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Episódio 61 – Hounsfield, a máquina de ensaios

sexta, setembro 23rd, 2022

Estamos no Técnico, nos anos 70, onde dificilmente se encontra algum estudante do recém-criado curso de Engenharia Metalúrgica que não tenha usado a Hounsfield, uma máquina de ensaios que testava de forma rigorosa a resistência dos materiais para usar, por exemplo, na área da construção. O primeiro contacto com a tecnologia acontece na cadeira de Metalurgia Física 2, uma das cadeiras base do curso criado nessa década, na sequência do aumento do interesse nacional em desenvolver a siderurgia e em explorar a produção de energia nuclear. “Aquilo que se dava basicamente era o comportamento mecânico do material e era aí que entrava o Hounsfield. As propriedades mecânicas são das propriedades mais importantes dos materiais”, recorda Maria Emília Rosa, professora associada no Departamento de Engenharia Mecânica do Técnico e antiga aluna desse curso.
Quem também foi aluno do curso, que, entretanto, se viria a converter em Engenharia Metalúrgica e de Materiais e, mais recentemente, em Engenharia de Materiais, foi Luís Guerra Rosa, professor no Departamento de Engenharia Mecânica do Técnico. Define-a como “uma máquina de bancada para realizar ensaios mecânicos” e descreve o seu funcionamento de forma muito simples: “Para a maioria das pessoas o ensaio mais vulgar é o ensaio de tração, um provete que é tracionado, para se conhecerem as propriedades do material de que é feito”. Embora tenha ganho grande evidência no Técnico no contexto da metalurgia e da Engenharia de Materiais, esta máquina de ensaios mecânicos é “universal”: “Pode-se usar provetes dos mais variados materiais: plásticos, compósitos, cerâmicos…”.

A máquina adotou o último nome do seu inventor, Leslie Hounsfield, e começou a ser produzida nos anos 50 do séc. XX. Hoje em dia já foi substituída por versões modernas e digitais, mas naquela altura tinha as suas particularidades, como nos conta Maria Emília Rosa: “Eu trabalhei com ela com a manivela. A máquina tinha dois travessões: um fixo e outro que era móvel, que se movia num parafuso sem fim e que nós movíamos à manivela. Tentávamos mover com uma velocidade mais ou menos constante ao rodar a manivela. Era uma das recomendações que nos faziam”.

A Hounsfield chegou ao Técnico por empréstimo dos professores do então Laboratório de Física e Engenharia Nuclear – LFEN (hoje C2TN – Centro de Ciências e Tecnologias Nucleares, uma estrutura que integra o Técnico), empenhados na aproximação entre o ensino e a indústria. “Como fazíamos alguns trabalhos práticos, como alunos, em Sacavém, deixaram-nos trazer a máquina para o Técnico”, recorda Luís Guerra Rosa. Foi uma espécie de empréstimo a fundo perdido, que o tempo haveria de regularizar através da integração do C2TN na estrutura do Técnico,em 2012. Passado à parte, hoje não há dúvidas que pertence ao Técnico e que gera entusiasmo também pelo seu carácter raro. “A máquina é fabulosa. E eu não conheço mais nenhuma em Portugal”, sintetiza.

 

História Extra:
Como se media a força aplicada nos tempos da manivela?
«Havia um reservatório de mercúrio e uma escala, que estava no lado direito da máquina, e à medida que íamos aplicando a força o mercúrio subia no tubo. Íamos com uma lupa íamos ver a altura do menisco do mercúrio no tubo. Ajustávamos com a lupa uma régua e picávamos o papel. Quando acabávamos o ensaio tínhamos o registo picado da força que tínhamos aplicado em cada instante em função do deslocamento. Saía o gráfico feito da força. O teste terminava quando o provete partia.»
(Maria Emília Rosa)

Episódio 60 – Cristais das ânforas de vidro

sexta, setembro 16th, 2022

É uma coleção rara em Portugal e inclui 24 cristais em ânforas de vidro, datados da década de 40, e envoltos em muito mistério. Falamos de monocristais de compostos inorgânicos, designados por alumens, integrados numa coleção de alguns dos metais mais importantes da química. Têm um tamanho acima da média e estão protegidos por uma ampola lacrada, que ajuda a amortecer o choque e foi fundamental para a preservação dos cristais ao longo do tempo. “Estão dentro destas ânforas de vidro muito antigas. Não sabemos qual a composição química de alguns deles”, revela Clementina Teixeira, professora aposentada do Instituto Superior Técnico. Foram, provavelmente, adquiridos entre os anos 40 e 60 e feitos em “laboratório, num cristalizador rotativo”. Integram, atualmente, um módulo expositivo de duas mesas com vitrine e inclui outra coleção de objetos relacionados com cristais inorgânicos.
Quem passar pelos corredores e entrada da Torre Sul, no campus da Alameda do Técnico, é confrontado com uma espécie de coleção museológica do Departamento de Engenharia Química. É um conjunto de objetos históricos resgatados em 2017 de armários do antigo Pavilhão de Química, com o objetivo de os recuperar, identificar e expor em local mais apropriado. Entre eles, esta rara coleção de cristais em ânforas de vidro. “Vão ter um lugar de destaque na nossa coleção de química que foi recentemente inaugurada. Os armários foram restaurados, as peças estudadas e expostas de uma maneira mais apelativa”, descreve Dulce Simão, docente do Departamento de Engenharia Química do Técnico. “Quando começámos a abrir armários e a ver possíveis peças museológicas achámos que, ainda sem saber como, podiam contar muitas histórias. Algumas tinham sido inventariadas nos anos 90, mas muitas delas ainda não foram estudadas. Estas ânforas despertaram a curiosidade. Falta-nos resolver o mistério da origem dos cristais para poder contar esta história. Estamos a tentar”, acrescenta.

É, portanto, significativo o que não se sabe sobre os cristais. A sua idade não é totalmente clara e muito menos a forma como vieram parar ao Técnico. “O que eu deduzo pela prevalência de metais, era que era dado numa cadeira de Química Inorgânica”, arrisca Clementina Teixeira. “Quando vim aqui para o Técnico nunca tinha visto um cristal de alumen. Só mais tarde quando comecei a me interessar pelos cristais é que comecei a aprender toda essa química dos anos 30 e 40”, recorda.
Se a coleção é rara em Portugal, o mesmo não se pode dizer em termos internacionais. Numa rápida pesquisa pela internet, são inúmeros os colecionadores de “cristais desse tamanho” que seguem as passadas de Alan Holden, o “grande promotor de cristais para o povo”, nas palavras de Clementina Teixeira.

Fazer cristais por um fio (a técnica popularizada por um livro de 1960 de Holden) tornou-se um processo incrivelmente especializado e moroso, que pode demorar semanas. E para manter o cristal límpido é necessário controlar muito o processo. “Já ninguém se dá ao trabalho de fazer cristais desta dimensão”, diz Clementina Teixeira. “Atualmente a química tem muitos desafios pela frente, na parte da microbiologia, das alterações climáticas, na reciclagem de materiais… Talvez não tenha lugar para eles neste momento”, complementa. Mas a importância dos cristais cresceu em áreas como a física e a geologia, por exemplo. “São produzidos em grande escala a nível industrial até por físicos da matéria condensada, da física do estado sólido e por pessoas de [Engenharia de] Materiais. Temos vários campos de interesse”, defende. Desde os cristais de grandes dimensões com aplicação na física e optoelectrónica aos novos ramos da engenharia de cristais, muitas são as aplicações futuras para os cristais. E para os que apenas se fascinam com os objetos, podem sempre espreitá-los na futura coleção museológica do Departamento de Engenharia Química, a ser afinada na Torre Sul.

Episódio 59 – A locomotiva de Civil

sexta, setembro 9th, 2022

É um modelo reduzido de uma locomotiva de um comboio a vapor, com mais de dois metros de comprimento e quase um metro de altura, datado de 1906. Nasceu do sonho e do engenho de Manuel Gualdino da Silva (1865-1914), um operário do Barreiro com grande atração pela mecânica que, com a ajuda de dois colegas, meteu mãos à obra e concluiu o modelo em menos de um ano. Inspirando-se num exemplar que viu numa revista, conseguiu com meios limitados fazer um trabalho semelhante ao que em Inglaterra se fazia de forma industrial. Do sonho nasce movimento: o comboio, composto por locomotiva e seis vagonetas com capacidade para 24 passageiros, tornar-se-ia uma grande atração das Festas da Padroeira do Barreiro, em agosto de 1906.
O modelo de locomotiva feito em aço, bronze e latão – inspirado numa máquina do tipo “Atlantic” da companhia inglesa “Great Northean”, incluída na revista britânica “Railway Engineer”, de julho de 1905 – teve ainda, pelo menos, outra aparição pública em 1944, numa festa de beneficência dos Bombeiros de Paço de Arcos, em Oeiras. É o último registo que há antes da chegada ao Técnico, em 1956, no âmbito da comemoração do primeiro centenário dos caminhos de ferro portugueses. “Houve uma grande exposição de modelos ferroviários aqui no Técnico, no Pavilhão Central, e essa locomotiva vem para cá e aqui fica”, explica Nelson Oliveira, antigo estudante do Técnico, engenheiro civil especializado em engenharia ferroviária e coordenador do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários. “A primeira vez que a vi foi aqui no Técnico, no meu primeiro ano, muito surpreendido ao ver um modelo, numa escala bastante grande, de uma locomotiva a vapor”. A locomotiva, na altura a sofrer com a passagem do tempo (e com a chaminé cheia de areia e usada para apagar beatas de cigarros), terá sido posteriormente restaurada e incluída na coleção do Museu de Civil, inaugurado em 1993.

Para José Pinheiro, sócio fundador do Clube de Entusiastas do Caminho de Ferro, faz sentido que a peça esteja no Técnico. “É daqui que saem os grandes engenheiros que dão acesso aos caminhos de ferro”, defende. “Fiz o máximo de pesquisas e cheguei a uma conclusão: que esta locomotiva se está cá é porque é da casa”, complementa. O Clube que integra já organizou cerca de 140 exposições sobre caminhos de ferro, todas a custo zero, e reúne apaixonados pelos comboios a vapor, mas também da chamada engenharia em miniatura, a técnica de reprodução de mecanismos a escala reduzida utilizada também para a construção desta locomotiva.
“Acontece na época do vapor. Leva-nos ao mundo da experimentação, a testar conceitos de engenharia. Na hidráulica ainda se recorre muito aos modelos à escala, e na Engenharia de estruturas: o nosso decano Edgar Cardoso valorizava muito o estudo dos modelos estruturais (ouvir Episódio 35 – A Maquete da Ponte da Arrábida)”, explica Nelson Oliveira. As miniaturas inseriam-se numa lógica de formação dos mecânicos e das pessoas que iriam lidar com esta tecnologia, mas também para efeitos de lazer e divertimento. “Existem outras locomotivas à escala, capazes de funcionar pelos próprios meios. Mas não são assim tantos. Este modelo (a locomotiva de civil) é também uma representação da atração que o caminho de ferro exerce sobre as pessoas”, aponta. Exemplo disso é o entusiasmo do clube integrado por, aqui resumido nas palavras de José Pinheiro: “A época do vapor tem um encanto: o cheiro do carvão e a fuligem que sai e que suja o nosso vestuário…”.

Episódio 58 – Gasparzinho

sexta, setembro 2nd, 2022

Um robot acorda todos os dias às 10h30, em Lisboa, na ala pediátrica do Instituto Português de Oncologia (IPO), e deambula de forma autónoma pelos corredores do edifício. Os sensores laser ajudam-no a evitar obstáculos e está programado para dar os bons dias a quem passar, assobiar, conversar e até mesmo jogar. Estamos em 2014, período em que o Gasparzinho, um robot com competências sociais, faz companhia a crianças que passam pela instituição, tentando contribuir para o seu bem-estar tornando-as mais ativas. O robot manteve-se pelo IPO até 2019.
“Tudo o que sejam projetos que integrem uma melhoria de quotidiano e integrem alegria e uma dose de loucura são aceites e recebidos de bom grado”, descreve Filomena Pereira, responsável pelo serviço de pediatria do IPO de Lisboa. A “loucura” passava pela criação de um robot que fosse capaz de acompanhar uma criança a um ritmo acelerado, para que pudessem correr atrás dele. “Era um desafio muito grande. Não havia nada no mercado que fizesse isso”, recorda João Sequeira, professor no Departamento de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores do Instituto Superior Técnico. Por aconselhamento dos médicos da instituição, o Gasparzinho não se move tão depressa como inicialmente projetado, atingindo ainda assim uns bons 50/70 cm por segundo. “Os médicos referiram que se um robot deste tipo puder levar ao aumento da atividade física dos miúdos, isso só por si já é positivo”, recorda João Sequeira. E assim foi desenhado o Gasparzinho, pensado para promover a interação. “As crianças geralmente têm dificuldades com alguns tipos de tratamentos. A utilização de robots para de alguma forma acalmar, distrair as crianças, pode ser muito positivo”, complementa. “Entrámos numa espiral de ideias de projetos que podiam ser feitos aqui. Foram feitos imensos projetos de jogos, interação, muita coisa. A presença do “bicho”, como eu lhe chamava, modificou aqui muito o quotidiano, introduziu uma novidade”, recorda Filomena Pereira. Das ideias surgiu então o projeto de construir um robot para “ser um amigo, gerar conversas, gerar piadas, ser um animador, como mais um interveniente ativo e positivo do espaço”, como descreve Paulo Alvito, sócio fundador da empresa IdMind, que ficou responsável pela sua execução.

Pelos corredores do IPO, o Gasparzinho foi acumulando interações e histórias inspiradoras: “Todas as histórias a que fui assistindo enquanto o robot esteve ativo de interação com as crianças ainda hoje me motivam imenso para continuar a trabalhar nesta área”, diz João Sequeira. Recorda uma criança que chegou ao IPO numa cadeira de rodas empurrada pela mãe. Passados 30 minutos já estava fora da cadeira, agarrada ao robot. Outras que corriam atrás do robot, que fugia deles (por estar programado para evitar obstáculos). E outra de uma criança que estava em fase terminal da sua doença, e que já conhecia o Gasparzinho, cuja mãe foi pedir para levarem o robot ao seu quarto. “Coloca-nos a pensar como temos que encarar toda a programação do desenvolvimento de dispositivos deste tipo para reagir de forma adequada a estas situações. Tem que haver um cuidado extremo em conhecer as pessoas, conhecer o lado humano”, aprofunda João Sequeira.
O Gasparzinho, nome escolhido pelas crianças, nasceu também dessa procura para “colocar robots a fazer qualquer coisa que fosse útil para a sociedade”. A ideia transformou-se em projeto científico – com o nome de Monarch – alicerçado num consórcio de investigação internacional. “O desafio era de tal forma ambicioso que as pessoas perceberam que havia muito espaço para colocarem as suas próprias áreas de investigação específicas e com potencial para seguir novos caminhos, que é o que qualquer investigador deseja”, descreve João Sequeira, que também coordenou esse projeto de investigação. O projeto exigia competências diversas como tecnologias de visão, aspetos de interação pessoa-robot e tomadas de decisão.

O projeto teve um impacto significativo na forma de fazer robots hoje em dia. “Por exemplo, a nível dos materiais, do aspeto exterior do robot e o seu impacto na pessoa: o volume e o aspeto que um determinado robot deve ter para que possa ser melhor aceite, o tipo de sons que deve produzir…”. Do Gasparzinho, derivaram, por exemplo, robots como o “Viva”, que se encontra no Pavilhão do Conhecimento, em Lisboa, e um outro que estará em breve na área de exposições do Museu Mineiro do Lousal (ouvir Episódio 37 – Os Modelos de Minas de Freiberg). Depois deste projeto, surgiram também robots com classificação médica, como a foca robótica, de origem japonesa. Quanto ao Gasparzinho, a sua missão no IPO de Lisboa ficou ainda algo incompleta, como defende Filomena Pereira. “Tenho saudades do projeto, sobretudo do que não foi feito. O potencial era muito grande. Gostaria que fosse reanimado esse projeto com esse “bicho”, porque de facto era um bicho simpático, ficava bem aqui nos nossos corredores”.


Histórias Extra:

Um: Como se transforma uma ideia num robot?
«Na altura fizemos um inquérito a cerca de 100 crianças. E deram-nos ideias curiosas: que tinha que ter um tablet no peito, que podia fazer os trabalhos de casa. Foram respostas muito curiosas que de alguma forma serviram de inspiração para o designer que fez os esboços do robot», conta João Sequeira. Chegava então a “encomenda” às mãos de Paulo Alvito da IdMind:
«(O robot foi feito) com base na velocidade que se pretendia para o robot e do tipo de movimento. Pretendia-se um robot ágil – introduzimos um tipo de locomoção omnidirecional, significa que se pode movimentar em qualquer direção. O primeiro passo que demos foi criar uma base com os motores, as rodas e as baterias. Era só a base ainda sem corpo superior, para termos um ponto de partida. Chegou-se a um look com uma forma que eu diria que não é humana, que se identificaria mais com um cartoon, um desenho animado.
Com um aspeto amigável. A altura também apropriada ao utilizador. Não criar falsas expetativas em relação ao que os robots conseguiam fazer naquele espaço.» (Paulo Alvito)

Dois: O Robot com insónias ou crises de sonambolismo
«Depois do projeto (Monarch) acabar, em 2016, continuei a ir ao IPO e a desenvolver a um ritmo muito mais lento o software do Gasparzinho. E a partir de certa altura comecei a verificar um padrão que me resultou estranho e para o qual não tinha explicação. De vez em quando chegava ao IPO e o Gasparzinho estava desligado. Primeira reação: o pessoal chateou-se com o Gasparzinho, foi ao botão da energia elétrica e desligou…
Repeti experiências durante meses… Limitei-me a observar o que tinha acontecido, durante meses. A partir de certa altura as observações começaram a ser muito substanciais e decidi colocar no sotware do Gasparzinho um pedaço de código que me registe segundo a segundo o que está a acontecer. Durante um ou dois meses e comecei a analisar os registos e acabei por descobrir que o Gasparzinho, por volta das 20h, regressava ao seu ponto de repouso (estava programado para fazê-lo às 19h e qualquer coisa). A partir das 8 horas saía fora da zona e ia dar uma voltinha e a suas voltas duravam até à 1h da manhã, a fazer barulho.
Este padrão manteve-se durante meses, muitos meses, sem que as pessoas do IPO dissessem absolutamente nada. Admito que a certa altura houvesse um certo desconforto com o Gasparzinho. Não o desligavam, deixavam a bateria acabar…
Há um conjunto de pessoas que tem a capacidade de influenciar a forma como o robot se comporta. É um erro de programação, de código, não havia qualquer intenção que tivesse aquele tipo de comportamento.
Aconteceu um bocadinho antes da pandemia começar…
Começamos a perceber que no IPO havia muita gente que tendia a humanizar o robot, que é uma coisa que para quem está nesta área é delicioso.
Lembro-me de receber uma chamada num domingo à noite: «venha cá, venha cá que o robot está muito quente, como se estivesse com febre. » (João Sequeira)

Episódio 57 – ELONICA, prótese visual

sexta, julho 29th, 2022

Chama-se ELONICA, uma variação da palavra Eletrónica, e chama atenção pela cabeça motorizada de um manequim com uns óculos de natação e uma cartola negra. Mas é só a parte mais visível de uma estrutura, criada em 2007, que integra cinco motores elétricos, baterias de lítio, um painel solar que captura a luz produzida por um sol artificial e um monitor de vídeo que apresenta quatro imagens que correspondem a 4 fases diferentes de processamento de imagem de uma retina artificial.
A ELONICA é um demonstrador interativo de uma prótese visual, que reúne conhecimentos interdisciplinares da área da engenharia eletrónica. “Temos a recuperação de energia, a partir de um painel solar, temos carregamento de baterias que estão na cabeça, temos o controlo da cabeça que tem quatro ou cinco motores”, exemplifica Moisés Piedade, antigo professor do Instituto Superior Técnico, no Departamento de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores (DEEC) e fundador e diretor honorário do Museu Faraday. Foi sua a iniciativa de criar este projeto pedagógico para atrair jovens estudantes para a Engenharia. “A ideia era dar-lhe um aspeto mais geral, um aspeto humano. A ELONICA era uma moça cega de nascença que tinha vindo para Engenharia Eletrotécnica com a esperança de poder resolver este problema de uma falha do corpo humano. Criei a personagem”, explica.A “personagem”, hoje em transição para o Museu Faraday, surgiu como consequência de um projeto de investigação europeu – o CORTIVIS – que envolveu investigadores do Técnico / INESC ID. “Era um projeto de visão artificial com implante direto de elétrodos no córtex visual e, portanto, tínhamos que transformar as imagens captadas por uma câmara em impulsos semelhantes aos que a retina humana gera, que eram transmitidos por uns cabos elétricos para micro elétricos que eram implementados no córtex visual”, resume Moisés Piedade. Os óculos de natação servem, por isso, para esconder e suportar a câmara de vídeo. E através dela tornava-se possível ver como a retina humana gera sinais, projetados num monitor. Mas “isso não estava no projeto [científico], foi acrescentado”, alerta Leonel Sousa, professor no DEEC do Técnico e investigador que participou no projeto. E resume assim o funcionamento da ELONICA: “Uns óculos com uma camara que adquiria a imagem. Um sistema embebido, que era um sistema computacional, calculava o modelo de retina e criava os sinais elétricos que iriam depois estimular o córtex visual. Tínhamos depois o modelo inverso, que pegava nestes sinais e dispunha num display, exatamente aquilo que pensávamos que iria ser a visão funcional de uma pessoa que usasse aquele sistema. O que via era basicamente sombras, objetos mas relativamente difusos”.

O projeto de investigação CORTIVIS, que decorreu entre 2001 e 2004, nunca teve como meta a criação de imagens nítidas a partir do sistema implementado. Mas tinha um objetivo muito ambicioso: restabelecer alguma visão em cegos profundos (não apenas ao nível da retina, mas também de visão periférica – o nervo ótico e o córtex visual). Reuniu várias equipas multidisciplinares, das áreas da bioengenharia, eletrotécnica, medicina, entre outras. “Nós tínhamos alguma experiência nos modelos computacionais e na arquitetura de computadores”, explica Leonel Sousa. O projeto do Técnico pretendia fazer aquisição de imagem e o seu processamento. “O que pretendíamos é que toda a informação e a energia que fazia funcionar o dispositivo que estava implantado no cérebro não tivesse ligações físicas ao exterior. A informação era enviada em radiofrequência, a própria energia era induzida do exterior para o interior e tudo funcionava sem relações externas. Relativamente aos anos 90 era um avanço considerável”, acrescenta.
Quem avançou também para colaborar com o projeto foi Pedro Tomás, atualmente professor associado do DEEC, mas em 2002 aluno de Licenciatura que precisava escolher uma tese. “Olhei para o tema e pensei: não percebo nada disto, deve ser giro”, graceja. E a partir daí deu o seu contributo “a validar os requisitos de hardware para implementação do módulo de retina artificial, que fosse capaz de reproduzir os seus mecanismos de processamento visual”.
E em que ponto está o projeto hoje? “A perspetiva é que, do ponto de vista da Engenharia, é possível um dia virmos a restaurar a visão de pessoas. Do ponto de vista da medicina falta-nos um elemento fundamental: ainda não percebemos muito bem tudo aquilo que necessitamos para expandir o nosso corpo humano e fazer uma interação mais direta com dispositivos exteriores”, responde Pedro Tomás. “Não se conseguia e ainda hoje não se consegue avançar muito mais sem experiências práticas em humanos [muito difíceis de operacionalizar]. Falta-nos na cadeia o elemento humano, para que os modelos (matemáticos) possam avançar verdadeiramente”, complementa Leonel Sousa.

Episódio 56 – O crânio de crocodilo

sexta, julho 22nd, 2022

Os crocodilos são a espécie de todo o reino animal que conseguem fechar a boca com mais força. E há registos de que muitos crocodilos tenham cravado os dentes no território que hoje é Portugal (Alcobaça e Lourinhã), no período Jurássico Superior (há mais de 145 milhões de anos), um indício de que Portugal também já foi um território tropical. São dois factos aleatórios, apenas ligados pelas histórias despertadas pelo crânio de crocodilo que atualmente repousa no Museu Décio Thadeu (Museus de Geociências do Instituto Superior Técnico), no campus Alameda, em Lisboa. Com cerca de dois palmos de comprimento, o crânio pertencia a um crocodilo do Nilo, recolhido na floresta de Mayombe, em Angola. Entre a ponta do focinho e a ponta da cauda, o animal não teria mais de cinco de metros.
“Este exemplar não terá mais de 100 anos. Ainda é um rapazola considerando que geralmente trabalho com animais com cerca de 250 milhões de anos. Este ainda é muito jovenzinho para idade geológica, o que não deixa de ter um grande interesse. Qualquer espécie tem coisas interessantíssimas para revelar”. A consideração é feita por Ricardo Araújo, investigador na área da paleontologia do Instituto Superior Técnico, no Instituto de Plasmas e Fusão Nuclear (IPFN). Fala-nos a partir de uma das salas do Museu – “um pouco cristalizada no tempo, uma espécie de Museu dos Museus” -, rodeado de fósseis de crocodilos, porcos selvagens, antílopes, carnívoros, livros antigos, minerais e rochas, fósseis de corais, de bivalves, trilobites, reconstituições na parede de ambientes antigos…
Mas o que faz um paleontólogo no Técnico / IPFN? “O facto de haver uma máquina de tomografia computadorizada que vai muito ao encontro da minha investigação e de haver uma coleção de animais atuais que podia comparar”, resume. A tecnologia existente na instituição – como a radiação x através da microtomografia computadorizada – permite, por exemplo, visualizar ossos dentro do ouvido interno sem tocar nem destruir o fóssil. Também dentro deste crânio de crocodilo há uma secção que só é acessível praticamente através da tomografia computorizada, precisamente a zona do ouvido interno. “É isso que os paleontólogos adoram: estruturas complexas envoltas em osso”, explica. “Isto permite que a estrutura do nosso ouvido interno seja possível de rastrear ao longo da história evolutiva quer dos humanos, quer dos crocodilos, quer de qualquer animal”, aprofunda.
O trabalho de investigação de Ricardo Araújo tem-se centrado precisamente nas informações evolutivas que é possível retirar através da análise do ouvido interno. “Dentro do nosso ouvido interno temos três canais. Com as tomografias conseguimos olhar para dentro do crânio e ver esses buracos que lá existem”, explica. No caso dos crocodilos, realizou um estudo em espécimes ainda dentro dos ovos, enquanto se iam desenvolvendo durante 93 dias, até se tornarem animais que conseguiam sair dos ovos. Os resultados da investigação foram publicados recentemente na conceituada revista Nature.

O crânio de crocodilo do Técnico insere-se numa coleção alargada de osteologia animal, composta por 24 crânios e outros pequenos fragmentos, recolhidos essencialmente nas antigas colónias portuguesas, entre 1913 e o fim da década de 40. Terá sido recolhida por Carlos Augusto Alves Pereira, antigo aluno do Técnico, formado em Engenharia Geológica e de Minas, e serviu como suporte pedagógico de ensino. A coleção “ainda não foi identificada de forma rigorosa” e ainda carece de um “inventário adequado”, nas palavras de Elisa In-Uba, que se encontra a desenvolver uma tese de mestrado no Técnico em parceria com a Faculdade de Belas Artes e que pode ajudar a dar os primeiros passos nesse sentido.
Essa catalogação pode ser fundamental para colocar a coleção na rota do conhecimento. Poderá, por exemplo, integrar bases de dados internacionais sobre a biodiversidade. “As maravilhas das coleções dos museus é que nunca sabemos como podem vir a ser utilizadas no futuro”, defende Judite Alves, subdiretora do Museu de História Natural e Ciência da Universidade de Lisboa. As coleções de história natural estão reconhecidas, desde 2018, pela União Europeia como uma infraestrutura de investigação fundamental para a Europa. O objetivo é tornar este recurso disponível para a comunidade científica e pô-lo ao serviço das grandes questões que hoje preocupam a sociedade. “O nosso crocodilo poderá integrar estas estruturas, uma vez a coleção estando estudada e inventariada”, aponta.

 

Episódio 55 – O Spectrum no Técnico

sexta, julho 15th, 2022

O Spectrum é um microcomputador de 8 bits que fez as delícias de toda uma geração de jovens dos anos 80, dando-lhes a oportunidade de experimentar um conjunto de jogos míticos para consola. Lançada em 1982 para fins de lazer, tornou-se quatro anos depois num auxiliar pedagógico essencial para o ensino no Departamento de Engenharia Mecânica do Instituto Superior Técnico. Não era nenhuma brincadeira, mas… “tendo em conta os programas que fazíamos, acaba por ser quase um jogo. Só que em vez de ter um bonequinho a entrar no ecrã, tinha luzinhas a acender e a apagar”, brinca Mário Ramalho, professor auxiliar do mesmo Departamento, na área de controlo e informática industrial. Durante quase duas décadas, o Spectrum serviu de placa de aquisição de dados, trabalhando com vários tipos de computadores, máquinas e robots.

Para além da consola ZX Spectrum, negra com um arco-íris num dos extremos, esta adaptação tecnológica assume-se como uma verdadeira geringonça: afixados numa tábua de madeira – para que os vários componentes não se percam e andem sempre juntos – aparecem também um gravador e leitor de cassetes, um transformador de eletricidade, uma ficha tripla, dois interruptores elétricos e uma placa com circuitos feita à mão. A tecnologia permite, nas palavras de Mário Ramalho, “ir buscar grandezas físicas e guardá-las dentro do computador sob a forma numérica” e traduzi-las para outro equipamento. Na altura construíram-se, pelas mãos de Luís Raposeiro, atual coordenador-técnico de mecanotecnia, oito conjuntos para auxílio nas aulas. Hoje, quase quarenta anos depois, repousam no Edifício de Mecânica 3, onde “assistem” às movimentações de drones e robots modernos, fruto da atividade laboratorial e de ensino e investigação na área de sistemas e controlo, no Laboratório de Controlo, Automação e Robótica.

Já em 1986 era uma ideia tão nova como o pouco tempo de serviço que Luís Raposeiro levava no Técnico. “Foi talvez das primeiras coisas que executei”, recorda. “Pediram-me para arranjar uma base onde pudessem inserir determinados componentes e periféricos. Fazer a parte da impressão da placa, fazer a associação dos vários componentes, soldaduras, etc…”, complementa. E porquê tanto trabalho? Mário Ramalho explica: “Era na altura o computador mais barato e extremamente potente em termos de aplicações”. “Permitiu poupar dinheiro e adaptar o equipamento às nossas próprias necessidades. Sistemas desses para aquisição de dados custavam literalmente uma fortuna”, reforça.
Os oito exemplares do Spectrum no Técnico foram úteis e estiveram ativos durante cerca de 20 anos, tendo sido apenas substituídos em 2006, quando se desenhou uma placa de aquisição de dados capaz de se adaptar aos novos tempos e necessidades. Estava prestes a nascer a IST_Board, a placa minúscula que permitiria que computadores e robots trocassem dados entre si e se viria a tornar num fenómeno de vendas mundial (ouvir episódio 47 – A IST_Board). Por muita utilidade que os oitos exemplares do Spectrum no Técnico ainda tivessem, o avanço tecnológico e as suas dimensões (impróprias para os novos trabalhos de automação, que passaram a incluir cada vez mais pequenos robots) precipitaram o seu fim.

História Extra: Quando se trabalha com o Spectrum em casa, ninguém liga a luz
«Quando trabalhava com o Spectrum em casa proibia as pessoas de irem à cozinha. O Spectrum era feito para ser utilizado em casa. De cada vez que acendia uma lâmpada florescente, o campo elétrico do arrancador de vez em quando dava cabo da memória. Era comum acontecer isso.
Portanto, enquanto eu trabalhava com o Spectrum – ainda fiz alguns trabalhos para disciplinas no Specturm – e aquilo estava a tarde inteira a fazer cálculos, nessa altura ninguém ia à cozinha porque ele ainda só tinha os cálculos da metade da tarde. Começava a haver protestos. Nessa altura fazia-se o contrário que era pô-lo a funcionar à noite, enquanto toda a gente ia dormir para ter os resultados de manhã. E aí já não havia problemas desses.»
(Mário Ramalho)

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Episódio 54 – O Kit de Electromagnetismo

sexta, julho 8th, 2022

Manuel Abreu Faro (1923-1999) fez todo o seu percurso de aluno e professor no Instituto Superior Técnico e inspirou gerações de estudantes com a visão e o estilo que imprimia nas suas aulas na área das telecomunicações e da eletrónica. Moisés Piedade, fundador e diretor honorário do Museu Faraday, foi seu aluno mas diz integrar “os 5% de alunos que não era tão entusiasta” com as suas aulas, por serem muito teóricas (embora fosse “um pedagogo fantástico”). Foi por isso com surpresa que encontrou no antigo gabinete de Abreu Faro, quando recolhia objetos para a coleção do Museu Faraday, já em 2014, um Kit de Eletromagnetismo. “Para mim foi uma surpresa ver que Abreu Faro, que dava aulas quase sem ter uma ligação à prática da Engenharia, teve um objeto destes. Demonstra que tinha interesse pela tecnologia e que não estava só interessado na teoria, que gostava de comprovar aquilo que estava a ensinar”, resume.
O Kit de Eletromagnetismo integra já o espólio do Museu, dentro da sua caixa de madeira de origem (cerca de 60cm por 40cm e 15cm de altura). É composto por várias outras caixas que se sobrepõem, onde estão os diferentes objetos que podem ser selecionados para as múltiplas experiências básicas de eletromagnetismo que se podem fazer. Por exemplo: fazer uma pilha eletroquímica, fazer um motor elétrico a partir das várias partes de um campo de um magneto, de bobinas quando passa a corrente, observar determinadas correntes, entre outras.
O objeto tem um valor histórico, por “pertencer a quem pertencia”, mas também está pronto para desempenhar, no futuro, o papel de inspirar os mais novos. “O kit vai ficar no Museu Faraday e vamos fazer algumas daquelas experiências com alunos de escolas”, garante Moisés Piedade.

Voltamos às aulas de Abreu Faro, agora pela memória de Custódio Peixeiro, professor do Departamento de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores do Técnico: “Eram aulas muito vivas, contagiantes, alegres. Nós sentíamo-nos entusiasmados com aquilo que ele estava a dizer. Para além do necessário formalismo matemático que existe numa disciplina de Engenharia de Ondas Eletromagnéticas, ele dava aulas muito vivas, com muitas interpretações físicas dos fenómenos, dava muitos exemplos de aplicação também”. O fascínio em torno da figura de Abreu Faro não se extingue nos tais 95% de alunos fascinados pelas suas aulas. “Guardo uma enorme dívida que tentei pagar escrevendo um capítulo sobre ele. Ajudou a minha geração de muitas formas.Teve uma influência decisiva na vida de centenas de investigadores em todas as áreas”, explica Custódio Peixeiro.
“Abreu Faro é quase um puzzle muito complexo”, diz Maria Inês Queiroz, investigadora da Universidade Nova de Lisboa. “Manuel Abreu Faro foi um professor, um investigador, um político se quisermos, mas acima de tudo um pensador, um estratega da política científica em Portugal”, explica. Foi o primeiro catedrático do Técnico na área de telecomunicações, em 1956, e acumulou funções de grande influência como a presidência da Comissão de Estudos da Energia Nuclear, do Instituto de Alta Cultura e, mais tarde, a vice-presidência da Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, ambas antecessoras da atual Fundação para a Ciência e Tecnologia. “Na década de 50 ele era já um professor catedrático que tinha uma perceção talvez diferente dos outros professores: percebeu a importância de ligar o ensino à investigação”, explica Maria Inês Queiroz. Nessas funções, ajudou toda uma geração de jovens estudantes a fazer investigação fora do país, através de bolsas de estudos, aumentando o volume de massa crítica em Portugal. No Técnico teve também um papel decisivo na criação do Complexo Interdisciplinar (ouvir Episódio 25 – A “Exaltação dos ritmos dominantes das origens”), onde hoje há um auditório com o seu nome.

O seu legado deixou sementes no sistema científico nacional, em particular na influência da visão estratégica que Mariano Gago, ministro da Ciência e Tecnologia entre 1995 e 2002, aplicou em Portugal. O também antigo professor do Técnico e antigo aluno de Abreu Faro costumava recordar a sua filosofia do seguinte modo (citação aproximada na memória de Maria Inês Queiroz): “Eu não sou um investigador, sou um professor. A minha missão é garantir que vocês têm condições para virem a ser cientistas”. Missão cumprida.

 

Histórias Extra:

Um: Abreu Faro, um visionário da promoção da ciência e da cultura científica
«O mais surpreendente talvez no plano do discurso [de Manuel Abreu Faro] foi a forma como percebeu a importância da promoção da cultura científica, que é uma coisa que já só ouvimos falar em Portugal no final do século XX, quase, com Mariano Gago. Diria que foi o primeiro a pensar na promoção da cultura científica como uma forma de sustentabilidade, de legitimação da ciência enquanto política pública. Quase que diria, extrapolando um bocadinho, que é o primeiro a falar na necessidade da comunicação de ciência em Portugal. Isso diria que era muito à frente do seu tempo em Portugal. Não lhe conheço nenhuma iniciativa mais concreta de estímulo à cultura científica, mas no discurso…
Diria que o principal do seu legado está no que aconteceu mais tarde em termos de política científica. Esta influência e convivência [de Mariano Gago] com Abreu Faro terá influenciado a forma como percebeu também a importância deste princípio da criação de uma cultura científica para garantir a sustentabilidade da ciência no nosso país.»
(Maria Inês Queiroz)

Dois: Giz, ponteiro e cigarro – Uma imagem-memória de Abreu Faro na sala de aula
«A primeira imagem que me lembro é dele a segurar o ponteiro, por trás de uma secretária muito grande. Por trás dele estavam os quadros elevatórios (dois quadros que sobem e descem com os contrapesos que lá estão), onde se escreve a giz. Lembro-me de ele movimentar-se de um lado para o outro e de ter também sempre na mão um cigarro, a fumar. Na altura era comum. Há histórias muito curiosas acerca disso. Dele trocar o giz pelo cigarro e de vez em quando “fumava” o pau de giz.
Em muitas das aulas dele havia uma espécie de aura poética por cima, expressa também no seu livro “A peregrinação de um sinal”: “Por isso, sem escrever, nas minhas aulas, onde sabia possível, nunca enjeitei a possibilidade de humanizar, comparar, trazer a matemática e a física para o drama e a poesia do homem”.»
(Custódio Peixeiro)

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Episódio 53 – Os painéis científicos

sexta, julho 1st, 2022

São 116 painéis enrolados que guardam a memória do conhecimento científico de uma época, mas já se assumiram como uma das mais eficazes formas de partilha de conhecimento. Os painéis científicos são, provavelmente, a versão mais antiga dos atuais powerpoints. Eram exibidos, no início do século XX, recorrendo a um sistema de roldanas e fios. De cada vez que era preciso mostrar um desses painéis, o professor puxava os cabos e aparecia um novo “diapositivo” com ilustrações científicas.
Os painéis científicos do Técnico, com datas originais de 1911, têm cerca de 2 metros de altura por 1,5 de largura e apresentam ilustrações de paleontologia, geologia, representando dinossauros, mamíferos, esponjas, trilobites e plantas, entre outros. São comumente chamados de quadros parietais (de parede) e feitos em tela suportada por ripas de madeira nas extremidades superior e inferior. No Técnico, “foram usados seguramente até à década de 50, altura em que o curso [de Engenharia de Minas] perde a sua cadeira de paleontologia e o estudo é descontinuado”, explica Manuel Francisco, diretor do Museu de Geociências do Instituto Superior Técnico, onde os painéis se encontram atualmente.
Mafalda Paiva, ilustradora científica do Centro de Arqueologia de Lisboa, realça também a forma “extraordinária” como as ilustrações estão dispostas nos painéis: “Não são só claro e escuro. Têm um pouquinho mais que lhes dá relevo. Foi-lhes colocado um tom branco, nas zonas mais claras, para que se tornem mais volumosas. Temos o escuro, a cor do papel e o branco, que faz com que a ilustração fique ainda mais rica”.

A maioria das ilustrações foi feita por Karl Alfred von Zittel (1839-1904), um professor de paleontologia na Universidade de Munique (Alemanha), que as desenhou para auxílio às suas aulas. A sua coleção acabaria por ser reproduzida e distribuída massivamente pelas principais universidades do mundo. Em Portugal, apenas são conhecidas a coleção de mais de 3000 exemplares do Museu de História Natural e da Ciência da Universidade de Lisboa e os 116 painéis do Técnico. “São 116 mas tenho a certeza que há muito mais nessas reservas, nesses armazéns… temos é que os descobrir”, acredita Marta Lourenço, atual diretora desse Museu.
A coleção do Técnico guarda uma surpresa. Três ilustrações de três painéis estavam, até há pouco tempo, envolvidas em mistério quanto aos seus autores. Manuel Francisco recorda: “Havia alguns painéis que não tinham número. Pensámos: será que se perderam, será que não? Ao abrir percebemos que eram sobre fósseis nacionais e a maior surpresa foi verificar que eram painéis com uma qualidade semelhante aos outros mas tinham pequenas assinaturas e datas”. São da década de 40 e foram desenhados por três antigos alunos do Técnico que frequentaram as aulas de paleontologia. “Curiosamente, um desses alunos – Fernando de Mello Mendes (ouvir o Episódio 37 – Os Modelos de Minas de Freiberg) – acabou ainda por ser meu professor”, conta. Para Marta Lourenço, o facto de haver painéis desenvolvidos por alunos do Técnico dá ainda mais valor à coleção. “Passa a ser um objeto único que passa a ter uma importância e um significado local, para a história da instituição”, aponta.

A coleção encontra-se atualmente guardada numa sala do Museu de Geociências, no campus Alameda do Técnico, ela própria um pedaço da história do Técnico. Inaugurada nos anos 30, mantém parte do mobiliário original. Já foi biblioteca, sala de arrumos de cadeiras e de livros e sofreu algumas inundações.
E como sobreviveram os painéis à passagem do tempo? Marta Lourenço confessa que não está “habituada a ver tantos painéis neste belíssimo estado de conservação”. Falamos de um dispositivo de pendurar na sala de aula que normalmente está “muito esfarrapado” pelo uso. Mafalda Paiva partilha da mesma opinião. “Deviam estar danificados e foram recortados e colados com muita qualidade”, resume. E isso faz com que percam valor? “O objeto está lá, a ilustração está lá e são tão competentes como eram há 100 anos atrás”, defende.
Que futuro está destinado para esta coleção? “É uma coleção única e é preciso estudá-la, inventariá-la e torná-la acessível a todos”, avança Marta Lourenço. Este tipo de objetos “permite olhar o passado, mas também o passado da educação, da ciência e levantar questões que outros objetos não permitem”, conclui.

  • Agradecimentos:
    Mafalda Paiva
    Manuel Francisco
    Marta Lourenço
    Museu de Geociências do Instituto Superior Técnico

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Episódio 52 – Space CoBot

sexta, junho 24th, 2022

Num futuro próximo, numa estação espacial (mais ou menos) não muito distante, uma espécie de drone com seis hélices e muitos sensores está preparado para voar em qualquer direção e com qualquer atitude. Colabora com os humanos, se estiverem presentes, ou com os outros robots que ocupam o mesmo espaço. Esta podia ser a descrição de um conto de ficção científica escrito nos anos 90, mas trata-se na verdade de um projeto do Técnico, nascido em 2015, que tem aberto linhas de investigação na área dos robots colaborativos e da inteligência artificial.
O Space Cobot ainda não foi ao Espaço, apesar do nome, mas tem sido testado em ambientes de laboratório que simulam a ausência de gravidade. Foi projetado para ajudar no processo de transporte de cargas numa Estação Espacial. “A ideia nasceu com a colaboração que fizemos já aqui no Instituto de Sistemas e Robótica (ISR | Lisboa) na construção de robots que colaboravam com outras pessoas (ouvir o episódio 41 – Os Robots futebolistas e o episódio 45 – Raposa, busca e salvamento) . Estendemos a ideia ao domínio da estação espacial”, explica Rodrigo Ventura, professor no Departamento de Engenharia Electrotécnica e de Computadores do Técnico e investigador no ISR | Lisboa. Foi desenhado não tanto para transportar carga mas para colaborar nesse processo. “O nosso foco está na autonomia, no controlo, nas decisões, na inteligência artificial, não ao nível da hélice”, explica.

Nasceu a partir de uma “chamada” da Estação Espacial Europeia (ESA), que desafiava equipas universitárias a construírem projetos para serem testados a bordo de um Airbus a300, que consegue atingir até 20 segundos de gravidade zero. Rodrigo Ventura, que trabalhava na área de busca e salvamento mas ainda não na área do Espaço, recebeu o email e na sala ao lado estava Pedro Roque, antigo aluno do Técnico e antigo bolseiro no ISR | Lisboa. E assim começava a nascer a ideia, em 2015, para o robot, que veio a ser desenhado com a ajuda da equipa do FST (Fórmula Student – ouvir o Episódio 7). Ao mesmo tempo apareciam as primeiras linhas do primeiro artigo científico do projeto, apresentado em 2016, na Coreia do Sul, na maior conferência da área da robótica, a IROS (International Conference on Intelligent Robots and Systems). Desse contacto com a comunidade científica surgiram várias parcerias científicas.
Para descrever este novo robot colaborativo, com cerca de 50 cm de diâmetro e 40 cm de altura, recorremos às palavras de Pedro Roque: “Imagine um drone, mas com 6 hélices, em vez que apontarem na vertical, são anguladas, porque temos que compensar a gravidade. É constituído por um cilindro no centro e depois as hélices estão enquadradas num cilindro mais achatado (mais pequeno e mais largo) que protege cada hélice individualmente”.

“Foi um dispositivo que abriu uma linha de investigação nova no Técnico / ISR | Lisboa e que abriu imensas possibilidades”, aponta Rodrigo Ventura. O Space Cobot abriu caminhos de investigação, por exemplo, para visitas e colaborações com a NASA, para participar em missões analógicas a Marte, para ganhar conhecimento para fazer um outro robot para impressão 3d, e à investigação com rovers (veículos de exploração espacial) com teleoperação.
E já inscreveu também o nome no futuro do ensino no Técnico, estando associado às várias teses de Mestrado na área da robótica. Deu ainda origem a uma cadeira em Ciências e Tecnologias do Espaço para os alunos do Técnico. E toda a atividade científica que gerou e a comunidade que envolveu muito contribuíram para que o Técnico viesse a ser escolhido pela Agência Espacial Europeia como entidade portuguesa que vai acolher o Space Studies Program da International Space University, um programa de topo a nível mundial na área do espaço para alunos graduados e profissionais [a realizar-se de 27 de junho a 26 de agosto de 20223, em Oeiras].
O Space Cobot não chegou a ser selecionado para ser testado na gravidade zero do projeto do Airbus da ESA, por questões administrativas, mas a esperança de ir para o Espaço continua intacta para Rodrigo Ventura. “O desenvolvimento de algo que vá para o espaço é um processo longo. Enquanto isso não acontece…”.


Histórias Extra:

Como se testa gravidade zero sem gravidade zero?
«Aprendemos com a NASA. A existência de um set up laboratorial que consiste numa mesa plana de pedra polida, sobre a qual flutuam almofadas de ar onde é injetado ar comprimido, neste caso CO2. não há qualquer contacto físico entre uma plataforma e essa mesa. Colocamos o robot lá em cima e só nos fica a faltar a direção vertical, porque aí não podemos fazer nada. Mas no plano horizontal conseguimos que ele se mova. É usado na NASA e também no MIT. E replicámos cá no laboratório do Técnico, no campus TagusPark, em Oeiras.»
(Rodrigo Ventura)

Das dificuldades de colaboração entre robots e humanos aos desafios de um robot no Espaço
«Colaborar com humanos é mais complicado, é muito mais desafiante saber o que é que o humano vai fazer. O que é que o robot deve fazer para ajudar o humano numa determinada tarefa? Isso por si só é um problema. O projeto Space Cobot aborda o aspecto da sua construção física – como se move, como é autónomo -, até aos aspetos mais gerais de como é que podemos ter um robot que colabore e que ajude proactivamente um humano. Para além disso, na Estação Espacial há um requisito muito grande a nível de ruído. Os astronautas estão sujeitos já a tanto ruído que têm muito pouca tolerância que sejam introduzidos novos objetos que produzam ruído.
O transporte de carga adereça um desafio muito concreto. Por exemplo, a Estação Espacial Gateway, na Lua, vai ter meses e meses sem astronautas lá dentro. E vai ser necessário fazer chegar lá naves com carga e descarregar de forma totalmente autónoma com robots. O Space Cobot também se integra na procura de soluções para conseguir este transporte de carga sem astronautas.
Toda a comunidade de robótica e inteligência artificial ambiciona robots cada vez mais autónomos, o que também se aplica à área do Espaço, que tem a particularidade de ser extremamente difícil garantir o transporte de humanos lá para cima. A sua manutenção, a segurança, a radiação são alguns dos maiores problemas. É um ambiente hostil em que a utilização dos robots é particularmente interessante e útil.
Para além disso, cada vez mais se assiste à entrada da indústria no Espaço. Prevê-se que haja muito mais estações espaciais, “fábricas” em órbita. Por isso é preciso robots, porque os custos de ter astronautas a fazer a manutenção das fábricas são altíssimos.»
(Rodrigo Ventura)

 

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