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Episódio 51 – O 1.º betão armado

sexta, junho 17th, 2022

Tudo começa num incêndio. A 10 de junho de 1897, as chamas avançaram impiedosamente sobre a Fábrica de Moagem do Caramujo, em Almada, destruindo-a quase por completo. A urgência da sua reconstrução, e com materiais que pudessem evitar que o desastre voltasse a acontecer, colocou a então Fábrica Aliança na história dos edifícios em Portugal. Foi a primeira vez que um edifício foi reconstruído integralmente em betão armado no país e uma das raras vezes no mundo. A técnica tinha sido patenteada em França, por François Hennebique, poucos anos antes. “Precisavam de reativar rapidamente a atividade, decidiu isso e passado um ano e tal a fábrica estava a funcionar”, explica José Manuel Gaspar Nero. O antigo docente do Instituto Superior Técnico foi o responsável por levar para o Técnico e para o Museu de Civil um testemunho dessa construção, no início dos anos 90. “Um aluno meu de Mestrado estava a fazer um trabalho sobre a fábrica do Caramujo. Fui lá e encontrei essa peça degradada num dos pisos e trouxe-a”, recorda.
Falamos de um pedaço desse primeiro betão armado da fábrica, com cerca de um palmo, produzido em Portugal com um pedaço de varão de aço e cimento da primeira fábrica de cimento em Portugal (a Cimentos Tejo, hoje Cimpor), constituída alguns anos antes em Alhandra.

A definição de betão armado é-nos dada por Júlio Aplleton, professor aposentado do Técnico, e pode ser resumida numa “composição de betão e de armaduras”. O betão é um compósito feito por um ligante, atualmente o cimento, no tempo dos romanos a cal, e por agregados como areia ou brita, assim como por outros produtos químicos, em pequena quantidade, que permitem controlar a sua composição, torná-lo por exemplo mais fluido, mais compacto, etc. As armaduras geralmente são fornecidas em varão, sendo resistentes à tração e à compressão.
Apesar desta construção ainda no século XIX, os edifícios em betão armado apenas começariam a ser introduzidos sistematicamente em força nos anos 20, em Portugal. Depois de períodos com recurso ao uso da gaiola pombalina (ouvir Episódio 9: A Gaiola Pombalina), com estruturas em madeira, e com recurso a tabique noutro período apelidado de “Gaioleiro”, chegava o tempo do betão armado, com a introdução de novos elementos, um dos mais significativos assentava na substituição das madeiras por vigas metálicas. Com um arranque tímido – “Muitas construções eram feitas em betão a imitar a pedra, não havia ainda o assumir do betão. Muitas casas parecem de alvenaria”, recorda Júlio Aplleton -, o betão armado foi até usado como material de construção de barcos de mais de 100 metros de comprimento, durante a 1.ª Guerra Mundial. Muito rapidamente se tornaria na técnica preferencialmente usada pelo Estado Novo e até o campus do Técnico na Alameda (ouvir Episódio 19: A 1.ª Imagem do Técnico) recorreu ao betão armado (apoiado em paredes de alvenaria). Também pelo Técnico passou “o grande engenheiro projetista do século XX em betão armado”, onde foi também uma das grandes referências no ensino de Pontes e Estruturas (ouvir Episódio 35 – A Maquete da Ponte da Arrábida).

Este pedaço do 1.º betão armado em Portugal testemunha a importância daquele que se assumiu como “o material do século XX”, nas palavras de José Manuel Gaspar Nero. “Foi o material que fez progredir a rapidez e a estabilidade dos níveis de construção. É muito importante e ainda não está em decréscimo, embora se esteja a introduzir elementos secundários de aligeiramento das estruturas”, aponta.

Episódio 50 – Portugal, o Hidroplanador

sexta, junho 10th, 2022

Tem cerca de 19 metros de envergadura e elevou-se nos céus, até aos 140 metros de altitude, partindo da Doca do Bom Sucesso, junto à Torre de Belém, em Lisboa, acabando rebocado por uma embarcação. Se tivesse acontecido ontem com um avião a motor, talvez não fosse nada de especial, mas estamos em 1934 e a falar de um hidroplanador (sem motor) construído desde 1929 por Artur Varela Cid, na altura um jovem estudante do Técnico. Alguns anos depois, repetiu o voo, a partir da Póvoa de Santa Iria, desta vez a 30 metros de altura. E a partir daí, “Portugal, o hidroplanador” nunca mais voou. Era apenas o terceiro hidroplanador do mundo a fazê-lo, numa altura em que o conhecimento aeronáutico ainda germinava.
“Era preciso misturar aerodinâmica com hidrodinâmica porque aterrar na água não é fácil. Mas na altura procurava-se muito isso porque nem sempre as superfícies terrestres estavam preparadas para poder aceitar uma aeronave com rodas. A água sempre dava outra segurança”, explica o Coronel Mota Raposo, diretor do Museu do Ar, onde o aparelho se encontra exposto (no pólo de Alverca).
É o maior objeto exposto no Museu, descrito assim pela Alferes Rita Amaral, Adjunto para a Comunicação de Eventos do Museu: “Um objeto gigante de madeira e tela, com fuselagem e asas de madeira. Não tem motor pelo que não precisa de ser revestido com metal, e é todo revestido em tela (neste momento nas asas não tem)”. “Pode não ter grande história para a Força Aérea e para a aeronáutica militar enquanto todo, mas enquanto evolução tecnológica é uma peça rara”, complementa. Deu um contributo inestimável para o conhecimento das componentes aerodinâmicas de voo e apresentava-se também como uma boa ferramenta de instrução para os aviadores. “Não haver ruído do motor, ter uma habilidade para procurar as ascendentes, gerir bem o voo aproveitando aquilo que a natureza nos dá e ouvir-se apenas o sibilar do vento é algo que é epíteto do que é voar”, resume Mota Raposo.

“Portugal” foi o primeiro grande trabalho de Varela Cid, que se viria a tornar também docente do Instituto Superior Técnico, até 1965. Dedicou toda a sua carreira à aeronáutica e é apresentado por Luís Braga Campos, professor catedrático do Técnico, jubilado e emérito, e que foi também coordenador do curso de Engenharia aeroespacial, como “um caso único de um pioneiro do lado da Engenharia”. “Ele fez um avião a partir do zero. Enquanto que todos os outros usavam aviões comprados. Num período de pioneiros na pilotagem, foi um pioneiro na Engenharia”. Foi possivelmente o único a fazer aviões de raiz em Portugal, tendo também feito o motoplanador São Miguel, também um hidroavião, após o término da 2.ª Guerra Mundial. Conseguiu uma Bolsa de Estudo do Instituto de Alta Cultura, que usou na Alemanha para construir um túnel aerodinâmico, provavelmente o primeiro em Portugal e que foi muito importante para estudantes e professores do Técnico poderem desenhar aviões. No Técnico lecionou três disciplinas – Aerodinâmica e Aeronâutica 1 e 2 – mas acabaria afastado em 1965 na sequência de algumas polémicas. “Acaba por ser uma figura um bocado trágica. Fez coisas boas, inegáveis mas meteu-se em controversas desnecessárias. A combinação das controvérsias e da mentalidade adversa do tempo acabou por prejudicá-lo”, resume Luís Braga Campos.

O que aconteceu ao hidroplanador Portugal entre os seus dois voos e 2016, data em que foi exposto no Museu do Ar, não é também totalmente claro. Passou um período nas instalações do Técnico e, provavelmente, algumas décadas guardado num armazém até ter sido entregue aos cuidados do Museu do Ar, nos anos 80, antes da morte de Varela Cid (1984). Ficou na reserva da coleção do Museu até 2008, ano em que se deu início ao seu restauro, num protocolo entre a Força Aérea e a Escola de Recuperação de Património de Sintra. “Quando cheguei o hidroplanador estava num armazém em Alverca, cheio de pó, com vários orifícios de mau manuseamento. As asas, para serem melhor acondicionadas, foram serradas a meio. Havia muitas das peças em falta e não havia os projetos originais do hidroplanador, o que dificultou um bocadinho a nossa intervenção”, recorda Gonçalo Carneiro, conservador/ restaurador da escola. No processo de restauro estiveram envolvidos cerca de 100 alunos, que o prepararam para novos voos enquanto objeto histórico quase um século depois.
Para o Técnico, para além dos seus hidroaviões e de todo o conhecimento aeronáutico que ajudou a produzir, Varela Cid levou também três aviões reais da 2.ª Guerra Mundial – um Bristol Blenheim, um bombardeiro ligeiro e dois caças pesados Bristol Beaufighter – que permitiram aos estudantes do Técnico conhecerem a estrutura e anatomia de um avião real. Motores, asas e muitas histórias em torno de Varela Cid, como as recordadas dos dias em que ele ia ao Técnico testar os motores do Bristol Blenheim e ninguém conseguia dar aulas.

 

Episódio 49 – A Máquina de calcular, de manivela, de Herculano de Carvalho

sexta, junho 3rd, 2022

Recuperando uma imagem dos anos 60, vemos uma enorme secretária de madeira, cheia de papéis e com uma máquina de calcular, de manivela, pronta para operações de multiplicar, dividir, somar e subtrair. Estamos no Laboratório de Análises do Técnico, nessa altura dirigido por António Herculano de Carvalho (Diretor do Técnico entre 1938 e 1942), e na memória ecoa também o som de uma manivela barulhenta que utilizava enquanto calculava os elementos que caraterizavam a água. “O Professor Herculano fazia os boletins de análise e para os fazer tinha que efetuar cálculos com esta máquina. Ele colocava esses valores na análise e via se a análise estava correta. E emitia com as caraterísticas da água”, recorda Maria Cândida Vaz, professora aposentada do Técnico, que chegou ao Técnico em 1963 para trabalhar com Herculano de Carvalho e que viria mais tarde a dirigir o Laboratório, em 1984.

Falamos de uma máquina de calcular baseada em rodas e manivela, de origem sueca e datada do início dos anos 30, uma evolução já considerável após o aparecimento das primeiras nos finais do século XIX. Tem cerca de 30 cm de largura e pesa aproximadamente 10 kg. “Eram os melhores meios de cálculo que estavam disponíveis à época, o que de melhor havia para fazer contas com alguma precisão”, explica Carlos Albuquerque, professor no Departamento de Matemática na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. “Eram máquinas metálicas essencialmente, movidas à mão. Quando fazemos uma operação, por exemplo somar dois números, temos normalmente um conjunto de rodas que são os acumuladores onde ficam registados os números e temos um registo onde fazemos a marcação do número e de cada vez que damos à manivela estamos a somar ou subtrair números ao acumulador”, descreve.
Para multiplicações de, por exemplo, um número de sete algarismos por outro de seis algarismos o resultado é “razoavelmente imediato”. “Quando estas máquinas se desenvolveram, a alternativa era uma pessoa a fazer à mão, em papel”, refere. A régua de cálculo (Ver Episódio 39) não dá os mesmos níveis de precisão. “Para Engenharia é excelente, mas para não para o cálculo financeiro ou astronómico ou um tipo de cálculo que precise de maior precisão”, complementa.

No Técnico, a máquina era usada por Herculano de Carvalho, um dos nomes da geração de engenheiros formados nos anos 20 e 30. “Queria mudar o país, que o país se desenvolvesse. Estava interessado que a indústria se fixasse no país e procurou através da ciência que houvesse investigação igual à que se fazia lá fora”, descreve Cristina Marques, aluna do Doutoramento em História e Filosofia da Ciência na Universidade de Évora e investigadora integrada do Instituto de História Contemporânea do Pólo de Évora.
Discípulo e seguidor científico das pisadas de Charles Le Pierre (ver Episódio 27 – O Autoclave de Charles Lepierre), Herculano de Carvalho foi também um dos pioneiros em Portugal na investigação na área da energia nuclear. Teve também um papel crucial na instalação em Portugal do Laboratório de Espectrometria de Massa e Física Nuclear que, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, foi instalado no Complexo Interdisciplinar (Ver Episódio 25 – A “Exaltação dos ritmos dominantes das origens”). “Com a 2.ª Guerra Mundial e com o despertar da energia nuclear, atómica, surge em Portugal uma possível área de investigação, porque o país era rico em urânio. Todo o projeto de investigação que era feito nos Estados Unidos era supersecreto e, portanto, não havia grande conhecimento da investigação. Segundo aquilo que li, [Herculano] foi um dos primeiros cientistas a ter acesso ao projeto de Manhathan para poder avançar com a investigação”, conta.
A máquina de calcular, que terá acompanhado os principais momentos de investigação de Herculano de Carvalho, terá perdido influência a partir dos anos 70, com o surgimento das máquinas de calcular eletrónicas, o que torna o seu uso numa experiência de viagem no tempo, como descreve Carlos Albuquerque: “Há sensações que são próprias do nosso tempo, como mexer num telemóvel, e há esta sensação mecânica, típica de há 100 anos, das coisas mexerem, serem pesadas terem este barulho, terem este ar sólido…”.

História Extra
Carros movidos a lenha?
«Na 2.ª Guerra Mundial também houve o problema dos combustíveis. O Prof. Herculano era o Presidente do Instituto Português dos Combustíveis e fez investigação para que se tentasse encontrar uma alternativa aos combustíveis. Fez uma investigação que envolvia carros com gasómetros. Eles punham lenha, uma combustão controlada, o carro andava, de x em x quilómetros tinham que parar para limpar os filtros e também para pôr mais lenha. Mas os veículos andavam era uma alternativa que ele tentou sempre procurar. Preocupou-se muito com a poluição ambiental, dos combustíveis e os fertilizantes para a agricultura.»
(Cristina Marques)

 

Episódio 48 – Os AGVs: da feira da ladra ao ITER

sexta, maio 27th, 2022

Às vezes basta engenho, criatividade e tempo para dar força a uma ideia. Em poucos anos, um “cangalho”, construído com aproveitamento de rodas de patins e motores de para-brisas comprados na Feira da Ladra, materializou-se num conjunto de AGVs (Automated Guided Vehicles) cruciais para o funcionamento de um dos centros de investigação mais avançados do mundo (o ITER – International Thermonuclear Experimental Reactor), atualmente em construção em França.
Para perceber a história dos AGVs do Técnico, é preciso recuar aos anos 80. Um conjunto de professores do Departamento de Mecânica decidiu criar um novo projeto para motivar alunos, aqui relembrado por Carlos Pinto Ferreira, professor associado aposentado do Técnico e investigador do Instituto de Sistemas e Robótica (ISR): “Era um grupo de professores que começou a ter umas ideias completamente malucas: falar em robótica, robótica móvel, robótica inteligente, robótica submarina. Ficávamos sempre com aquela sensação de estarmos sempre a falar de coisas que nos pareciam pura ficção científica”. Dessas ideias surgiu a vontade colocar os alunos do Técnico a “pôr a mão na massa” e assim nascia uma disciplina nova – Projeto e realização de sistemas de controlo – e com ela o primeiro AGV do Técnico. Feito com material em segunda mão, oriundo da Feira da Ladra e do ferro velho de Sacavém, surgia o robot com 50cm, rodas de patins e motores de limpa-brisas para o movimento, simpaticamente apelidado de “cangalho” por Carlos Pinto Ferreira. É o processo de criar uma coisa nova: “Juntar essas peças todas para criar um sistema inteligente e reativo, que faça qualquer coisa. A robótica tem esse lado interessante de fazer síntese, de brincar aos deuses. E os alunos reagiram muito bem a isto. Criou uma energia muito interessante da parte de quem é novo e quer ser engenheiro”, defende.

“Nós não tínhamos muito dinheiro para fazer isto, não tínhamos nenhum. Como engenheiros tínhamos que usar o engenho para o que a gente precisava”. A visão é de Isabel Ribeiro, professora catedrática aposentada do Departamento de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores do Técnico e professora distinta do Técnico e investigadora do ISR, que acompanhou de perto o processo. Em 1988 já estava no Técnico como doutorada e também começou a fazer trabalhos com AGVs com os seus alunos. Dessa experiência à aplicação de boas ideias na indústria foi um pequeno passo. A empresa Efacec interessou-se pela tecnologia para a aplicar no transporte automático de materiais nas suas fábricas e Isabel Ribeiro montou uma equipa para concretizar a parceria. O Técnico avançava, no início dos anos 90, com o conhecimento de controle do veículo, software do veículo e e software de gestão da movimentação dos veículos e a empresa ficava responsável pela parte mecânica e eletrónica de potência.
Construíram-se quatro AGVs industriais, cada um com dois metros e com níveis de complexidade muito superiores ao “cangalho” original. “Tinham que andar para a frente e para trás e, portanto, tinham bobines, nas rodas da frente e rodas de trás, e tinham que fazer paragens de precisão. Tinham que recolher paletes com material em pontos precisos à saída dos armazéns automáticos, viajar pela fábrica e deixar estas paletes em cima de mesas de trabalho. A precisão com que paravam tinha que ser menor que um centímetro”, recorda Isabel Ribeiro. “Estávamos, sobretudo em Portugal, nos primórdios deste tipo de transporte automático de materiais. Não se sabia o que era”, complementa. Para Jorge Couto, atual responsável pela Costo Intralogistic e na altura representante da Efacec, a parceira teve o mérito de transformar inverter a tendência de desperdício de projetos que provêm das Universidades. “As boas ideias não eram devidamente industrializadas”, aponta.

O percurso desta “boa ideia” não ficou por aí e, alguns anos mais tarde, os seus princípios são aplicados numa escala ainda maior. Verdadeiros camiões, com 8,5 metros de comprido, 2,5 metros de largura e 3 metros de altura, são desenhados para a difícil missão de fazer a manutenção das paredes do gigante Tokamak do ITER, o reator de fusão nuclear deste projeto internacional de grande dimensão, 40 vezes maior que o do Técnico (ver episódio 11). Num ambiente com radiação, com curvas apertadas e sem margem de erro possível, a solução escolhida nasceu a partir da experiência do Técnico e de Isabel Ribeiro, depois de rejeitada uma proposta de uma equipa japonesa. “Fomos convidados a fazer um desenho conceptual alternativo ao desenho dos japoneses [no final dos anos 90]. Muitos anos passados, e já numa fase mais avançada do ITER, a ideia que está por trás dos veículos que já estão a ser construídos é a nossa. Portuguesa, do Técnico, do ISR. Terei muito orgulho quando o ITER começar a funcionar e pensar que um bocadinho de mim está ali”, partilha Isabel Ribeiro.

Episódio 47 – A IST_Board

sexta, maio 20th, 2022

Em 2006, uma urgência de professores e alunos do Técnico viria a dar origem a uma solução tecnológica de uma empresa internacional que se tornaria um fenómeno de vendas. Carlos Cardeira, professor auxiliar na área científica de controlo, automação e informática industrial do Técnico, procurava uma solução económica para uma placa que ligasse através de uma ficha USB um portátil a um robot móvel. A placa de aquisição de dados que existia no Departamento de Engenharia Mecânica tinha sido construída peça a peça pelos professores da casa (falaremos dela num episódio futuro) mas as suas dimensões eram impróprias para os novos trabalhos de automação, que incluíam esses pequenos robots. “Sentíamos a necessidade de fazer experiências práticas que até se pudessem levar para casa”, recorda Carlos Cardeira. Nascia assim a necessidade que viria dar origem à “IST_Board”, a placa que permitiria que computadores e robots trocassem dados.
A procura chegou aos ouvidos de Carlos Gomes, na altura diretor comercial da empresa National Instruments, uma das mais conceituadas do seu sector. “Apaixonei-me pelo projeto. Senti que o que se estava ali a fazer era algo de extraordinário. Com pouco investimento poder realizar um robot, envolver uma centena de alunos, a um preço inacreditável. Era um desafio que achava bonito. Ser capaz de competir com os melhores do mundo mas com essa diferença [económica]”. No entanto, o produto não existia ainda na sua empresa. “Na primeira reunião fiquei tão entusiasmado que vim para casa e pensei: não tenho solução, não há. Fiquei alguns dias sem dormir”. O estado adiantado deste projeto pedgógico do Técnico fez com que a empresa apressasse o desenvolvimento de placas de aquisição de dados exatamente à medida da encomenda que saiu de Portugal.

Pouco tempo depois, chegariam ao Técnico 100 placas. A primeira tinha “IST_Board” escrito na caixa da versão de protótipo, as seguintes foram comercializadas como “USB 6008”. Era então possível colocar os alunos a fazer experiências com pequenos robots – baptizados de “rasteirinhos” -, testando os princípios da condução autónoma. Com motores adaptados de parafusadoras baratas e com um portátil e a placa USB em cima, lá seguiam os rasteirinhos pelas pistas sem recurso a telecomando. As placas foram aplicadas numa série de robots que os alunos usavam e podiam levar para casa, mas também para outros fins, como controlar tanques de água. “Ainda hoje usamos algumas daquelas placas em laboratório. A Tecnologia já evoluiu, mas ainda são usadas. Ainda temos robots desses”, explica Carlos Cardeira. As placas assentaram como uma luva no Departamento. “Eram muito mais pequenas, metiam-se em todo o lado e baratas. Foi uma evolução fabulosa”, descreve Mário Ramalho, professor auxiliar do Departamento de Engenharia Mecânica do Técnico que tmabém viveu o processo de transição.

A estratégia de Carlos Gomes – “fornecer a nossa tecnologia a quem já está a estudar em engenharia mas não tem verbas para a tecnologia ainda e que vão poder comprar quando se tornarem engenheiros no local de trabalho” – parece ter funcionado em pleno. No ano seguinte, o catálogo da empresa que era divulgado a nível mundial, apresentava a fotografia do USB 6008 na página de capa. Tornara-se num dos produtos mais vendidos a nível mundial. A necessidade dos alunos do Técnico revelou-se a mesma em países como Japão, Espanha, Itália, Alemanha, França. A empresa lançou rapidamente a USB 6009 e, nos anos seguintes, toda uma gama de produtos direcionados para as Universidades. Portugal e o Técnico foram os pionieiros. Carlos Cardeira recorda a inovação: “Fiquei surpreendido em ver que as minhas especificações estavam ali naquele formato de produto final. Fiquei contente [por ser um dos produtos mais vendidos]”. “Talvez esteja arrependido por não ter negociado de outra forma”, brinca.

Episódio 46 – A máquina perfuradora de cartões

sexta, maio 13th, 2022

Em plenos anos 80, estudantes do Técnico espalhavam-se pelas escadarias do Pavilhão Central (no campus Alameda do Técnico) lendo livros em dias de verão. Era uma das imagens de marca da cultura da instituição, também descrita nos jornais da época. Mas mais do que um indicador de hábitos de leitura, era sobretudo sinónimo de estudantes à espera que a máquina perfuradora de cartões e um computador lhes dessem o relatório dos seus trabalhos de programação informática. “Entre recolher os programas e apresentar os resultados não havia nada a fazer. Esperava-se que o programa já tivesse descoberto todos os erros possíveis”, recorda Mário Ramalho, professor auxiliar do Departamento de Engenharia Mecânica. Falamos do processo de programação informática, na época assegurado por um leitor de cartões associado ao computador IBM 360, e feito ainda de forma analógica, podendo demorar horas ou, não poucas vezes, dias. Como é que se fazia? Teresa Vazão, Professora do Departamento de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores, explica: Numa folha de papel quadriculado, com 80 colunas e um conjunto de linhas, preenchia-se um carater em cada quadradinho. Cada linha era uma instrução de programação. Uma vez terminado o preenchimento dos cartões, eram entregues aos técnicos que “pegavam naquele conjunto de instruções usando a perfuradora de cartões e iam transformar as ordens do programador em ordens que o computador conhecia. Depois colocavam aquela pilha de cartões na máquina, a máquina digeria aquilo por intermédio do programador e o resultado saía numa listagem em papel, naquilo que se chamava uma impressora de rolo de papel contínuo”. Resultados possíveis: programa executado corretamente; resultado executado incorretamente ou uma listagem enorme de erros mostrando que a pessoa se tinha enganado.

Teresa Vazão não integrava o grupo que ficava a ler na escadaria, mas na espera ia para o jardim ao lado da Torre Norte ou mesmo para os ciclos de cinema da Gulbenkian, como os westerns com John Wayne. “Associo muito estes filmes à minha geração de programação assim como associo por exemplo as músicas do Bruce Springsteen, que eram as que ouvia quando estava em casa a fazer código”, recorda.

Quem não se esquece também da máquina perfuradora de cartões é Custódio Peixeiro, igualmente professor no Departamento de Eletrotécnica e de Computadores no Técnico, que tem um cartão perfurado afixado numa parede do seu gabinete. “Os alunos que vêm falar comigo sentam-se em frente para o sítio onde está afixado este cartão. Tem muito a ver com o facto de muitas vezes os alunos se queixarem da falta de condições para fazerem simulações numéricas, a computação. Eu achava que era injusta a análise que eles faziam e contava-lhe a história do cartão, de como nós programávamos quando eu comecei a fazer investigação”, explica.
A máquina perfuradora de cartões do Técnico e o IBM 360 estão atualmente no campus do TagusPark do Técnico, num espaço que será no futuro dedicado a uma coleção da área de Tecnologia de Informação e Comunicação (TIC). Nos anos 80, eram cerca de uma dúzia de máquinas e estavam instaladas no Pavilhão Central, onde atualmente se situa a loja do Técnico (e as serigrafias do centenário – ouvir episódio 44). Eram utilizadas por todos os estudantes do Técnico, que tinham programação no 1.º ano. Depois de perfurados, os cartões eram deixados enrolados num elástico para serem analisados. Só no dia seguinte iam buscar a listagem em papel. Havendo erros, o processo começava de novo. Podia demorar dias.

Era, por isso, “uma máquina apaixonante que criava relações de amor-ódio”, nas palavras de Teresa Vazão. Para além de ser a primeira vez “que um aluno do Técnico sentia que era Engenheiro e que estava a fazer qualquer coisa”, havia uma vantagem neste modo de programar: “tínhamos que pensar muito antes de fazer e de entregar o papel”. E os tempos de espera também tinham as suas vantagens: “Durante o período de programação, é muito importante fazer outras coisas [como ler e ir ao cinema]. Enquanto as fazemos, o cérebro continua a programar”.

Histórias Extra

Um
O dia em que um erro de programação deu origem a uma lista de dez centímetros de espessura de papel
«Um bom programa tinha 50 ou 60 instruções. O que agora faço ao carregar no enter e ele diz-me o erro, naquela altura estava uma hora à espera do resultado para ir corrigir o cartão, e muitas vezes um erro que era derivado da própria perfuradora. Porque o cartão não tinha avançado para a frente, de vez em quando surgiam-nos problemas desses.
Um dos meus records foi num programa que estava a fazer no 4.º ano. O programa em si fazia cerca de 20 gráficos. Trazia uma listagem já razoavelmente grande e num dos primeiros cartões – íamos entregar já o programa ao professor – o cartão devia começar obrigatoriamente com um C na primeira coluna. A perfuradora imprimiu o C no cartão mas não fez o buraco. O resultado foi alguns dez centímetros de listagem porque eram 400 linhas de programa e por cada um delas ele imprimiu “erro”. Havia uma instrução antes do início do programa seguido da instrução fora do sítio, seguido do ignorar da instrução para os 400 cartões que tinha o programa, seguido do resumo dos erros. Resultou numa listagem de alguns dez centímetros (em espessura) de papel. A gente punha os cartões e os resultados eram impressos. Foi uma enormidade de papel por causa de um buraco no cartão.»
(Mário Ramalho)

Dois
Evolução exponencial da forma de programar – De 2022 aos anos 80 do século passado
«Hoje em dia, qualquer programador consegue fazer uma aplicação como por exemplo o Facebook no seu computador pessoal, para isto abre um programa especial chamado editor de texto, onde escreve o seu código na linguagem que escolher. Escreve com o seu teclado, vê as instruções no ecrã, no final executa o programa e várias coisas podem acontecer.
Se for bom programador, aquilo corre bem à primeira, o que nunca me lembro de ter acontecido, pelo menos na minha vida de aluna e professora. Se for um programador mais ou menos tem alguns pequenos erros, por ter escrito mal as instruções e tem que corrigir. E se for um programador intermédio, as instruções até nem têm erros mas a lógica das instruções está errada. É como se pusesse primeiro o bolo no forno antes de misturar os ovos. Hoje em dia é tudo muito rápido. Faz um erro, corrige. Faz um erro, corrige e consegue numa hora fazer e corrigir dezenas de erros. Hoje em dia a programação é em tempo real.
Se voltarmos ao mundo do IBM 360 [anos 80], que já era um grande avanço, as coisas eram um bocadinho diferentes.
Como é que as pessoas programavam? Tinham uma folha de papel, uma folha quadriculada com 80 colunas e um conjunto de linhas. Em cada linha preenchia num quadradinho um caracter. Um a, um 1, um 2, um espaço quando queria mudar de palavra. Cada linha era uma instrução do programa. O programador entregava aquilo aos técnicos do centro de dados, que pegavam naquele conjunto de instruções usando uma máquina que era a perfuradora de cartões e iam transformar as ordens do programador em ordens que o computador conhecia, depois colocavam aquela pilha de cartões na máquina, a máquina digeria aquilo por intermédio do programador e o resultado saia numa listagem em papel, naquilo que se chamava uma impressora de rolo de papel contínuo, porque eram umas folhas enormes. E o resultado podia ser um de três: o resultado de execução de um programa correto, como por exemplo o desenho de uma figura ou um cálculo qualquer, o resultado de uma execução de um programa incorreto, por exemplo seu eu quisesse desenhar um quadrado, saía-me um retângulo, ou uma listagem de erros enormes que a pessoa se tinha enganado.
Naquele tempo, era uma novidade tão grande que esperar não custava. Era o melhor que se podia ter. Não bate certo com o ritmo da vida moderna que a gente tem hoje.
A tecnologia teve exatamente esse crescimento. No início cresce muito devagarinho e ninguém dá por ela e à medida que começamos a dar por ela, tem um crescimento super rápido. À medida que os semicondutores avançam, são cada vez mais compactos, mais pequenos e no mesmo espaço físico conseguimos meter muito mais coisas. E como se consegue fazê-lo, as máquinas ficam muito mais potentes e muito mais pequeninas. O ser humano é muito criativo, quando lhe dão uma coisa mais potente e mais pequenina, consegue fazer coisas muito mais interessantes e muito mais criativas.»
(Teresa Vazão)

Episódio 45 – Raposa, busca e salvamento

sexta, maio 6th, 2022

O Raposa é um pequeno robot com cerca de 70 cm de comprimento, 50 cm de largura e não mais que 15 cm de altura, espalmado, com umas rodas dentadas a fazer lembrar um tanque de guerra. Mas vem em paz. Foi criado para chegar primeiro aos locais de catástrofe onde é possível salvar vidas. Entra em ação em situações em que é perigoso enviar um meio humano para ver se há vítimas entre escombros. Faz uma pré-visualização e inspeção da situação, identifica e leva uma luz (e uma voz) de esperança às potenciais vítimas enquanto esperam por socorro.
“Quando vamos a um sítio e temos pessoas debaixo dos escombros e podemos salvá-las, não vamos envolver humanos bombeiros para um sítio que está em risco de cair em cima delas”, explica Pedro Lima, professor do Departamento de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores do Técnico e investigador do Instituto de Sistemas e Robótica (ISR). “Se mandarmos um robot, podemos perder o dinheiro que ele custou mas não mais do que isso. E já conseguimos comunicar com a pessoa enquanto fazemos o resto do trabalho”, complementa.
O Raposa (nome que rouba algumas letras ao conceito de robot semi-autónomo para operações de busca e salvamento) torna-se assim numa poderosa extensão capaz de fazer o que os humanos não conseguem. E o que se pede a um robot nesse contexto? Responde António Pato, Coronel de Engenharia na reserva, e segundo-comandante do Regimento de Sapadores de Bombeiros de Lisboa entre 2003 e 2008: “Para um bombeiro, um robot deve ser o mais pequeno possível, deve ter o maior número de capacidades possível, a maior autonomia possível e uma bateria que dure muito tempo. Por outro lado, ter um microfone e um altifalante controlado por um portátil, para vermos uma vítima e falar para ela. Em termos anímicos é uma bomba de motivação para a vítima saber que alguém sabe onde está”.

O Raposa apresentava ainda como algumas das suas grandes qualidades, a capacidade de subir escadas, andar em espaços apertados como os canos de esgotos das cidades e ainda ter autonomia para conseguir continuar a sua atividade desligando-se do cabo de energia. Os investigadores do Técnico / ISR são os responsáveis pela sua programação, enquanto que a mecânica e eletrónica ficaram a cargo da empresa IDMind, uma spin-off do Técnico, representada por Paulo Alvito, seu fundador e engenheiro eletrotécnico licenciado pelo Técnico: “A nossa preocupação foi fazer um robot leve e conseguir encapsular dentro do espaço do robot, que não era assim tanto, toda a eletrónica e as baterias”.
O projeto de colaboração entre o Técnico, o Regimento de Sapadores de Bombeiros de Lisboa e a IDMind surgiu em 2003, após uma carta de António Pato a Pedro Lima. “Ouvi, salvo erro na TSF, o Prof. Pedro Lima a falar sobre robots de futebol (ouvir o episódio 41). Quando cheguei ao regimento redigi-lhe uma cartinha a dizer quem éramos e qual era a ideia de termos um contacto para a área de busca e salvamento”, recorda António Pato. A carta encaixou na perfeição no projeto de investigação Rescue, que o Técnico integrava desde 2000. Do papel ao alumínio nascia o Raposa, que depois de construído passou a ser testado em treinos com Isabel Ribeiro, professora catedrática aposentada do Departamento de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores do Técnico e investiagdora do ISR. O projeto prolongar-se-ia até 2005.

Rodrigo Ventura, professor no Engenharia Eletrotécnica e de Computadores e investigador no ISR, também recorda os tempos da Robocup, que não se centrava apenas na competição de futebol. A liga de busca e salvamento, por exemplo, “apresentava desafios técnicos interessantes de muita complexidade”. O Raposa significa, na sua visão, “um dos primeiros exercícios de construção de robots em cooperação entre a Academia, a sociedade civil e as empresas”.
O robot conheceu, entretanto, uma segunda versão designada NG (New Generation), também desenvolvida em parceria com a IDMind. Já foi vendida a algumas Universidades internacionais e tem sido usada também em contexto de inspeção de locais potencialmente perigosos (como minas). Para o futuro da robótica, ficam os votos de Paulo Alvito: “Que os robots, no futuro, sejam sobretudo isto: uma ferramenta onde haverá uma colaboração homem-máquina. E que este tipo de projetos sirva de inspiração para quem pensa em fazer. É possível”.

História Extra
Dos escombros de Lisboa a uma missão (analógica) a Marte
«Tem havido desenvolvimentos nesta área, sobretudo a nível mecânico. Permite que o robot seja capaz de ir a sítios onde as primeiras versões não eram capazes e alargar o tipo de cenários em que este robot pode operar.
Houve um processo muito grande de maturação. Ao longo dos anos, o Raposa tornou-se extremamente robusto. Continuou a ser usado para demonstrações. É usado com um portátil perfeitamente pré-histórico, que não tem upgrades nem nada, mas que durante muitos anos… liga-se o portátil, liga-se o robot, ele arranca sempre e corre tudo bem. Tornou-se robusto. O segundo (New Generation) continua ainda a ser usado. Tenho estado mais interessado no desafio da robótica espacial, dos robots no ambiente do Espaço, e houve um cruzamento… esse trabalho do robot de salvamento cruzou-se com a parte do Espaço. Foi o trabalho desenvolvido inicialmente no contexto do Raposa que depois levámos para uma Missão analógica a Marte que realizámos em outubro de 2021, em Israel. Na base acabámos por não usar o Raposa, usámos um outro robot também com interesse de poder colaborar com outras equipas em que desenvolvemos uma consola de teleoperação, com dispositivos desenvolvidos por nós, que foi inicialmente desenvolvidos para o Raposa, e que depois foram usados na missão analógica. Há aqui um cruzamento suave de trabalho.
Os ambientes têm semelhança, não só por serem ambientes em que a locomoção é desafiante como também no Espaço isso ainda é mais exacerbado com o facto de não podermos estar a ver diretamente o robot. E o facto do Espaço introduzir a componente da latência, do tempo que demoram as imagens a cá chegar e como conseguimos teleoperar esse robot perante esse atraso. Temos que garantir a segurança do robot. Sabemos que se o mandarmos parar agora, ele só parará daqui a um ou dois segundos.» (Rodrigo Ventura)

Episódio 44 – As serigrafias do Centenário do Técnico

sexta, abril 29th, 2022

Tudo começou com uma espécie de residência artística que a pintora Ana Vidigal fez no campus da Alameda do Técnico, em 2010. Missão: sentir a instituição e produzir uma obra artística que assinalasse o centenário da Escola. “Ela esteve aqui no Técnico uns meses largos, fotografou praticamente tudo, sentiu o Técnico e transcreveu-o para duas serigrafias e uma exposição feita no Pavilhão Central”, explica Palmira Silva, docente no Departamento de Engenharia Química do Instituto Superior Técnico que foi também responsável pela programação das comemorações do Centenário do Técnico, em 2011. “O que ela fez foi duas colagens que de certa forma traduzem a amálgama que é o Técnico, que é uma cidade dentro da cidade, e tem uma diversidade enorme de pessoas, línguas e nacionalidades”, complementa.
Falamos de dóis painéis de grandes dimensões, duas serigrafias atualmente colocadas à entrada do Pavilhão Central, uma na loja e outra na receção. São feitos praticamente só com colagens, com realce para as cores vermelha e azul, respetivamente, através de recortes de esquadrias de bandas desenhadas dos anos 30. “Tive em atenção, nas serigrafias, os 100 anos do Técnico e as datas”, complementa Ana Vidigal. Um conjunto de réplicas assinadas e numeradas encontra-se também à venda na Loja do Técnico.

Para além da diversidade, as serigrafias parecem ser um reflexo de “uma das coisas que mais impressionou a artista no Técnico”: os tampos de madeira das mesas dos Grandes Auditórios do Técnico completamente gravados com desenhos e frases. A tese é de Palmira Silva que justifica o paralelismo: “uma das serigrafias mais parece um dos tampos mais artísticos que ela encontrou”.
As obras surgiram no contexto da celebração dos 100 anos do Técnico, servindo também o propósito da remodelação do átrio do Pavilhão Central. “Quando começámos a olhar para o espaço, senti que faltava qualquer coisa. E como na altura já estávamos a trabalhar nos documentos de Bensaude [fundador e primeiro diretor do Técnico – ver episódio 40] que era um homem da Renascença, achámos que numa Escola de Engenharia faltava uma obra de arte logo ali na entrada”, explica Palmira Silva.
A ideia inicial passava por uma exposição de pintura. “Propus outra solução, que foi bem acolhida”, recorda Ana Vidigal. A solução encontrada passou pelas duas serigrafias “produzidas a um custo irrisório com a contrapartida de poder fazer o que quisesse depois na exposição que ia fazer no átrio do Técnico”. Assim foi. E nasceria também a exposição “Casa dos Segredos”, materializada num autêntico labirinto construído com os cacifos dos estudantes do Técnico. “Nas deambulações pelo Técnico descobri que havia umas caves cheias de cacifos. Pus um papel nos cacifos a perguntar quem queria entrar numa peça de arte contemporânea e quiseram todos”, recorda. Os estudantes passaram a usar os cacifos nessa zona, circulando muito mais por essa divisão do edifício. “Havia histórias de pessoas dentro daqueles cacifos”, defende a artista, que ocupou também um deles com as suas agendas pessoais desde 1989.

A par das obras de arte e da instalação artística, recuperava-se também o mobiliário que está agora na receção, um original desenhado por Pardal Monteiro [arquiteto autor do projeto do campus – ver episódio 19]. “A nossa ideia era mostrar o que era o Técnico: a modernidade na continuidade”, recorda Palmira Silva. Valeu a pena? Ana Vidigal diz que sim. “Gostei imenso. Deixaram-me fazer tudo o que eu queria. Achei até que ia encontrar mais resistência”.

Episódio 43 – Os desenhos Didáticos de José Pedro Martins Barata

sexta, abril 22nd, 2022

José Pedro Martins Barata chegou ao Técnico nos anos 90 para integrar o projeto de construção do antigo curso de Engenharia do Território. Para além da sua experiência, trouxe para a Escola um conjunto de desenhos didáticos que animaram as aulas e os dias no Departamento de Engenharia Civil, Arquitetura e Georrecursos (DECivil). “Trazia os desenhos já feitos com grande expetativa, era algo que ia sendo construído connosco quando ele trazia o primeiro esboço”, recorda Teresa Heitor, professora de Arquitetura do Técnico. “Gerava sempre umas sessões muito animadas de descoberta e de permanente construção. Era trazer o espírito de tertúlia para esses tempos do Técnico que tinham pouco”, complementa.
Onze desses desenhos originais encontram-se espalhados por duas salas de reuniões situadas no 2.º andar do DECivil. Foram feitos no início do curso de introdução à Engenharia do Território e posteriormente utilizados nas aulas de arquitetura e engenharia civil. Quando não havia essas “pranchas”, os desenhos surgiam naturalmente a giz no quadro da sala de aula. “O gosto e o gozo com que ele fazia aquilo… de uma história vinha outra, e sempre sobre a cidade de Lisboa”, recorda Teresa Heitor.
A partir desses desenhos originais surgiu, em 2019, uma publicação muito especial limitada a 350 exemplares e editada pela IST Press, a editora do Técnico, que incluiu a reprodução fac-similada de 25 desenhos, no formato A3, acondicionados numa pasta. “Optou-se por este livro-objeto, que pode ser usado com a finalidade inicial: desenhos que os docentes possam mostrar nas aulas”, explica Margarida Coimbra, responsável de comunicação da IST Press. “A nós interessou-nos a parte da qualidade artística (o traço, a cor) mas também a dimensão didática e o humor do autor”, explica. “Ele é um virtuoso do desenho. É muito interessante a forma como decide comunicar aos seus alunos coisas tão complexas de uma forma lúdica”, complementa António Faria, artista plástico e designer gráfico da IST Press.

Ao longo dos 25 desenhos, José Pedro Martins Barata explora o contexto histórico – do século XVII até aos anos 70 do século XX – analisando também sistemas de construção, cortes de edifícios e suas técnicas, os traçados ao longo da história, enquadrando também cada época com dados culturais e artísticos. O próprio autor, antigo professor do Técnico, hoje com 92 anos de idade, explica porquê: “Quis mostrar as três culturas. Temos que perceber o que é o complexo cultural de cada época. Na base estão três conceções de cultura que geralmente aparecem truncadas”. Fala-nos da cultura do saber (ciência), da cultura do sentir (as artes) e da cultura do fazer (a técnica). “Uma cultura completa do homem contemporâneo tem que ter pelo menos estas três componentes”, defende. Para Nuno Matos Silva, também antigo professor de Arquitetura do Técnico, é um exemplo de exploração da “fusão da arte com a técnica”. “É o símbolo da existência da Arquitetura aqui no Técnico, perceber que há um terreno onde se conjugam as duas componentes com igual projeção”, defende.
José Pedro Martins Barata chegou ao Técnico no início dos anos 90 a convite de António Lamas, professor catedrático jubilado do Instituto Superior Técnico. O que se esperava que fosse uma colaboração pontual prolongou-se por cerca de uma década em que traz para o Técnico “uma enorme criatividade, um gosto sobretudo por ensinar o desenho” (palavras de Teresa Heitor). É neto do aguarelista Roque Gameiro (1864-1935) e filho do artista Jaime Martins Barata (1899-1970). Licenciou-se em Arquitetura, mas também o seu percurso é multifacetado, com incursões pela ilustração, o urbanismo e o design.

No Técnico deixou, para além dos desenhos didáticos, os testemunhos da sua criatividade, expressa por exemplo na criação de uma espécie de clube secreto, certamente inspirado no filme “O Clube dos Poetas Mortos”. Começou secreto entre elementos do curso de Engenharia do Território e acabou por atrair pessoas de outras faculdades e professores de fora do Técnico. José Pedro Martins Barata recorda a regra única: “Ninguém era obrigado a fazer coisa nenhuma, só fazia o que lhe apetecesse. Depois das aulas encontravamo-nos com um ar um pouco clandestino e cada um fazia o que queria: ler, desenhar, etc. Arranjámos um espaço num Pavilhão com a seguinte obrigação: fica tudo limpinho e arrumado”.

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Episódio 42 – Os Modelos de Gesso

sexta, abril 15th, 2022

São doze modelos de gesso, usados sobretudo para fins pedagógicos nas áreas da arquitetura e da construção. Contar a sua história passa por três datas – 1892, 1901 e 1905 – e por uma pergunta: serão estas peças únicas no mundo? “Não consegui encontrar iguais em lado nenhum. Tanto quanto sei, da minha investigação, não existem mais exemplares destes”, descreve Paulo Mota, restaurador do Museu de Engenharia Civil, responsável pela recuperação destes modelos mas também pela investigação do seu enquadramento histórico. “Não há nenhum bom restaurador que seja só um restaurador”, explica.
Estes moldes, atualmente no Museu de Engenharia Civil do Instituto Superior Técnico, no campus da Alameda, tiveram uma enorme importância no ensino da construção civil, que passava por uma forte componente de desenho. Foi crucial tanto para arquitetos como para engenheiros, “quando a pedra ainda era um material de solidez de resolução de túneis, de resolução de monumentos”, defende Nuno Matos Silva, arquiteto que também foi professor de desenho no curso de Arquitetura no Técnico até 2021. Representam “a ciência do desenho do corte da pedra, que para ser sólida, para dar construções sólidas, deveria ser cortada de uma maneira geometricamente científica”, explica. “Era o ponto mais alto do estudo da geometria para os arquitetos”, complementa.

Os centenários modelos de gesso atravessaram décadas de ensino e terão, muito provavelmente, passado pelas mãos de Porfírio Pardal Monteiro (1897 -1957) [ver episódio 19] e Álvaro Machado (1874 – 1944), dois dos notáveis professores de arquitetura no início do século XX. “O desenho era uma preocupação do Bensaude [fundador e primeiro diretor do Técnico] para todas as áreas da Engenharia”, explica Pedro Matos Silva.
Foi possível chegar à origem dos modelos através dos seus selos de baixo relevo que têm inscrito a seguinte informação: “Frères des Ècoles Chrétiennes, Rue Oudinot – Paris”. Tratava-se de uma instituição de origem cristã que retirava crianças da rua e dava-lhes formação, que mais tarde acabavam por fabricar e comercializar estes modelos de gesso para serem vendidos a outras instituições (escolares). “Possivelmente foi assim que vieram para cá”, aponta Paulo Mota. A instituição acabou por ser considerada uma seita e ilegalizada em 1904, na sequência da separação entre a Igreja e o Estado imposto pelo governo francês da altura. “Como os monges foram perseguidos, possivelmente não ficaram nem com os moldes nem com as peças”, descreve.

Os modelos de gesso do Técnico foram encontrados com o desgaste natural de mais de 100 anos de existência. “Não foi um restauro complicado. Limitei-me a refazer algumas partes que estavam partidas, fixar e pintar”, descreve Paulo Mota. Na verdade, o trabalho foi muito além disso porque descobrir a história dos objetos “é importante e ajuda a melhorar o trabalho de restauro”. “Faço sempre investigação em todas as peças, quando é possível”, aponta. Neste caso, e através da sua pesquisa encontrou também os manuais do início do século passado que ajudam a contextualizar a origem destes modelos. Resultado do trabalho para Nuno Matos Silva: “Não há dúvida que os modelos são vistosos e ainda para mais com o trabalho do Paulo fazem aqui uma excelente presença”.

História Extra
Modelos de gesso ou armas de arremesso no pós-25 de abril?

A história é contada por António Lamas, Professor catedrático jubilado do Departamento de Engenharia Civil do Instituto Superior Técnico:
«Eu estava cá fechado no Técnico, no Pavilhão Central, num fim-de-semana, e houve uma tentativa de assalto. Havia dois movimentos de alunos, um de muito extrema esquerda e outro associado ao Partido Comunista. Os que estavam dentro do Pavilhão Central barricaram-se dentro do Técnico, porque tinham estado em reunião. Fecharam as portas e os outros tentaram entrar. Os que estavam no Salão Nobre bombardearam os que estavam no pátio ali em frente ao Pavilhão Central, indo buscar tudo o que encontraram: bancos, cadeiras, estiradores e os modelos de gesso… A certa altura, eu e o chefe das Oficinas de Civil, que também ficava ali no Pavilhão Central (éramos os únicos no Pavilhão) vimos o que estava a acontecer e tentámos suster aquele bombardeamento de modelos de arquitetura sobre os assaltantes. E conseguimos salvar alguns. O que temos aqui são os restos dessa batalha campal no Pavilhão Central».
Paulo Mota, responsável pelo restauro dos modelos, não conhecia a história. Isto é tudo o que consegue dizer sobre o assunto: «Nestes modelos não consigo corroborar essa ideia. Mas a coleção não está completa. Há modelos que faltam, digamos que podem ter sido outros modelos que estão em falta que podem ter sido usados para esse efeito. Mas estes não me parece, porque os blocos não estavam partidos, nunca tiveram aspetos de terem caído ao chão nem terem sido arremessados de alguma maneira.»

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