínculo nesta profissão vai para lá da mera prestação de serviços”, sublinha João Paulo Costeira. É tão natural que foi preciso um olhar do exterior para identificar um possível problema cuja solução poderia contar com o contributo do mesmo grupo de investigadores: como ajudar a alimentar quem não tem a possibilidade de se alimentar sozinho?
Da pergunta nasceria uma linha de investigação que viria a dar origem ao FeedBot, um braço robótico com o objetivo de ajudar pessoas com dificuldades motoras. Mas até se chegar à pergunta (e ao objeto que se encontra na Torre Norte do campus da Alameda) foi necessária uma viagem aos Estados Unidos da América, como conta o próprio Manuel Marques: numa visita à Carnegie Mellon University, em 2014, a professora portuguesa de robótica e computação, Manuela Veloso, reparou que precisava de ajuda de outras pessoas para almoçar e lançou o desafio de criar algo que o tornasse capaz de se alimentar sozinho. “A ideia foi dela. Realmente eu nunca senti a necessidade porque tenho sempre companhia para almoço e para jantar”, explica. “O desafio foi: ‘vocês têm as competências’ – ambos somos investigadores em visão por computador – e como é que o Manuel não tem um sistema autónomo? Ora, não nos tinha passado pela cabeça essa ideia”, reforça também João Paulo Costeira.

A partir de 2017, formou-se uma equipa e deu-se início ao projeto científico que serviria de base à construção do robot – o FeedBot. Como prioritários estavam os aspetos da visão e da manipulação. “São dois aspetos fundamentais: a perceção, saber onde está a cara e a boca para levar a comida e outro, em inglês o scooping, que é ser capaz de meter comida na colher, sem a deixar cair”, explica João Paulo Costeira. O resultado, apenas dois anos depois, expressou-se num robot já capaz de ajudar um homem a alimentar-se e com algumas componentes completamente inovadoras. No campo da visão, Manuel Marques converteu-as em artigos onde dá um enorme contributo para a resolução de um dos mais complexos desafios: fazer o robot adaptar-se ao ritmo e aos movimentos de cada pessoa. “Um dos objetivos do projeto era que o braço robótico fosse ao encontro da pessoa a alimentar e não o contrário”, explica Manuel Marques. A solução passou pelo desenvolvimento de algoritmos que, recorrendo a um sistema de câmaras, ajudavam o Feedbot a identificar movimentos do utilizador e assim perceber onde estava a boca da pessoa.

A utilização que o próprio Manuel Marques fez do FeedBot resumiu-se, essencialmente, a lanchar um iogurte à hora que entendia, de forma autónoma. Porque o almoço é combinado e faz-se em grupo. Para João Paulo Costeira, o robot nunca será uma alternativa ao acto social da hora de almoço: “É hora de discussão, criação. Faz-se muita coisa à hora de almoço. Também comer”. Mas pode representar um enorme potencial por exemplo “em instituições em que é preciso alimentar 20 ou 30 pessoas e a alimentação não é um acto social, é apenas uma pessoa a distribuir comida”. “Aí o robot vai permitir a socialização. Em vez de estarem à espera de ser alimentadas, estão a interagir enquanto o robot as alimenta”, complementa.
E quanto às refeições de Manuel Marques, é expectável que sofram alterações? Enquanto houver um ser humano por perto, não. “Gosto muito das refeições que sempre tive com familiares, amigos e companheiros de trabalho”, responde com complemento: “Nós portugueses somos assim, muitas vezes temos as ideias à volta de uma mesa”.

 

Como ensinar um robot a perceber o momento de interação social
«[O FeedBot] é uma máquina automática em que é basicamente uma colher com uns motores e um bracinho que vai a um prato, põe comida num prato e fica quieto à espera que a pessoa lá vá. É uma máquina, não tem perceção, portanto não se adapta. A pessoa é que se adapta à máquina.
O problema que foi posto e que se desenvolveu (há várias teses para lá da tecnologia) é que este sistema tinha que se adaptar ao utilizador. Um dos trabalhos que foi feito foi – o Manuel Marques tem uma relação desde sempre com o Centro de Reabilitação Paralisia Cerebral Calouste Gulbenkian – foi mostrar variabilidade na incapacidade motora. Há pessoas que mexem pouco a cabeça e, portanto, o robot tem de ir de encontro à pessoa, outras têm movimentos involuntários, e têm muita mobilidade na cabeça, portanto o robot aí ou espera ou segue a pessoa até cumprir a tarefa.
Há mais passos a dar. Sobretudo quando olhamos para a refeição como ela é, que é um acto social e não um acto mecânico. Na parte mecânica, o Feedbot mostra que se resolve. É possível. A questão é que depois o robot, se a gente tem arroz com feijão e só nos dá o feijão, a refeição não corre lá muito bem.
A outra questão é: quando é que uma pessoa come? O robot tem que adivinhar quando é que me apetece uma colherada. Se eu estou no meio de uma conversa e vem o robot e enfia-me uma colherada na boca, não é propriamente um acto simpático. Quando eu alimento o Manuel, inconscientemente eu sei quando é que devo dispor a colher… Um dos próximos passos é poder dizer ao robot o que fazer a seguir.»
(João Paulo Costeira)

Episódio 82: O molinete de Estêvão Cabral

sexta, fevereiro 17th, 2023

Hoje sabemos que a velocidade da corrente em cursos de água não atinge o seu máximo à superfície, sendo necessário medi-la também em profundidade. Mas até ao final do século XVIII essa dúvida ainda pairava sobre as mentes curiosas e não havia nenhum instrumento capaz de o fazer. Foi assim, até um padre jesuíta português radicado em Itália – Estêvão Cabral (1734 – 1811) – ter publicado a descrição de um aparelho capaz de fazer medições da velocidade do escoamento em rios a diferentes profundidades. Ficavam publicadas, em 1786, as bases do “molinete de Estêvão Cabral”.
“Foi uma contribuição perfeitamente pioneira. Este equipamento é especial porque é uma invençãode uma figura com uma grande relevância para nós, uma figura da ciência e um português”, defende Maria Manuela Portela, professora associada com agregação do Departamento de Engenharia Civil e Arquitetura do Técnico e investigadora na área da hidrologia e recursos hídricos superficiais no CERIS – Investigação e Inovação em Engenharia Civil para a Sustentabilidade. “Como a velocidade não é uniforme, para sabermos o caudal temos que saber a velocidade a diferentes profundidades”, explica. Medir a velocidade da corrente dos cursos de água é fundamental para estimar o caudal, a quantidade de água transportada, fundamental para os estudos da hidráulica. “Conhecer o caudal é um meio de contabilizar a disponibilidade hídrica e de gerir os recursos hídricos. Não pode haver gestão dos recursos hídricos, e em Portugal ainda mais, se não houver um conhecimento do quantitativo de que nós dispomos. Esse quantitativo mede-se nos rios”, aprofunda.

O primeiro exemplar do aparelho terá sido construído apenas alguns anos depois da publicação do documento assinado pelo padre jesuíta. Falamos de uma roda de latão de eixo vertical com seis pás planas, alojadas numa caixa metálica. Muito depois disso foram construídas as duas réplicas que estão no Técnico, uma no Museu de Civil e uma outra nos corredores do edifício de civil do Técnico. Terão sido construídas em 1986, para a celebração do centenário da então Direcção-Geral dos Recursos e Aproveitamentos Hidráulicos. Flutuaram até ao Técnico já neste século, onde ainda permanecem por cedência temporária protocolada com a Agência Portuguesa do Ambiente após a extinção do Instituto da Água, em 2010.

Entre os primeiros molinetes construídos e as réplicas celebrativas não fica claro se o molinete de Estêvão Cabral terá sido ou não amplamente utilizado. Mas uma dúvida não existe sobre a invenção e o seu autor: “foi sem dúvida pioneiro e media com rigor em profundidade. E demonstrou que a velocidade do escoamento não era máxima à superfície, que era preciso penetrar no escoamento para assim se obter o perfil de velocidade”.

 

Histórias Extra

Um: Como funcionava o molinete?
«Este molinete é de eixo vertical, mergulhado na vertical no escoamento, e consta essencialmente numa roda de latão, com cerca de 16.5 centímetros de diâmetro e está provida de oito pás planas radiais e cada uma tem 5,5 centímetros de altura. Ela tem a roda e está alojada numa caixa metálica com duas tampas, circulares, uma superior e outra inferior. Está lá alojada como se fosse um cilindro, só que a parede do cilindro está fechada em metade do perímetro das tampas e na outra metade está aberta, Portanto, quando a roda era mergulhada na água criava-se um binário, porque uma parte da roda estava protegida do escoamento e a outra era atuada pelo escoamento. Esse binário fazia-a rodar e ela tinha uma bandeirola cá em cima e, portanto, contava as rotações que ela dava num dado intervalo de tempo. Esse intervalo de tempo era medido com um pêndulo. E, portanto, ele sabia a rotação da bandeirola e sabia o intervalo de tempo. Depois, era preciso transformar esta rotação da bandeirola numa velocidade. Para esse efeito, calibrou o seu aparelho através da medição das velocidades à superfície, porque ele só queria calibrar, só queria estabelecer uma relação entre a velocidade de rotação da bandeirola e a velocidade do escoamento. Procedeu a medições da velocidade superficial e assim calibrou as rotações do molinete e apresentou diagramas que nos permitem já saber a velocidade do escoamento em função da profundidade. Uma vez calibrado, era só uma questão de o ir mergulhando. Ia mergulhando e contava as rotações e assim sucessivamente. Admitiu que havia uma proporcionalidade entre a velocidade e as rotações.»
(Maria Manuela Portela)

Dois: Estêvão Cabral e Portugal, partir para voltar
«Nasceu em 1734, no concelho de Castelo Branco. Aos 14 anos foi para Coimbra estudar com os Jesuítas e entrou na companhia de Jesus aos 16 anos. Estava no Colégio de Jesus quando em 1759 o Marquês de Pombal ordenou a expulsão dos jesuítas de Portugal. Foi para Itália, julga-se que para Tivoli, nas proximidades de Roma. Terá sido professor de matemática e de geometria no Colégio de Tivoli.Regressou a Portugal em 1788 em consequência da morte do pai. Trabalhou para a coroa por determinação da rainha Dona Maria I. Ela solicitou-lhe precisamente que analisasse os danos causados na parte jusante do rio Tejo e que propusesse soluções para remediar esses danos, devido às cheias, a que frequentemente era sujeita, e ele apresentou os resultados do estudo sobre as soluções para remediar os danos no rio Tejo e nas zonas ribeirinhas na Academia das Ciências de Lisboa e julgo que este estudo está lá arquivado (1788). Posteriormente também desenvolveu estudos para a ribeira da Ota e para o Rio Mondego. Veio a falecer aos 77 anos, em 1811. Entre os seus 37 e 52 anos publicou 4 livros: dois sobre geometria e um sobre monumentos antigos do território e da cidade de Tivoli. E um quarto livro no domínio da hidráulica. Nesse quarto livro é que inclui um apêndice (era meramente um apêndice) em que apresentava o equipamento que havia concebido para medir a velocidade nos cursos de água naturais, que não somente à superfície. Não lhe foi dado talvez o destaque que merecesse, porque foi um apêndice de um livro de hidráulica.»
(Maria Manuela Portela)

 

Episódio 81: Flexcraft, a aeronave modular

sexta, fevereiro 10th, 2023

Tudo se resume a uma asa. Essa é a base do veículo e da tecnologia inovadora idealizada por investigadores e estudantes do Instituto Superior Técnico, no início deste século. Uma asa que pudesse ser operada remotamente, funcionando quase como um táxi aéreo que pode agarrar vários tipos de cabines com várias aplicações, do transporte de mercadoria ao socorro de vítimas.
Esta aeronave modular em forma de asa, batizada como Flexcraft, foi projetada para ter 15 metros de uma ponta a outra da asa e para permitir o transporte de uma carga até 1000 quilos (ou 8 ou 9 passageiros), durante cerca de 500 quilómetros. Um veículo aéreo completamente diferente das aeronaves tal como as conhecemos hoje. “Apercebemo-nos, no contacto com empresas logísticas, que há aqui um nicho de mercado que pode ser explorado para fazer a entrada desde centros que estão na periferia até aos grandes centros logísticos”, explica Fernando Lau, professor no Departamento de Engenharia Mecânica e coordenador do Mestrado em Engenharia Aeroespacial.
As possíveis aplicações desta asa que transporta cabines de um lado para o outro não se esgotam no transporte de mercadorias. “Uma das preocupações é com incêndios: imaginámos uma forma muito rápida de fazer o transporte de doentes com esse tipo de sistema”, complementa. As cabines podem ser várias coisas como contentores, ambulâncias, aeronaves de transporte de passageiros, entre outras.

O projeto surgiu no ano letivo de 2015/2016 e envolveu vários estudantes de mestrado e de doutoramento do Técnico. Bebeu ideias de um projeto anterior, mais dedicado a aeronaves convencionais, uma espécie de jato executivo, com capacidade para quatro passageiros, mas rapidamente se converteu nesta estratégia das asas voadoras. Esta missão de criar novos conceitos de aeronaves envolveu várias entidades, como o INEGI – Instituto de Ciência e Inovação em Engenharia Mecânica e Engenharia Industrial (INEGI), a Alma Design e a Embraer Portugal.
A Flexcraft, desenhada para não precisar de uma pista convencional para levantar e aterrar, chegou a ter um modelo à escala de 1/10 (com 1,5 metros de ponta a ponta da asa, em vez dos 15 metros) que conseguiu levantar voo percorrendo 20 metros em seis segundos, num terreno de terra batida, durante um estudo de viabilidade de conceito. “O que imaginámos é que não precisaríamos de uma pista convencional. Podiam ser centros logísticos, armazéns, que tivessem algum terreno à volta”, explica Fernando Lau.

Ao mesmo tempo, os outros parceiros do projeto estavam a construir uma cabine à escala, que foi apresentada aqui no campus na Alameda do Técnico, em 2020, na apresentação final do projeto. “Qualquer pessoa que entrasse conseguia ver de forma tão realista quanto possível como seria um voo na aeronave. Inclusivamente houve a criação de um sistema de realidade virtual, com capacetes, em que a pessoa dentro da aeronave também conseguia imaginar como é que seria o voo”, explica. Ficou só mesmo a faltar uma asa em tamanho real, objetivo que não se concretizou por força “da pandemia e da incerteza que se gerou”. E o que se segue? “Estamos a pensar numa nova candidatura, passando para uma aeronave de voo vertical, inspirada no flexcraft”, responde Fernando Lau.

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