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Episódio 31: O Boneco SenToy

sexta, janeiro 28th, 2022

Felicidade. Medo. Zanga. Nojo. Surpresa. Infelicidade. São seis emoções humanas que um boneco, de seu nome SenToy, aprendeu a detetar e a transmitir para um computador. Estamos no início do século, em 2001, e o que parece uma brincadeira é na verdade um dos primeiros projetos europeus na área da computação afetiva, conduzido por uma equipa multidisciplinar do Técnico. Estava a nascer a tecnologia de interfaces tangíveis, que permite controlar personagens num jogo através de um objeto físico, hoje tão popular entre consolas de videojogos. E o SenToy, que inclui no nome a ideia de sentir (sensing) e de brinquedo (toy), foi um dos primeiros embaixadores da tecnologia, tendo viajado por todo o mundo.
SenToy é um boneco sem rosto, sem género e sem idade, desenvolvido para comunicar emoções para um computador e interagir com um jogo. Cor cinzenta, calção azul, cerca de meio metro de altura, duas pernas, dois braços, tronco e pouco mais. Sensores e acelerómetros para detetar movimentos e um lugar na história da investigação nacional.
“Chegámos à conclusão que se o boneco fosse muito parecido com um humano as pessoas tinham dificuldade em manipulá-lo, sentiam-se mal em fazê-lo. Porque nós pedíamos para dobrá-los para transmitir emoções”, explica Rui Prada, professor do Departamento de Engenharia Informática no Técnico e investigador na área de inteligência artificial e de jogos digitais. “Acabámos por fazer uma coisa de meio metro, fofinho, que era neutro em termos de características humanas”, resume.

Para definir como essas emoções seriam representadas, foi estudado como é que as pessoas usavam o boneco e que tipo de movimentos faziam para comunicar essas emoções. As mais frequentes foram as utilizadas no boneco. “Por exemplo, a felicidade seria o boneco a saltar de um lado para o outro. O medo seria encolher o boneco. A surpresa seria saltar para trás. Com isso criámos os sensores no boneco para identificar estes sinais”, explica Rui Prada. A partir desses movimentos, foi criada uma mecânica de jogo em que os personagens tinham um estado emocional e agiam de acordo com esse estado emocional. Ao jogador cabia a responsabilidade de mudar as emoções.
O SenToy e o jogo nasceram no contexto de um projeto europeu, o Safira, coordenado por Ana Paiva, professora catedrática do Departamento de Informática do Instituto Superior Técnico e investigadora no Grupo de Inteligência Artificial para Pessoas e Sociedade (GAIPS / INESC ID). “Quando desenhámos o projeto, pensámos em como as emoções estão muito ligadas ao corpo. Achámos que seria interessante explorar a interação entre os humanos e a máquina, usando as emoções. Na altura, pareceu-nos interessante explorar um objeto que fizesse de interface na expressão dessas emoções”, explica. “Na altura não havia ainda interfaces tangíveis, não havia a Wii [que só surge depois]. Portanto esta ideia de controlar personagens num jogo através de um objeto físico foi muito inovadora, porque não havia nada”, defende. “Foi pouco depois do livro “Afective Computing” ter surgido, da Rosalind Picard. O projeto foi muito inovador: as pessoas conheciam, falavam do Sentoy”, recorda.

O trabalho de investigação pretendia explorar a capacidade de construir um objeto que permitisse às pessoas expressar emoções que controlassem um ambiente virtual. “O potencial deste tipo de interação pode ser usado para muitas coisas, nomeadamente para terapia, para fazer com que as pessoas libertem um conjunto de frustrações”, explica. Exemplo: o SenToy foi usado num jogo que pretendia ajudar crianças vítimas de bullying (no contexto de um projeto de Mestrado do Técnico).
“Foi uma época muito motivadora que criou de certa maneira o GAIPS, o grupo de investigação que agora tem muita gente”, recorda. O projeto reuniu uma equipa multidisciplinar de cooperação entre áreas como a eletrónica, o processamento de sinal, a parte de jogos, a computação afetiva, a psicologia e o design. A parte eletrónica foi assegurada na altura pela equipa de Moisés Piedade, professor aposentado do Técnico, e que agora volta a pensar num futuro para o boneco. É atualmente um dos responsáveis pelo Museu Faraday, que se encontra no campus Alameda do Técnico, e aponta a intenção: “O nosso objetivo aqui no Museu é pô-lo a trabalhar. 20 anos depois era um feito importante. Trouxe-o para aqui exatamente para isso, mas todos os dias aqui no Museu há mais trabalho do que o que conseguimos fazer”. Ana Paiva e Rui Prada mostram-se contentes com essa possibilidade. Ou, na linguagem SenToy, boneco aos saltos de um lado para o outro.


Conteúdo Extra: Duas Histórias contadas por Ana Paiva e por Rui Prada

Um: Sentoy, um ator em Nova Iorque
«Em Nova Iorque, tínhamos que apresentar o SenToy e o jogo. Tínhamos uma demonstração e deram-nos dois minutos para fazer publicidade ao projeto. E, na altura, estava eu, o Rui Prada e outro investigador do grupo que era o Marco Paulo, e não sabíamos bem como explicar em dois minutos como era o SenToy, como é que era o jogo e fazer com que as pessoas viessem ver o jogo. Então decidimos que a melhor maneira era jogar o jogo, em dois minutos. Só que não podíamos montar o jogo… então decidimos fazer da seguinte maneira: O Marco tinha o SenToy numa mão, eu era uma personagem e o Rui era outra. Então fizemos uma peça de teatro com os três: eu e o Rui eramos personagens de jogos e o Marco controlava o Rui através do Sentoy, numa luta entre mim e o Rui. Obviamente que foi tão giro que nós tivemos uma fila enorme de pessoas a querer ver a nossa demonstração».
(Ana Paiva)

Dois: SenToy, boneco à prova de crianças e gerador de empatia
«Não quisemos que o interface funcionasse só com crianças. Naturalmente as crianças gostaram mais do interface porque se identificaram mais com o boneco e tinham menos medo de o manipular. Aliás, o boneco revelou-se bastante robusto porque o que as crianças faziam era de facto… interessante. Tínhamos sempre o receio que aquilo deixasse de funcionar. Por exemplo, quando queriam mostrar que o boneco estava zangado, mexiam violentamente com o boneco. Enquanto que um adulto tem mais cuidado a demonstrar. Embora que nós vimos vários casos de adultos que se envolveram bastante, que pareciam crianças. Esse era também o nosso objetivo .Conseguimos fazer uma interface que de facto conseguia ser usada para transmitir emoções. Uma das outras coisas que estudámos foi a própria relação que as pessoas tinham com o objeto e conseguimos criar de alguma forma uma empatia, as pessoas gostaram e sentiram-se ligadas ao boneco que estavam a usar. Depois o jogo mostrou que é possível fazer experiências com base só na manipulação de emoções. Em que trabalhando emoções se consegue fazer um jogo interessante de que as pessoas gostem, se divirtam e que se preocupem. Com isto, as pessoas perceberam ao jogar que temos estados emocionais. Toda gente sabe que temos emoções mas não pensam assim tanto sobre isso.»
(Rui Prada)

Episódio 30 – O Analisador de gases portátil

sexta, janeiro 21st, 2022

Hoje em dia é relativamente simples e rápido medir os compostos químicos no ar, por exemplo em parques de estacionamento e em fábricas, recorrendo a aparelhos eletrónicos, mas o cenário era completamente diferente em 1873, ano em que Louis Hengist Orsat (1837-1882) patenteou o chamado “equipamento de Orsat” e criou um método universal de determinação da composição da mistura de gases no ar.
Uma versão do Analisador de Gases Portátil tem lugar de destaque no espólio do Departamento de Engenharia Química do Técnico, tendo integrado o conjunto inicial de equipamentos que terão equipado os laboratórios do Técnico desde o seu início. Este equipamento, apresentado por Moisés Pinto, professor do Departamento de Engenharia Química do Instituto Superior Técnico, “é totalmente construído em vidro, com umas mangueirinhas de borracha e umas torneirinhas, portanto não tem eletrónica nenhuma”. Foi inventado para determinar a composição de misturas de gases e o seu aspeto visual “entra muito naquilo que é o imaginário, digamos assim, comum das pessoas quando pensam num laboratório de química”: tem uma sequência de ampolas com torneiras, todas dentro de uma caixa de madeira, que também serve de mala de transporte, que “dá assim um ar um bocadinho desafiante e intrigante para quem o vê e não sabe o que é”. O equipamento é totalmente portátil, o que lhe permitia a análise de gases junto do sítio onde estavam a ser emitidos.
O método do analisador de gases baseia-se na medição da diferença de volume do gás depois de contactar com diferentes soluções. “Ou seja, nós temos um volume inicial que depois de contactar com uma solução é reduzido por exemplo para metade e aí consigo saber que metade daquele gás era por exemplo dióxido de carbono”, explica Moisés Pinto. “A novidade deste equipamento é fazer logo a determinação do teor de quatro gases diferentes. Pegar na mesma amostra de gás e sequencialmente a mesma amostra ser passada por diferentes buretas, e conseguimos ter uma determinação mais rápida do teor de gases”, complementa.
O Analisador de Gases permitia ganhar tempo nas medições, mas também inseriu a importante característica da reprodutibilidade. “Tornou-se um equipamento bastante comum, que na altura se usava para fazer estas medições, e que permitiu também comparar as medições que eram feitas em diferentes laboratórios”, explica.
Utilizado até pelo menos à década de 60 do século passado, deu entrada no acervo de equipamentos do Departamento em 1995, tendo também sido usado para ensinar os alunos a analisar gases. Antes disso, esta tecnologia serviu e deu bases para as tecnologias atuais para funções cruciais como a análises dos gases expelidos por fábricas, da existência de atmosfera perigosa em cidades muito poluídas ou parques de estacionamento e até da análise de fumos dos escapes de automóveis. Algumas dessas análises podem, no limite, salvar-nos a vida.
Nos dias de hoje, as técnicas analíticas para fazer este tipo de medições são completamente diferentes e baseadas essencialmente em equipamentos eletrónicos. “Eu diria que o princípio de medição é também químico, ou seja, existe ali uma interação entre aquelas moléculas daquele gás e algum detetor ou algum processo que faz a separação dessas moléculas para depois serem quantificadas”, argumenta Moisés Pinto. “Nós hoje em dia confiamos muito em sensores que produzem sinais elétricos e depois podemos processá-los e daí inferir, sobre neste caso, a composição dos gases. Naquela altura isso não acontecia. Estamos a falar de equipamentos que tinham que confiar em medidas físico-químicas muito básicas”, complementa.

 

Conteúdo Extra: Uma história contada por Moisés Pinto
A importância da capacidade de manuseamento dos equipamentos no século XX

«A manipulação deste tipo de equipamentos pressupunha que quem o utilizava sabia muito bem o que estava a fazer. No século XXI muitas vezes usa-se equipamentos analíticos sem saber os detalhes técnicos que lá estão por trás. No fundo também tem que ser assim, é impossível para quem está no laboratório de análises dominar todos os detalhes exatamente técnicos. Este tipo de equipamentos antigos, normalmente requeriam que o analista percebesse bem aquilo que estava a fazer senão as coisas não iam correr bem, ou seja, as torneiras que tinha que abrir, qual a sequência da passagem dos gases, etc, etc, porque o aparelho é totalmente manual, nem sequer tem nenhuma ligação à eletricidade. Podíamos fazer as medições exatamente só com este conceito de medir o volume do gás. Mais nada.
As pessoas naquela altura tinham que ter uma certa capacidade de manuseamento dos equipamentos que hoje em dia não acontece. Os equipamentos hoje em dia têm empresas que fazem manutenção, representantes, etc. Na altura isso não acontecia. Os equipamentos eram comprados e muitas das vezes até importados do estrangeiro e a manutenção tinha que ser feita pelo analista no laboratório que tinha que perceber como é que funcionava e que tinha que ser capaz de ir fazendo as pequenas manutenções».

Episódio 29 – O Acelerador Van de Graaff

sexta, janeiro 14th, 2022

Em 1961 um acelerador Van de Graaff chegava a Portugal com a capacidade de criar uma nova comunidade de Físicos. Instalado no edifício de Física do atual campus Tecnológico e Nuclear (CTN) do Técnico, antigo INETI e ITN, situado em Loures, era o primeiro passo para concretizar uma estratégia nacional de aproveitamento da energia nuclear utilizando recursos naturais. O acelerador, que traz o nome do investigador que o construiu e deu maior projeção à utilização destas máquinas [Van de Graaff – 1901-1967], instalado em Portugal atraiu para o país investigadores que haviam feito os seus doutoramentos no exterior e que deram início às suas carreiras científicas em território nacional.
Parte dos componentes do acelerador está já no Museu Nacional de História Natural e da Ciência da Universidade de Lisboa, tendo as outras peças sido recicladas para a nova versão que, a partir dos anos 90, passou a atingir energias mais elevadas. O laboratório onde se encontra o atual acelerador com cerca de 4 metros é também uma “mistura de equipamentos perfeitamente atuais, alguns do que melhor existe a nível mundial, com outros produzidos por este laboratório na década de 60”, como explica Eduardo Alves, investigador e diretor do Laboratório de Aceleradores e Tecnologias da Radiação do CTN. A zona é reservada por questões de segurança, mas “todo o campo de radiação que existe e está a ser monitorizado em tempo real para sabermos qual a intensidade de radiação a que estamos sujeitos”. Por via das dúvidas – e sobretudo porque, no seu início de atividade, o acelerador ter trabalhado com feixes de neutrões com um poder de penetração enorme – os equipamentos estão dentro de um bunker, construído em betão com um metro de espessura. “Não há qualquer possibilidade de libertação de radiação para o exterior”, explica Eduardo Alves, que trabalha no laboratório desde 1981.
O acelerador é um equipamento elétrico que permite acelerar partículas elementares – protões, eletrões ou iões. Recorrendo a feixes de partículas, é possível estudar os mais diversos materiais para obter informação sobre a sua constituição. “Se quisermos saber qual o comportamento de um determinado material, quais as propriedades desse material, tem que se saber necessariamente de que é que esse material é feito e essa é a informação que nós podemos tirar com as técnicas nucleares que nós utilizamos aqui, usando o feixe de partículas”, detalha Eduardo Alves. Para conseguirmos medir, é necessário encontrar um instrumento de medida com dimensão daquilo que vai ser medido. Ou seja: “Se eu quiser medir átomos, terei que encontrar algo da dimensão do átomo, portanto usamos feixes de partículas para medir a presença dos átomos e da sua distribuição no interior dos materiais”, exemplifica. E para que serve então o acelerador? “Para conseguirmos trabalhar com os potenciais elétricos necessários para fazer a aceleração das partículas, não conseguimos atingir esses valores no meio ambiente, na atmosfera ambiente”. Ao transferir parte da energia dos nossos feixes para os átomos do material que está a ser analisado, projeta-se as partículas dos átomos para níveis de energia mais elevada, antes de voltarem novamente ao estado fundamental, de mínima energia. Após a passagem do estado excitado ao estado fundamental desses átomos, é emitido excesso de energia que adquiriram sob a forma de radiação. É essa radiação que é medida, quase como um raio-x. “É como se fosse o bilhete de identidade dos vários elementos químicos que existem na minha amostra”, explica-nos.

“No fundo, o que estamos aqui a ver é um brinquedo quando comparado com o que as pessoas ouvem falar em termos do CERN [do LHC – Large Hadron Collider, o maior acelerador de partículas do mundo, no Laboratório Europeu de Física de Partículas (CERN), na Suiça]. A única diferença está na dimensão e na energia. Mas os princípios físicos básicos são os mesmos”, explica o investigador.
Este pequeno acelerador tem um potencial de investigação em áreas tão distintas como a deteção da autenticidade de obras de arte e metais preciosos, o estudo dos materiais utilizados na eletrónica, assim como no diagnóstico e tratamento de doenças.
Com mais de cinquenta anos de vida, o acelerador é testemunho das técnicas da física capazes de nos levarem até à origem do planeta. “Se quisermos ir até há milhões de anos atrás, temos que utilizar isótopos radioativos, e é a partir da variação da concentração desses isótopos ao longo do tempo que nós conseguimos fazer a datação dos objetos arqueológicos. Por isso é que sabemos que o nosso planeta tem não sei quantos milhões de anos”, explica Eduardo Alves.

 

Conteúdo complementar: Duas histórias contadas por Eduardo Alves

Um: As moedas do tempo de D. Afonso Henriques
«Na Casa da Moeda existe aquilo que é suposto ser a primeira moeda cunhada no Reinado de D. Afonso Henriques, ou do filho, não se sabe bem, em ouro. Posteriormente, há 30 anos talvez, apareceram no mercado de colecionadores mais duas moedas dessas. Obviamente que se colocava logo a questão da autenticidade ou não dessas moedas. Se fossemos os donos das moedas, não íamos autorizar ninguém a descascar um bocadinho a moeda e ver se era mesmo ouro ou não era, se era falso ou não. Portanto, as técnicas de que estou a falar permitem obter informação sobre a composição dessas moedas sem as danificar absolutamente em nada, mantendo intacto todo o seu valor, e verificar se realmente eram verdadeiras ou não. ».
Saldo: só uma delas era verdadeira.

Dois: Os brincos de prata transformados em platina
«Antes da pandemia era normal, no fim do terceiro período do Liceu, os alunos virem aqui fazer visitas ao campus, ver os vários equipamentos, o reactor, o acelerador, etc. E numa dessas visitas o trabalho que estava a ser realizado com os aceleradores envolvia a utilização do feixe externo, ou seja, fazermos passar o feixe através de uma janela para exterior. E podemos por lá amostras de qualquer forma, tipo, etc, que podem ser analisadas. E uma colega perguntou aos alunos se tinham algum objeto que quisessem saber de que era feito. Houve uma aluna que se ofereceu logo, disse que tinha uns brincos que a avó lhe tinha dado, que eram de prata e que gostaria de saber se era verdade ou não. Um investigador lá colocou o brinco em frente às partículas do feixe e… começou a ficar muito sério: ele verificou, de acordo com resultado de “raio x”, que estava a medir, que aquele brinco era praticamente platina pura e não de prata. A estudante entrou aqui com um par de brincos de prata e saiu daqui com brincos de platina, ganhou o dia como se costuma dizer».

 

Episódio 28 – Os Dentes de Mastodontes

sexta, janeiro 7th, 2022

Não muito longe do campus da Alameda do Técnico foram encontrados “dentes muito grandes” de antepassados de mastodontes, com cerca de 20 milhões de anos, época em que estes ancestrais dos elefantes viviam junto às margens do rio Tejo. Estão atualmente no Museu Décio Thadeu, do Técnico, dirigido por Manuel Francisco, que lhes atribui “um significado particular”: mostram que existiram aqui, no exato local onde milhares de alunos se formam, elefantes durante muitos milhões de anos.
A zona envolvente do Técnico, em particular o Areeiro, é de resto umas das zonas mais ricas em fósseis do período miocénico [de entre há 24 milhões de anos até há 5 milhões de anos atrás], de animais como elefantes, rinocerontes, hipopótamos, entre outros. “O Areeiro era uma zona que tinha muitas areias, que eram usadas para indústrias, e que eram removidas à mão. Quando os trabalhadores escavavam à mão era mais fácil encontrar dentes e ossos desses animais”, explica Simão Mateus, paleontólogo do Dino Parque da Lourinhã, que também estudou parte do acervo dos Museus do Técnico durante a sua tese de doutoramento.
Para além dos mastodontes desse período, podemos imaginar em Portugal uma verdadeira savana e animais como hienas, hipopótamos, girafas e castores a percorrer o seu caminho entre vegetação extremamente alta, com quase dois metros de altura, no período pré-idade do gelo. “Uma das coisas que conseguimos perceber é a dimensão e a diversidade da fauna pré-idade do gelo, muito parecida com a fauna [atual] de África”, explica Simão Mateus. Entrando na idade do gelo, começam a aparecer na região animais mais parecidos com rinocerontes lanudos e mamutes. “O Areeiro já não é das zonas fossilíferas porque começaram a construir em cima. Uma das questões para se descobrir fósseis é não haver construções”, complementa.

Voltando aos dentes de mastodontes: estes elefantes “lisboetas, alfacinhas e ribajetanos viviam num ambiente mais quente, em meandros fluviais onde havia ervas altas, a savana tinha-se desenvolvido há pouco tempo (para aí uns dez milhões de anos)”. Havia uma grande variedade de elefantes, que se tinham diversificado “em formas muito estranhas”, rinocerontes com chifres bastante diferentes dos que temos atualmente, alguns com chifres de mais de um metro. “Por outro lado, tínhamos animais que vieram a dar origem aos cavalos, com três dedos e do tamanho de gatos, que eram os cavalos da altura. Havia também os tigres dentes de sabre, que comiam estes cavalos, os castores e os esquilos. Tínhamos também coisas mais estranhas como tubarões entrarem pela bacia do tejo e sado com toda a facilidade”, descreve Simão Mateus. Seres humanos ainda não.
Os dois tipos de elefantes que existem atualmente – o africano e o asiático – são uma simplificação da variedade que a família dos elefantes tinha anteriormente e que se manifestava também em Portugal. “Os elefantes não se extinguiram da Península Ibérica assim há tanto tempo. Acredita-se que há cerca de 2000 anos ainda existiam elefantes autóctones na Península Ibérica e na Europa, muito parecidos com os atuais Acredita-se que a extinção tenha sido devida a caça humana”, explica Simão Mateus.

A Colaboração entre o Museus de Geociências do Técnico e o Dino Parque da Lourinhã conhecerá novos capítulos no futuro. “No Técnico, acredite-se ou não, no Museu Décio Thadeu, estão fósseis de castores, tigres dentes de sabre, girafas, e tudo isso são fósseis extremamente importantes, principalmente porque são fósseis que estão no virar de uma extinção, em que a Península Ibérica está a perder qualidades de savana e daqui a pouco tempo vai começar a entrar na idade do gelo e toda a fauna se vai alterar”, explica Simão Mateus. Estudá-los pode ajudar a perceber como é que pequenas alterações de temperatura (aquecimento global e arrefecimento global) podem causar extinções em massa e como é que isso altera todo esse ecossistema, por exemplo. Simão Mateus acredita que esta colaboração pode ajudar “a dar a conhecer as riquezas do Museu, para que outros investigadores, mais peritos em cada um dos grupos de animais, possam investigar e estudar melhor a fauna miocénica de Portugal”. O desafio não se adivinha fácil: “No Técnico há muito trabalho ainda para se fazer, tem ótimos exemplares de animais que não estão muito bem estudados. O acervo do Técnico dava para uma vida inteira de trabalho para uma ou duas pessoas”.


Conteúdo complementar:

As caraterísticas dos elefantes, por Tiago Carrilho, biólogo no Jardim Zoológico de Lisboa

«Os elefantes têm várias características interessantes, uma delas é o facto de ser liderado pelas fêmeas. Estamos a falar de um grupo que é matriarcal. Quando estão no seu habitat natural, e também aqui no zoo, temos uma fêmea que controla todas as movimentações do grupo, enquanto os machos normalmente são solitários. Por isso é que aqui no zoo temos esta instalação das crias e das fêmeas mais jovens. E a outra instalação do macho.
Outra caraterística interessante dos elefantes é que são recordistas da quantidade de alimento que comem: podem chegar a comer 200 kg de matéria vegetal por dia. Aqui foi feita uma adaptação, porque não se movimentam tanto, ainda assim comem uns modestos 90kg de erva por dia.
Mesmo sendo herbívoros, o sistema digestivo dos elefantes não é muito eficaz. Têm que comer muito alimento para terem porte energético e nutritivo. Podem ao longo do ano comer 150 espécies de plantas diferentes.
A tromba dos elefantes – a junção do lábio superior e o nariz – é um órgão que tem 156 mil músculos. Há mais músculos naquela tromba toda do que os que temos no nosso corpo todo. Tem várias funções: uma como se fosse quase um braço humano; consegue agarrar em alimento, manusear objetos… também consegue cheirar, detetar pressão, temperatura, estamos a falar de um órgão que é absolutamente incrível se olharmos para a história da biodiversidade animal.
O elefante africano da savana é o maior mamífero africano e o maior mamífero terrestre. Pode chegar aos 6000 Kg. Temos três fêmeas e um macho no Zoo de Lisboa. A Matriarca é a Jane, que lidera o grupo. Há uma hierarquia incrível.
Podem chegar até aos 65 ou 70 anos e aqui no zoo temos duas juvenis de 15 a 20 anos e o macho a chegar aos 30/35 anos e a matriarca que deve ter um bocadinho mais, cerca de 40 anos.
Como é que sabem que a idade chegou ao fim?
Tem tudo a ver com a alimentação. Têm os molares fundidos e vão crescendo à medida que se vão desenvolvendo. Eles podem ter no fundo seis molares fundidos e bastante grandes. Estamos a falar de dentes que podem pesar cerca de 4kg. Estes molares vão sendo desgastados ao longo da sua vida, estamos a falar de um animal que come bastante alimento quando chega ali aos 60 ou 65 anos o molar está tão desgastado que o animal deixa de conseguir alimentar-se. É nesta altura que a sua saúde começa a deteriorar-se e eles têm a perceção que não têm uma durabilidade muito maior do que esta.
São muitos diferentes dos que viviam há muitos milhões de anos? A evolução foi drástica?
Há determinadas caraterísticas que, olhando para eles, conseguimos encontrar pontos em comum, por exemplo a tromba. Se pegarmos num animal como mamute, e no caso do pêlo, que vivia em zonas muito geladas, tinha que ter essa capacidade para sobreviver no frio, neste momento essa característica já não se verifica. No caso da tromba, tem uma estrutura que se manteve pelas funcionalidades e pela utilidade que tem».

Episódio 27 – O Autoclave de Charles Lepierre

sexta, dezembro 31st, 2021

Em 1911 chegava ao Técnico Charles Lepierre (1867-1945), investigador e professor de origem francesa que ficaria responsável pelo ensino da Química Tecnológica, da Análise Química e da Química Orgânica. Para além dos 26 anos de dedicação à Escola, trouxe também utensílios científicos que transformariam radicalmente o ensino no Técnico. Entre eles estava o autoclave, definido assim por Maria Cândida Vaz, professora e investigadora aposentada do Técnico: “um equipamento que usa água a determinadas temperaturas e pressão e que de certa maneira purifica o que nós queremos, desde preparação de meios para realizar testes microbiológicos, equipamentos que possam ser utilizados, inclusivamente em medicina, para descontaminar mesmo a roupa”.
O autoclave é, hoje em dia, um instrumento indispensável em todos os laboratórios de microbiologia, mas até ao final do século XIX a descontaminação e esterilização de elementos que intervêm nos trabalhos de microbiologia era ainda um grande problema por resolver. Louis Pasteur (1822-1895) confrontou-se com ele quando tentava produzir a vacina contra a raiva: não conseguia resultados porque todos os materiais com que manipulava os vários elementos da vacina estavam contaminados com bactérias na sua superfície e transmitiam-nas aos elementos da vacina que teriam que estar estéreis. É nesse contexto que surge a invenção de Charles Chamberland (1851-1908). Um instrumento com um princípio semelhante ao de uma panela de pressão que foi suficiente para salvar milhares de vidas (ler história do autoclave no documento extra).

Este autoclave do Técnico é considerado por Manuela Cadete, antiga funcionária no Laboratório de Análises do Instituto Superior Técnico, como um protótipo semelhante aos primeiros autoclaves desenvolvidos no mundo. “Depois houve uma grande evolução. Mas este foi o primeiro, de que eu tenha conhecimento. Mais tarde, venho eu própria a trabalhar com ele”, conta.
Este autoclave baseia-se num cilindro interno, que recebe água na parte inferior. É fechado hermeticamente, tem uma saída para a pressão e é aquecido a gás (os mais recentes passaram a ser elétricos) . “Este binómio pressão / temperatura fazia com que os elementos que estavam dentro desse cilindro fossem aquilo a que nós chamamos esterilizados: as tesouras, as pinças, os tubos e as placas de vidro que usamos”, explica. Consegue atingir os 121 graus centígrados e 1 bar de pressão. Essa combinação durante 15 a 30 minutos é o suficiente para eliminar as bactérias.

Este autoclave terá sido crucial para os trabalhos de Charles Lepierre (investigador que também dá o nome ao Liceu Francês de Lisboa – Lycée Français Charles Lepierre – Lisbonne), no início do século XX, em trabalhos relacionados com as águas minerais, mas voltou a ser fundamental para o Técnico já nos 80. “Eu entrei para o Técnico em 1972 e ainda o utilizei. Esteve parado muito tempo. Achava uma graça e um privilégio trabalhar com ele”,recorda Manuela Cadete. A maneira de trabalhar com o autoclave era quase “à moda de Pasteur”: por exemplo, um frasco de vidro que levava uma rolha antiga envolta em papal pardo, fechada com um cordel e com um laço, tudo feito à mão.
A existência deste autoclave no Técnico permitiu uma gigantesca evolução na microbiologia, uma área que na altura não era rotina no Técnico. “Permitiu-nos perceber que podíamos trabalhar em microbiologia com meios de cultura e que era uma área de trabalho que se estava a abrir. Se não tivéssemos aqui este autoclave – histórico, maravilhoso – nunca teríamos tido essa capacidade de perceber que era uma área em que podíamos avançar e explorar. Porque não tínhamos hipóteses de fazer nada em microbiologia sem o autoclave”, explica.
Os frutos desse crescimento da área científica: o Técnico e o seu Laboratório de Análises tornaram-se pioneiros em análises das águas para hemodiálises no país (“quando se está a pôr uma água na veia de um doente, ela não pode ter nada, nem bactérias, nada, zero, está vulnerável e pode ser sujeito a um febrão muito grande e uma grande infeção”), mas também de águas de consumo, de piscinas, residuais, entre outras.
O fim da segunda vida do autoclave chegaria no início dos anos 90, altura em que foi substituído por equipamentos mais modernos. “Fez-se uma aquisição quando notámos que haveria mercado de trabalho para rentabilizar aquele custo, porque crescemos muito em termos de trabalho de microbiologia”, conta.
E onde repousa ele agora? “Ainda está à vista, num laboratório de Química… e vaidoso, porque está muito bem conservado, está bonito. Olho-o como uma certa ternura”, confessa Manuela Cadete.

 

Conteúdo complementar: Uma história contada por Manuela Cadete
Análises de Água de Cabinda no pós-25 de abril

«Tínhamos uma colaboração com o Bispo da Diocese de Cabinda, no pós 25 de abril. Tinha a seu cargo muitas crianças órfãs, na sequência da Guerra. Tinham lá uma nascente, um pocinho, que era o que dava água às crianças. Ele tinha a noção que a água era um veículo que podia dar cabo da saúde das suas crianças. Telefonava-me e eu ensinava-o mais ou menos como fazer [para recolher e enviar a água para ser analisada no Técnico]: como desinfetar a boca do frasco, onde a colher, como desinfetar a torneira… Quando chegava uma amostra às 9h da noite ou coisa desse género, nós tínhamos que analisar imediatamente porque se não fizermos vamos alterar o resultado. É humano, é uma responsabilidade, temos que fazer.
A água estava sempre contaminada. Eu dizia-lhe como mais ou menos fazer. Despejar não sei quantos garrafões de lixívia lá para dentro para melhorar, etc. Foi uma colaboração de uma coisa muito má poder ficar menos má. As crianças foram posteriormente reconduzidas para famílias”.

 

Episódio 26 – A Revista Técnica

sexta, dezembro 24th, 2021

“Tenho saudades da responsabilidade de fazer sair um número todos os meses. Era muito motivador e gerava muita adrenalina porque as coisas não eram fáceis”. Estamos no período entre 1968 e 1972 através das palavras de Guilherme Arroz, professor aposentado do Técnico, que também foi redator, chefe de redação e diretor da revista Técnica durante o mesmo período. “Fazer sair a revista para rua e receber o primeiro pacote de revistas que vinha da tipografia. Folhear aquilo dava um gozo do caraças”, continua. Quando chegou à Técnica encontrou uma equipa de cinco estudantes do Técnico e dois funcionários, incluindo “o Sr. Rodrigues, o mais antigo, que eram a espinha dorsal do seu funcionamento e passavam o conhecimento de equipa em equipa”. Garantiam a continuidade do projeto, que via os estudantes do Técnico sempre a rodar, assim como geriam assinaturas, anúncios e ensinavam os novos membros a fazer revisões de provas, a identificar os autores com quem falar e como diversificar e encontrar equilíbrios entre as áreas científicas.
Estes quatro anos são uma das muitas fatias da história desta mítica revista dos alunos do Técnico, cuja publicação durou entre 1915 e 1998, primeiro sobre a chancela de “Técnica Industrial” (de 1915 a 1917, com publicação interrompida pela 1.º Guerra Mundial) e depois já como Técnica, a partir de 1925. Na Biblioteca do Técnico estão 498 números da revista, também disponibilizados online no site da Associação dos Estudantes do Técnico. No seu interior contam-se cerca de 2000 artigos escritos por engenheiros, arquitetos e doutores, incluindo dez assinados por Alfredo Bensaúde, fundador do Técnico, mais de 500 artigos escritos por professores maioritariamente do Técnico e cerca de 400 escritos por estudantes. “Isto dá credibilidade à revista. Temos aqui 498 números da revista que são riquíssimos do ponto de vista da história da Engenharia, do Ensino e do Instituto Superior Técnico”, resume Isabel Marcos, coordenadora da Biblioteca do Arquivo e Museus do Instituto Superior Técnico.

“No início, a revista era dos estudantes do Técnico e tinha muito de notícias sobre o Técnico, sobre o ensino, tinha muitos artigos de professores orientados para os estudantes. Ao longo do tempo começou a ter artigos de caráter mais científico, mais desligado do interesse imediato dos estudantes. Na altura em que entrei, esse já era o aspeto prioritário. Eram artigos, escritos por professores e engenheiros, muitas vezes do Técnico, que relatavam os seus trabalhos científicos e de engenharia”, recorda Guilherme Arroz.
As coleções da revista estão à guarda da Biblioteca do Técnico, que também faz a medição entre informação que está nos artigos e o público. Em curso está também um projeto de divulgação digital do conteúdo da revista. “Interessa-me que as pessoas rapidamente possam aceder a conteúdos. Se quiserem encontrar algo sobre a mecânica do solo, automaticamente saibam que vão encontrar artigos sobre isso neste, neste e neste número… Se quiserem artigos escritos por um professor, saibam imediatamente onde é que podem estar”, resume Isabel Marcos. A recuperação de todos os artigos, para indexação e classificação – “um trabalho megalómano” – está em curso e prevê-se que fique concluída até 2024. “A recuperação de todos os títulos e autores já está feita e agora queremos posteriormente a recuperação do conteúdo”, explica.
Enquanto isso acontece, os exemplares da revista repousam, com todas as “condições ambientais, também limpeza, de forma a preservar aquele espólio documental”, na cave do Pavilhão de Eletricidade, junto à Torre Norte do Técnico, que tem guardados cerca de 2500 títulos de publicações periódicas que foram adquiridas pelo Técnico ao longo dos anos.

A revista Técnica, como explica Guilherme Arroz, “nunca chegou a ter o caráter de uma revista científica clássica, mas em contrapartida também já não era uma revista dos estudantes do Técnico, era mais abrangente. Tinha pessoas que queriam dar a conhecer o seu trabalho em Portugal, ou por razões curriculares ou para divulgarem o seu trabalho”. Perante a evolução da investigação científica internacional e nacional, acabou por perder espaço e extinguir-se em 1998. “Hoje em dia o que importa às pessoas é publicar, publicar, publicar, em revistas que têm referees, que são citadas e isso contribuiu diretamente para o currículo deles. A Técnica não tinha essa característica e portanto a partir de certa altura começou a ter menos interesse e a perder público. E nós não soubemos dar a volta a isso, não soubemos reencaminhar a Técnica para uma coisa diferente”, resume. E que volta poderia ter-se dado? “Faltou uma reformulação estratégica, que tanto poderia ser para uma revista científica ou uma revista de divulgação científica, como existe noutros países, voltada para o público em geral. Não há uma revista em Portugal de divulgação, no meu ponto de vista a Técnico podia ter evoluído para isso”, complementa.
Em novembro de 2021, contudo, o nome da revista voltou a ser impresso numa capa. Em versão totalmente digital, foi editada por iniciativa da Associação dos Estudantes do Instituto Superior Técnico. Na receita da nova formulação encontramos “artigos mais curtos, escrita mais simples, a revista em si ser montada de forma mais apelativa, para os estudantes terem mais interesse e quererem ler e conhecer o que é feito no Técnico”, como resume Madalena Caldas, estudante de Engenharia Química no Técnico, e que conduziu o processo de regresso da revista. Para além da alegria de ter participado nessa recuperação da revista, Madalena lida também com a “responsabilidade de não querer desonrar o que aconteceu no passado”. E para o futuro da Técnica, Guilherme Arroz aponta, no mínimo, uma necessidade: “Esta revista merecia, pelo menos, uma tese de mestrado, porque reflete muito a história do país numa certa fase, sobretudo na fase inicial da revista”.

Conteúdo complementar: Duas histórias e meia contadas por Guilherme Arroz e meia por Isabel Marcos

UM: Como era publicado um artigo na Técnica entre 68 e 72
«Eu era o redator [da área] de Eletricidade, olhava para os artigos. Não havia referees para analisar os artigos, era muito analisado à base de quem era o autor, qual era a sua credibilidade, qual era a diversificação daquele artigo relativamente a artigos recentemente publicados. Muitas vezes pegávamos no artigo, íamos ter com um professor do Técnico e dizíamos ‘há aqui um artigo que foi publicado’. Nem todos os artigos da Técnica eram de professores do Técnico. Era uma revista onde, por exemplo, investigadores do Laboratório Nacional de Engenharia Civil publicavam muito. Porque a Técnica fornecia separatas dos artigos e o laboratório estava muito interessado nas separatas, que depois circulavam lá dentro
Olhávamos para os artigos com algum bom senso e alguma ingenuidade, levávamos a alguns professores quando tínhamos algumas dúvidas sobre aquilo e a partir daí o artigo era aceite. Ia para a tipografia, recebíamos as provas da tipografia, fazíamos uma revisão de provas e na segunda fase mandávamos para o autor corrigir, se houvesse alguma coisa a corrigir. Às vezes os autores tentavam, nessa fas,e modificar o artigo e aí havia uma guerrazinha: ‘isto custa muito dinheiro’.
Nós eramos estudantes, não eramos propriamente especialistas naquelas matérias, nenhum de nós tinha o curso. Olhávamos para os artigos e apreciávamos por aquilo que nos interessava, pelo autor, pela instituição do autor, mas no fundo no fundo não tínhamos um processo muito trabalho de selecionar os artigos»

Dois: A revista Técnica e as visitas da PIDE
«Na Revista Técnica, os únicos ecos [da Agitação Estudantil] refletia-se nas alturas em que não conseguíamos publicar porque a Associação estava fechada. Havia uns meses em que gente saltava, compensávamos os assinantes nos anos seguintes. No trabalho concreto da revista nunca houve a tendência, por exemplo, para aproveitar a revista para fazer divulgação política ou sobre o movimento estudantil. Havia outras revistas para isso na associação. A revista nisso foi sempre muito independente. Na altura em que se faziam os relatórios anuais da revista, eles refletiam muito o que se passava na altura. Desde 1926 que houve resistência ao Estado Novo e desde essa altura que isso se podia ler nas entrelinhas dos textos dos relatórios. Na parte final, de facto houve ali algum isolamento para proteger a revista. Não era claramente um órgão de agitação política nem de agitação sobre o movimento estudantil.
Quando a revista não era publicada, escrevíamos “Por motivos alheios à nossa vontade…” e as pessoas sabiam quais eram os motivos.
Quando vejo o depósito [da Biblioteca] lembra-me o trabalho que dava arrumar periodicamente de cada vez que havia uma invasão da PIDE. A PIDE enterava e desmontava aquilo tudo completamente, virava os ficheiros do avesso, tirava as revistas para ver se havia alguma coisa lá por trás. Levávamos para aí seis meses para pôr aquilo direito.»

Três: As fotografias de capa da revista Técnica
«Aquilo que foi fascinante para mim foram as fotografias. E foi a preocupação que as várias direções tiverem em que fotografia não fosse aleatória, teve sempre a identificação ao longo dos anos do que ela era. Ela foi tão importante que até deu origem a artigos, que até era ela nos sumários a primeira indicação que aparecia, era tão fascinante que tinha sempre explicações detalhadas, que não interessava ao comum mortal, mas tinha sempre explicações sobre determinado motor que servia para aquele fim. Uma legenda nunca é assim.
Porque a finalidade desta revista reflete aquilo que era o ideal do Alfredo Bensaúde, que era um método pedagógico muito virado para a experiência, muito experimentado pelos alunos, e de facto a fotografia de capa reflete isso mesmo – uma fotografia de uma barragem de uma ponte, a construção do hospital de santa maria, a construção da ponte 25 de Abril, os silos, objetos – é fascinante». (Isabel Marcos)
«A fotografia era importante. Ou mais exatamente a capa era importante. Porque às vezes não eram fotografias, eram desenhos. Começaram a ser feitas simulações em computadores, gráficos obtidos por letras impressas numa folha grande por exemplo. Os gráficos demonstravam os avanços tecnológicos. Nas fotografias de capa da Técnico está a história da Engenharia Portuguesa. E a possibilidade de ir pesquisar e ver a importância que o Técnico teve no desenvolvimento industrial do país durante a maior parte do século XX» (Guilherme Arroz).

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Episódio 25 – A “Exaltação dos ritmos dominantes das origens”

sexta, dezembro 17th, 2021

Do caos para um cosmos. Uma escultura absolutamente dinâmica. Varrimento energético por manchas muitos informes que nascem do acaso da matéria. São muitas as tentativas de descrever a profundidade da “Exaltação dos ritmos dominantes das origens”, o elemento escultórico assinado por Lagoa Henriques, Mestre escultor (1923-2009), e que se encontra na parede exterior à entrada do edifício do Complexo Interdisciplinar do Instituto Superior Técnico, no campus da Alameda. Disponível aos olhos do público desde 1973, data em que obras de ampliação do Complexo foram concluídas, a escultura procura sintetizar a investigação que era efetuada no edifício. A ponte entre a ciência e o artista foi feita por Jorge Calado (atual Professor Emérito do Técnico) como nos conta Hermínio Diogo, professor no Departamento de Química do Técnico: “A primeira pergunta que ele [Lagoa Henriques] lhe [a Jorge Calado] faz é: o que se faz aqui neste edifício? Ele explicou-lhe que é um edifício de investigação, onde se tenta coordenar e estruturar a matéria que está muito dispersa… O elemento escultórico nasce a partir daí. Se repararmos, de um lado temos uma forma um bocadinho aleatória e do outro temos umas formas geométricas já muito bem definidas. É no fundo a passagem do caos para o elemento já mais elaborado”. O conceito artístico é também resumido assim por Maria João Gamito, professora na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa: “É esse varrimento energético por manchas muito informes, elas próprias nascem do acaso da matéria. Não há moldes que as enformem. Elas são fundidas diretamente na areia, ganham os caprichos da própria forma”. Algumas dessas formas terão sequência em obras posteriores do artista, como no monumento a Antero de Quental que está no jardim do Príncipe Real (Lisboa), onde “aquela bruteza da pedra convive com a pureza dos arcos que a atravessam”.

O artista, também conhecido por ser autor estátua de Fernando Pessoa no Chiado (Lisboa), foi também, nas palavras de Maria João Gamito, o “melhor professor do mundo”, capaz de prestar atenção e fazer ligações entre tudo, sem nenhum tipo de hierarquia. Exemplo: “Ele punha no mesmo plano, criava pontos de contacto, entre um barrista alentejano e o Fernando Pessoa. Tinha esse amor às coisas, essa capacidade de se entusiasmar e apaixonar por elas”. Lagoa Henriques foi ainda o “responsável pela grande reforma do ensino do desenho em Portugal”.

A “Exaltação dos ritmos dominantes das origens” terá chegado ao Técnico na sequência de um convite feito ao artista pela Comissão da Direção Geral dos Monumentos e Edifícios Nacionais, após visita ao seu atelier. Na verdade, não chegou propriamente ao Técnico porque, como nos explica Hermínio Diogo, o edifício do Complexo Interdisciplinar não pertencia à Instituição, mesmo estando dentro do campus. O que conhecemos hoje em dia é uma ampliação conseguida por Abreu Faro, primeiro professor catedrático da Escola na área de telecomunicações (1923-1999), iniciada em 1969 e concluída em 1973. O edifício original foi inaugurado em 1964 e pertencia ao “Laboratório Calouste Gulbenkian de Espectrometria de Massa”, que albergava alguns dos centros de estudo da energia nuclear que começavam a surgir em Portugal. Tinha 600m2, que aumentou para os 6000m2 após a ampliação. A obra de Lagoa Henriques e o edifício – inicialmente pintado de cor rosada que o tornou conhecido carinhosamente no Técnico como o “Moulin Rouge” – haviam de se tornar oficialmente parte do Instituto Superior Técnico em 1995. Quanto à história da inauguração do edifício e da escultura, conta-se em duas palavras: nunca aconteceu.

Episódio 24 – A Máquina de Autómatos Celulares

sexta, dezembro 10th, 2021

Construído em meados dos anos 80, o protótipo de autómato celular do Técnico era capaz de fazer 15 milhões de operações por segundo. Deve a sua conceção às ideias avançadas 30 anos antes por John von Neumann, e o seu conceito assentava na criação de objetos com modelos matemáticos capazes de imitar o funcionamento de sistemas da vida. O desafio, tal como os sistemas vivos, é complexo e pode ser representado por um desenho de MC Escher, que mostra uma mão a desenhar-se a si mesma. “O conceito de autómato era essencialmente um modelo matemático em que nós introduzíssemos numa máquina e que a máquina fosse capaz de o alterar sem intervenção exterior”, explica Rui Dilão, professor de Física, Matemática e Sistemas Dinâmicas no Instituto Superior Técnico.
Estamos a falar de máquinas de computação paralela, que apenas começaram a ser desenvolvidas a partir dos anos 80, que integram calculadoras que trabalham colaborativamente e interagem umas com as outras de forma extremamente rápida. O grande objetivo passa por conseguir calcular sistemas muito complexos em tempo útil. “Do ponto de vista matemático, é sempre a mesma história: tentar simular sistemas muito complexos, com muitos agentes a interagir, a terem interações estranhas, complexas”, resume. O autómato celular implementa a distribuição espacial de uma ou mais variáveis e calcula tudo em tempo real, simultaneamente, fazendo esse cálculo paralelo. Calcula tudo simultaneamente em todos os pontos do espaço, através de algoritmos matemáticos extremamente precisos.

O protótipo de cálculo paralelo construído integralmente no Técnico em 1985 – a CAM1 – ainda tem à mostra todas os circuitos eletrónicos, as memórias e a sua estrutura, apenas protegidos por uma cama de acrílico. “Os protótipos de engenharia são assim. É tudo desenhado, construído e depois se funcionar, conforme a tecnologia, implementa-se em tecnologias mais eficientes, mas a primeira fase é feita assim”, explica Rui Dilão. “O que nós fizemos foi construir um sistema – feito à mão – utilizando com transístores muito grandes, repetindo uma estrutura muitas vezes, ligar tudo eletricamente e desenvolver técnicas de interagir com a máquina e fazer com que aquilo tudo trabalhe ao mesmo tempo”, descreve.
A máquina tem um movimento autónomo, comandada por um computador normal que se liga a uma interface que é controlado pelos investigadores (no caso, um Sinclair, da bem conhecida segunda geração do Spectrum). “Nós interagimos com ela colocando as condições iniciais e ela depois calcula tudo e tem um display independente e autónomo. São monitores muito elementares, não tem nada a ver com o que se faz hoje”.

A máquina permitiu, por exemplo, analisar a evolução do escoamento ao longo do estuário do Tejo, com as fontes de poluição, calculando tudo em tempo real e instantaneamente: o efeito de 6 horas de maré é calculado no autómato em poucos segundos. Mas também deu origem a colaborações com o Departamento de Defesa Nacional (protegidas pelo dever de confidencialidade), que financiou a construção de uma segunda máquina e também uma infraestrutura de informática para o Departamento de Física do Técnico.
Demorou cerca de um ano a ser construída e “funcionou à primeira”, porque as técnicas de construção da altura faziam com que se fosse testando os vários módulos à medida que se avançava na construção. “Essa máquina gerou muito dinheiro e muitos alunos tiveram os seus primeiros treinos em computação”, recorda Rui Dilão.

Este tipo de máquinas começou a ser desenvolvido a partir dos anos 80, também no Técnico. Em 1985 foi organizado na Escola um workshop com convidados internacionais de renome ligados a projetos que deram origem aos hoje chamados supercomputadores e computadores paralelos. A máquina do Técnico ainda hoje funciona, de forma algo surpreendente até para quem a construiu – “não está muito protegido, entra pó, provavelmente as soldaduras não são muito resistentes, isto foi feito à mão” – embora a sua atualidade tenha sido ultrapassada pelo grande desenvolvimento tecnológico que ocorreu nos anos 90. No entanto, a sua filosofia e parte da sua arquitetura encontram-se hoje espelhados nas chamadas “connection machines” e nos supercomputadores. E o caminho a percorrer neste campo de investigação ainda é longo e desafiante: “Ainda estamos muito longe da mão a desenhar-se a si mesma. Precisamos de mais resultados da biologia e da interação com a física e a matemática ”, resume Rui Dilão.

 

Conteúdo complementar: Uma história contada por Rui Dilão
Colaboração na matemática: Do cálculo da previsão de eclipses no século XIX ao lançamento de foguetões

«Muitas vezes há cálculos que têm que se fazer e que demoram muito tempo a fazer-se. Por exemplo: os cálculos de previsão de eclipses nos gabinetes de previsão atmosférica… Como é que isso se fazia no século XIX? Punham uma pessoa numa secretária a fazer contas? Não, não funcionava. Qualquer pessoa, mesmo um matemático ultra treinado, faz erros quando faz contas e se fizer contas e tiver que as repetir, faz muitos erros.
Planeava-se fazer umas contas para prever eclipses. Enchia-se uma anfiteatro de pessoas e depois dizia-se ’cada pessoa faz uma tarefa muito simples, cinco pessoas calculam o logaritmo 25, calculado à mão, outras pessoas vão calcular não sei quantas multiplicações, e dava-se às pessoas uns cartõezinhos… Havia uma pessoa, o maestro digamos assim, e os cálculos eram executados de maneira sequencial. E essas pessoas tinham os cartões, o cálculo era terminado, levantavam uma bandeira e todas as pessoas que tinham essa bandeira com o cálculo 1 verificavam se o cálculo era o mesmo. Se fosse o mesmo, as mesmas pessoas que estavam a fazer o cálculo 2, olhavam para o resultado do cálculo 1 e começavam os cálculos deles. Quando levantavam a bandeira, viam se estava tudo certo, se não estivesse certo tinham que repetir, e isto era um processo colaborativo.
Hoje, quando lançam um foguetão, os foguetões levam computadores a bordo, grande parte da missão é gerada por computador, vão três computadores a bordo e todos trabalham independentemente. Toda a decisão que é feita pela eletrónica só é tomada se os resultados dos três computadores que estão a fazer a mesma coisa ao mesmo tempo forem coincidentes. E depois há mecanismos, quando os resultados são diferentes, obrigam o sistema a recalcular. Portanto, a colaboração é o segredo de tudo».

 

 

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Episódio 23: A Estátua da Engenharia

sexta, dezembro 3rd, 2021

Junto à Torre Norte do campus Alameda do Técnico, ergue-se bem alta a estátua conhecida como a “Estátua de Engenharia”, que permaneceu durante décadas com origem e autor desconhecidos na literatura disponível ao público. Fernando António Baptista Pereira, professor, historiador, museólogo e Presidente da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa não teve, contudo, dúvidas quando a viu pela primeira vez: “Quando olhei para a parte posterior da escultura, eu não tive qualquer dúvida: é [Salvador] Barata Feyo. Isto é como se fosse uma assinatura. Quando analisamos uma obra de arte de um grande artista vamos procurar os traços invariantes da sua obra, que passam de umas para as outras e que caracterizam o estilo desse mestre”, explica. Baptista Pereira faz mesmo uma proposta de texto para placa identificativa para que a estátua não caia no esquecimento: ‘Salvador Barata Feyo, Alegoria à Engenharia, 1947’. E depois, se quiserem pôr uma frase: ‘Obra colocada no Instituto Superior Técnico por ocasião da Exposição “Quinze Anos de Obras Públicas” realizada em 1948’.
Baptista Pereira estudou a fundo a estátua e seus detalhes, a convite do “110 Histórias, 110 objetos” e ajudou-nos a iluminar as muitas dúvidas que rodeavam a única escultura em espaço público do Técnico, no topo da Alameda da entrada Norte, olhando para o Pavilhão Central. “É uma mulher, porque na tradição clássica, as alegorias são sempre representadas por figuras femininas, uma mulher que ostenta na mão direita os símbolos históricos da engenharia (um compasso e um esquadro) e na mão esquerda está uma espécie de papel de desenho de projeto, em que se vêm um grande viaduto e depois ficamos perceber que esse desenho está representado aos pés da estátua através de uma secção da maquete desse grande viaduto. E essa secção é o seu pilar, neste caso o pilar oriental da famosa secção central do viaduto Duarte Pacheco, que liga a cidade de Lisboa ao monte de Monsanto”.

A estátua, criada em plenos anos de ouro da estatuária pública portuguesa (anos 30 e 40), revela já alguns detalhes do modernismo de Barata Feyo, que o autor aprofundará em obras posteriores. “Nesta escultura, quando rodeamos e vamos ver o seu manto, que está na parte posterior de uma forma muito clara, e ele representa aí todo o ziguezagueado geométrico, assim como os folhos da túnica da figura feminina também geometrizadamente tratados”, descreve Baptista Pereira. “Nos anos 50, nas quatro esculturas da fachada da Faculdade de Letras de Coimbra, que representam a História, a Eloquência, a Filosofia e a Poesia, têm um tratamento que lembra esta. Isso vai voltar também a acontecer no seu grande projeto de monumento ao Infante Dom Henrique e na Estátua dedicada a Almeida Garret, que está em frente à Câmara Municipal do Porto, onde toda esta geometrização atinge o auge”, complementa.
A Estátua da Engenharia chegou então ao Técnico em 1948, por ocasião da Exposição “Quinze anos de Obras Públicas”, que a instituição albergou, e que pretendia propagandear as obras realizadas até então pelo Estado Novo. “O Regime pretendia mostrar a obra de renovação do país que assentava em dois grandes pilares: numa nova conceção da Engenharia, que estava agora a sair daqui desta mesma escola, e de uma nova conceção de Arquitetura que estava a acompanhar essa evolução do ensino da Engenharia e da capacidade sobretudo da Engenharia Civil estar a transformar o país”, resume Baptista Pereira.

Em 1948, o Técnico enchia-se de pavilhões e preenchia os seus edifícios com maquetes e fotografias de edifícios. A Alameda do Técnico foi inundada por estátuas, muitas delas bem conhecidas do público e que entretanto se espalharam pela cidade e pelo país. Duas delas, também de Barata Feyo, estão na Avenida da Liberdade, e representam as figuras de Almeida Garret e Alexandre Herculano. Também do mesmo autor, e depois de passar pelo Técnico, é a estátua de Antero de Quental, situada no Jardim da Estrela. Em frente à “Estátua da Engenharia”, durante a exposição, estava uma muito especial: a sua “irmã afastada”, a alegoria da Arquitetura, da autoria de Álvaro de Brée, esculpida em granito. “A da Arquitetura foi um mistério. Demorou-me algum tempo a descobrir”, conta Baptista Pereira. Mas já tem placa, não precisa de proposta de texto para a mesma, e encontra-se assinalada nos roteiros da escultura pública do Porto. Está no Jardim da Faculdade de Belas Artes do Porto, e segura nas mãos os símbolos da Arquitetura, que não são muito diferentes dos da engenharia.

 

Episódio 22: O “Solidariedade Estudantil”

sexta, novembro 26th, 2021

Na manhã de 26 de novembro de 1967, Portugal acordava com um rastro de lama e destruição, depois de intensas horas de chuva, em particular na zona da Grande Lisboa. As Cheias de 1967 perfilavam-se como um dos maiores desastres em Portugal depois do Terramoto de 1755 e punham a nu muitas das fragilidades de um país ainda enclausurado no regime salazarista. 462 mortos na contagem oficial do regime, que cedo suspendeu a contagem. Pelo menos 700 de acordo com alguns historiadores. Como reação à tragédia, e estimulados pela Juventude Católica Portuguesa (JUC), os estudantes do Técnico responderam ao desafio lançado pela Associação dos Estudantes do Técnico, lançaram-se numa memorável campanha de solidariedade e apoio à população, em particular na zona da Vala do Carregado.
A força estudantil, traduzida num apoio a tarefas como limpeza de casa, distribuição de alimentação, transporte de pessoas que precisavam de assistência médica e até de vacinação, ganhou também expressão na frente da informação. Perante um cenário de grande controlo do regime, o boletim “Solidariedade Estudantil”, distribuído pelo Técnico com uma tiragem que atingia os 10000 exemplares e escrito por estudantes que participavam no processo de voluntariado, era dos poucos que escapava à censura do Estado Novo.
“Poder ler uma imprensa livre, para quem tinha a consciência que a imprensa que existia no país sofria os efeitos da censura, cria uma relação de quem lê com o que está escrito completamente diferente. Dizem outras coisas, de outra maneira, falam de uma maneira nova e o Técnico – A Associação dos Estudantes do Técnico – tinha muita preocupação em distribuir a sua informação e fazer grandes tiragens para difundir, para mostrar o que é que os estudantes estavam a fazer. Nas suas publicações escreviam e punham notícias sobre greves (clandestinas, porque não havia o direito à grave), ou movimentações. Havia uma relação entre os estudantes e a sociedade e que esses órgãos de imprensa as diziam porque não estavam sujeitos à censura”. O contexto é feito por Luísa Tiago de Oliveira, do Departamento de História do ISCTE, que estudou o ativismo estudantil do Técnico entre 1945 e 1980.
Da escrita do boletim, que durou menos de um ano, surgem nomes como os de Diana Andringa, que viria a trocar o curso de medicina pelo jornalismo, Jorge Simões e João Crisóstomo. “Eles faziam o relato de tudo o que se tinha passado durante as cheias”, recorda José Pires Brazão, antigo estudante do Técnico e membro da Associação dos Estudantes na época. “Marcou uma época. Havia jornais estrangeiros que citavam o Solidariedade Estudantil”, recorda.

“Como se sabia que havia muita gente morta em Quintas, toda a gente queria ir para lá. Mas o Presidente da Câmara dessa altura de Vila Franca de Xira disse que não valia a pena, não havia lá nada a fazer, ou muito pouco”. Sugeriu a Vala do Carregado, uma região altamente sinistrada, que estava sem resposta. “Quando lá chegámos aquilo era um horror, casas destruídas, tudo inundado. E então eu estive aí três dias e quase noites”, recorda José Brazão, cuja foto também surge nas páginas do Solidariedade Estudantil a carregar uma mulher idosa.
Os estudantes chegaram em autocarros alugados pela Associação do Técnico, que usavam também para distribuir comida. A PIDE estava por todo o lado mas pouco ou nada o regime poderia fazer. “Eles tinham os bombeiros, que não estavam preparados para uma desgraça com tal dimensão, e eu acho que eles foram apanhados de surpresa. Nunca pensaram que os estudantes de Lisboa iniciassem o apoio às vítimas das cheias. E pensavam que aquilo seria algo que eles poderiam controlar, à força se fosse necessário ou pensavam que os estudantes se iam cansar e não prosseguir esta atividade. Portanto, eles deixaram-nos entrar. Acho que isso foi o grande erro deles”, aponta. O cenário que encontraram: As casas todas inundadas, camas destruídas, idosos com água até ao joelho; a chuva tinha sido de tal forma forte que “limpou tudo”, um metro e meio de lama, lama por todo o lado. Na Vala do Carregado não havia vítimas mortais, mas o volume de pessoas em situações médicas graves era significativo e a destruição estava por todo o lado. “Era preciso ajudar aquela gente, e limpar. E fomos buscar pás, com os poucos instrumentos que havia. Depois os agricultores emprestavam-nos as enxadas e as pás e os baldes para tirar aquela lama toda. Limpar as casas, limpar as ruas, ajudar as pessoas a lavar os pratos, a lavar as camas, a por as camas fora para secarem, porque aquilo era uma miséria completa. Ali vivia-se muito mal. Eram situações de urbanismo sem a mais pequena planificação. Muita gente vivia em estilo bairro de lata”, descreve. “As pessoas estavam tristes e desesperadas, não sabiam o que fazer. Havia gente que não comia há dois dias”. Os estudantes do Técnico, de resto, assumiram a logística no apoio aos sinistrados na Vala do Carregado. “Nós fechámos a entrada da Vala do Carregado. Havia dois estudantes que controlavam as saídas e entradas. No Governo salazarista, controlávamos a entrada com um cordel”, recorda.

As cheias representaram também, na opinião de Luísa Tiago de Oliveira, uma viragem na atenção que os movimentos estudantis davam ao país. Passou a prestar-se atenção ao “Portugal da lama, o Portugal do lixo, o Portugal da pobreza, o Portugal da miséria”. “Nessa altura, origem dos estudantes era das classes alta ou média-alta e, portanto, muita gente não conhecia a realidade popular de então. Se antes havia muitas reivindicações que podiam ser sobre alimentação, cantina, liberdade na associação ou o direito a celebrar o dia dos estudantes, as reivindicações tornam-se mais sociais em termos gerais e politicamente mais interventivos pondo em causa o sistema depois de 1967. Ficou uma politização muito maior, uma abertura para a sociedade e um interesse maior nas ciências sociais. E uma maior frontalidade à crítica à guerra colonial”, defende. “Eu acho que, até às cheias, o Governo não tinha receio nenhum das universidades em Lisboa. As cheias são o momento determinante que faz dar o salto para outras atividades”, concorda José Brazão. “Quando terminámos o trabalho na Vala do Carregado, fomos convidados a beber com a população. Ainda me lembro de irem abrir o barril de uma aguardente velha e deram o copo a cada um de nós que lá estava. As pessoas gostaram do papel dos estudantes. Toda a gente queria ir para a Vala do Carregado. Fizemos campanhas de vacinação. Consultas médicas para pessoas que estavam doentes. A Faculdade de Medicina mandou para lá jovens médicos e finalistas de medicina. Juntou-se ali uma série de pessoas que mais tarde evoluem. Aí dá-se o salto qualitativo do movimento estudantil para aquilo que foi até 1974”, complementa.

Conteúdo complementar: Três histórias contadas por José Brazão

Um. De Alves Redol a Zeca Afonso
«Havia aqui um estudante no Técnico que era o filho do escritor Alves Redol [António Mota Redol], que fazia coletas na Universidade entre os estudantes progressistas daquela altura para arranjar dinheiro para dar ao Zeca Afonso. Todos davam dinheiro, mas toda a gente tinha medo de o levar ao Zeca Afonso. Eu fui a pessoa que levava o dinheiro. E o que se passa é que, naquela altura, eu levava várias horas até chegar a casa do Zeca Afonso, porque ele vivia em Setúbal. Vivia miseravelmente, em depressão, sempre na cama, e eu levava-lhe o dinheiro para comer e viver. Demorava várias horas com medo de se ser seguido mas quando chegava à casa dele estava lá a PIDE a fotografar, portanto podia ter ido direto da minha casa para a casa dele.

Dois. Estudantes de Lisboa (com Zeca Afonso) tentam acabar com as praxes de Coimbra
«Naquela altura havia as praxes em Coimbra e nós aqui em Lisboa tínhamos uma aversão alérgica a tudo o que fosse praxe, capas e batinas. Então o Alves Redol, eu, o Jorge Simões e o Sacramento fomos a Coimbra tentar convencer a academia e o movimento estudantil a terminar com aquela aberração. Eles fizeram uma fogueira para assar castanhas e tinha-se que estar de gatas e pôr a mão, já não me lembro se era a esquerda ou a direita… havia todas as aquelas praxes… e nós levávamos o Zeca Afonso para cantar (era uma maneira dele sair de Setúbal). Lá o levamos para Coimbra e fomos fazer uma visita ao jardim da Sé. O Alves Redol pede-me: “ó zé vai la pedir ao Zeca para cantar aqui para a malta”. E eu fui falar com o Zeca e disse “Ó Zeca canta ali para a malta”. E ele respondeu: “Não posso, não posso, é que eu apaixonei-me aqui no jardim por uma mulher linda e se eu for cantar começo a chorar”. Ali nada se passou. Depois fomos para as Repúblicas, depois da nossa reunião que não deu em nada sobre a praxe, havia muito vinho e muita conversa… No regresso é quando começa o grande temporal das cheias. Já no autocarro se ouvia, através do rádio, que havia grandes cheias em Lisboa. No dia seguinte é a catástrofe”.

Três. Estudante de Lisboa insulta Ministro do Interior
“Naquela altura achávamos que estávamos ali quase numa ‘República Democrática da Vala do Carregado’. Quando aquilo [ação de auxílio] estava no auge, o Ministro do Interior, o Santos Júnior, e o general da Legião Portuguesa foram para a Vala do Carregado. Fui chamado pelo General da Legião Portuguesa. Estava ali uma Alta Autoridade que queria falar comigo. Estou a falar com ele e com vários estudantes à minha volta e ele diz-me que eu estava a fazer a ostentação da pobreza. Porque nós vínhamos com autocarros cheios de comida para distribuir às pessoas sinistradas. Não sei o que me deu. Eu disse ao Sr Ministro: “Não sei o que está a dizer. Não estamos a fazer a ostentação de pobreza nenhuma. Estamos a distribuir comida por pessoas que não comem há 3 ou 4 dias”. E diz-me o General da Legião Portuguesa: “o Sr. não pode falar dessa maneira com uma autoridade máxima, depois de sua excelência o primeiro ministro”. O que me deu na cabeça? Dou um passo atrás e digo: “Autoridade? Eu nem uma barata vejo, quanto mais autoridade”. E de repente há duas pessoas que me agarram, pegam em mim [e noutro estudante] põem-nos num Volkswagen azul. As duas pessoas do carro olham para trás e perguntam-nos: “Onde é que vocês querem ir?”. “Já agora, se não é muito trabalho, perto do Técnico”. Eram agentes do Partido Comunista que estavam lá. Estava lá tudo. A vala do carregado tornou-se num laboratório social. Riram-se e disseram: “Tenha cuidado para a próxima”. No dia seguinte já lá estava outra vez”.

Depois desta e outras ações, José Brazão começou a sentir-se perseguido a acabou por fugir para Holanda, onde adquiriu a cidadania holandesa e ficou a viver. “Vivia perto da Praça do Chile e quando saía daqui (do Técnico) era seguido pela PIDE. Disseram-me que muito provavelmente seria preso. Amigos. E eu planifiquei a minha saída, tive uma sorte fabulosa, calculei que o melhor seria não ir por Vilar Formoso. Havia um comboio que ia diretamente de Lisboa, passando por Elvas para Espanha. Disse ao meu pai que ia ver uma tourada em Espanha. E assim se arranjou o passaporte. Eu estava em Espanha quando a PIDE foi ao Bombarral para me prender. Os Holandeses deram-me asilo político”, conta. Voltou a Portugal em 1975, onde apenas passou a vir de férias. “Guardo o meu interesse por maneiras de resolver o sofrimento humano, ou de tentar. Profissionalmente passei a vida nisso. Fui trabalhar para as Nações Unidas, enviado pelo governo Holandês. [As cheias] foram fundamentais para o fortalecimento da minha personalidade. Deixei de estudar Química e fui estudar Sociologia”.

 

*  O arquivo histórico da AEIST encontra-se à guarda do Arquivo do Técnico (NArQ.)

  • Agradecimentos:
    Associação dos Estudantes do Instituto Superior Técnico
    José Pires Brazão
    Luísa Tiago de Oliveira

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