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Episódio 41 – Os Robots futebolistas

sexta, abril 8th, 2022

Um pequeno robot está em campo, faz uma rotação e visualiza a baliza. Não pode chutar porque ainda não tem a bola. Mas guarda a informação. Roda novamente para olhar à sua volta, desta vez encontra e alcança a bola e como se “lembra” onde viu a baliza, vira-se para o lado certo, remata e… está feito o primeiro golo de sempre dos robots do Técnico no Robocup! Estávamos em 1998 e o Técnico dava os primeiros passos nas competições internacionais que misturavam futebol e robótica. “Nessa altura os robots praticamente não se mexiam. Até “ver” onde estava a bola já era um sucesso, que é uma coisa que parece trivial. Jogava-se para o zero a zero”, recorda Pedro Lima, professor do Departamento de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores do Técnico e investigador no Instituto de Sistemas e Robótica (ISR). No seu gabinete, situado na Torre Norte do campus Alameda do Técnico, acumulam-se taças, cachecóis, bolas de futebol, artigos sobre a participação portuguesa nessas competições e muitas memórias de “cargas de ombros e caneladas” entre robots. 

Os robots futebolistas do Técnico, hoje representados por este exemplar que não foi desmantelado, foram dos primeiros do país a participar na Middle Size League, uma das categorias da RoboCup, competição internacional de robots. Trata-se de um computador com rodas e com sensores que pode ser visto nas vitrines da entrada principal do ISR, na Torre Norte. Com cerca de 80cm de altura e com cilindros de aproximadamente 40cm de diâmetro, é constituído por uma caixa, onde se situa uma motherboard, por rodas com motores e um dispositivo baseado nos motores de abrir as portas dos automóveis “comprado na Feira da Ladra ou coisa parecida” que estava ligado a um dispositivo de chuto. Tinha uma câmara que olhava para a frente (mais tarde foi introduzido um sistema de visão omnidirecional) e um algoritmo “extremamente simples” que ainda hoje “espanta como era tão eficaz”. “É um robot móvel que pela primeira vez nos permitiu integrar a visão, o controlo e o movimento, tudo numa máquina só”, recorda.

O Técnico entrou assim, desde muito cedo, neste evento (que é científico e não desportivo), atualmente um dos de maior dimensão na área da robótica. A iniciativa desafia os paradigmas da investigação na área, criando competições em torno de objetivos comuns. O RoboCup surgiu em 1997, por iniciativa de um grupo de investigadores japoneses, após os mediáticos jogos de xadrez entre o supercomputador Deep Blue e o campeão mundial de xadrez, Garry Kasparov. “Quiseram lançar um novo desafio para a Inteligência Artifical”, explica Pedro Lima. “A ideia era passar para outro desafio: um jogo dinâmico, em que a bola e os adversários vão mover-se para todo o lado, em que todos os aspetos que os robots têm que abordar, sobretudo a perceção, vão ser fundamentais”, complementa. Depois do xadrez virava-se a atenção para o futebol, uma modalidade capaz de atrair ainda mais pessoas. “Em 1998 metemo-nos numa carrinha e fomos até Paris, na altura com três robots”, recorda. Foi a primeira competição de sempre com participação de equipas portuguesas. Antes, em 1997, já tinha havido uma competição em Loures, apadrinhada por Mariano Gago, na altura Ministro da Ciência e Tecnologia. E em 2004 encheu-se um pavilhão inteiro da Feira Internacional de Lisboa (FIL) com centenas de robots e cerca de 4 mil participantes. 

Muito para além dos holofotes da competição, o RoboCup é também um laboratório vivo de investigação fundamental na área da robótica. “Muitas vezes a investigação aprofunda aspetos específicos, como a perceção, a navegação e o controlo”. Aqui o que tínhamos que aprofundar era a integração de todos estes temas: perceção, raciocínio, ação”, explica Pedro Lima. “O objetivo é resolver os vários problemas técnicos, tirando ilações para outros robots”, complementa. E têm saído da competição conhecimentos com aplicação em robots cruciais para operações de busca e salvamento (outra das vertentes do evento) em grandes tragédias ou mesmo para robots de transporte em armazéns de empresas de entregas. 

No Técnico, a participação no Robocup espelha a experiência na área de robots colaborativos, que junta investigadores das áreas da inteligência artificial e do controlo automático. “Fomos pioneiros em termos nacionais. Nem sabíamos que havia futebol robótico e a RoboCup”, recorda. A informação chegou através de Manuela Veloso, antiga aluna do Técnico e atualmente investigadora na Carnegie Mellon University, que deu uma palestra sobre a Robocup, em 1997, com a seguinte mensagem como complemento: “Vocês têm que ir ao próximo…”. E assim foi. Com o projeto surgiram também várias teses de mestrado e doutoramento feitas por alunos do Técnico (ver extras deste episódio).
Em 2013, o Técnico abandonou as competições de futebol no RoboCup, tendo continuado nas ligas de busca e salvamento e robots domésticos. Quanto à versão futebolística do RoboCup, o objetivo competitivo mantém-se intacto desde o início: “Que em 2050 uma equipa de robots seja capaz de derrotar o campeão humano da altura”. E Pedro Lima não arrisca prognósticos: “Por um lado espero não estar vivo em 2050 porque depois vão-me confrontar com o objetivo. Não ponho as mãos no fogo se vão ou não conseguir”. 


Histórias Extra

Um: Que tal o nível de competitividade dos nossos robots?
«Nós competitivamente… vamos ser francos: ficávamos a meio da tabela. Na competição francesa [o Técnico participou entre 1998 e 2000] houve uma vez que ganhámos e não merecíamos ganhar e outra que ficámos em segundo lugar e éramos de longe a melhor equipa.
O RoboCup era uma coisa muito mais complicada, muito mais competitiva, porque estavam ali as melhores universidades de todo o mundo.
Eu gostava de ter ganho alguma, claro. Mas o queria realmente com aquilo era desenvolver muito a nossa investigação, porque era muito motivador para os alunos, e tivemos vários alunos de mestrado e de doutoramento que fizeram case studies baseados no futebol robótico, ganhámos prestígio. Aliás, a nossa equipa mesmo não ficando em primeiro lugar nas competições, houve uma vez que ganhou na categoria “seleção”, que era um misto de resultados desportivos e do impacto científico. De facto, tínhamos impacto e isso era bom.
O que não nos corria tão bem era que fazíamos um investimento muito grande em procurar levar as últimas coisas que tínhamos feito em termos de impacto na investigação. E com o tempo aprendemos que isso não era uma boa solução. Um bocadinho como a NASA quando manda um voo para Marte, não manda a última tecnologia, manda a que já está mais estabelecida. Chegávamos lá e aquilo ainda não estava resiliente. Muitas vezes quando nos falhou, foi mais por isso do que os adversários explorarem uma fraqueza nossa. Mas os outros tinham o mesmo problema e nós desfrutávamos disso.
Na altura era tudo tão pioneiro que até coisas como os robots da própria equipa irem todos à bola ao mesmo tempo acontecia. Havia o guarda-redes que era um robot distinto e com comportamento distinto. Era um jogador muito interessante que explorámos em várias teses de mestrado de maneiras diferentes. Era muito rico tecnologicamente.
Entretanto mudou, passamos a ter comportamentos de defesa, comportamentos de atacante, a capacidade de mudarem dinamicamente de comportamento durante o jogo, ou seja, perante uma situação em que o atacante não esta a fazer grande coisa porque está bloqueado por algum motivo, desiste da bola vai para a defesa e há um defesa que se torna atacante…
É uma evolução muito grande. Não havia passes na Middle Size League, no início. Porque é difícil, é muito difícil. O robot que tem a bola tem que saber onde o outro está, tem que fazer um passe com precisão, tudo isso. Neste momento todo o jogo é feito de drible e passes, ou seja, os robots estão sempre com a bola. é tática pura. Inclusivamente já há jogadas de antecipação muito bonitas.»
Pedro Lima

 

Dois: Palmas para os robots e o sofrimento das grandes competições
«Sofria-se muito no RoboCup. E sofre-se de uma maneira muito engraçada se pensarmos que estão ali robots. Nós estamos ali aos gritos a dizer “chuta, chuta”. Depois ficamos a pensar: isto não vale absolutamente nada, obviamente.
Tínhamos tendência a atribuir personalidade a alguns robots da nossa equipa e das equipas dos outros. O comportamento que eles tinham no campo era diferente e nós já tínhamos uma ideia… eles tinham uma certa forma de atuar e nós atribuíamos-lhes personalidade.
Houve uma equipa iraniana que a certa altura ganhou uma Middle Size League com um robot que era razoavelmente simples, que resultava também de eles não terem muito dinheiro para ter a melhor tecnologia, o que irritava solenemente os outros que tinham muito mais investimento. Havia uma rivalidade entre eles e uma equipa italiana, uma equipa muito boa de várias Universidades…
Quando os iranianos estavam quase a marcar um golo, os humanos da equipa entusiasmavam-se e desatavam todos a bater palmas de uma maneira cadenciada – é um costume cultural deles – . E os italianos meteram na cabeça que os iranianos faziam aquilo porque os robots tinham microfone e que recebiam instruções para jogar de uma determinada maneira. E então começaram a dizer que aquilo não correspondia às regras e num dos jogos quando os iranianos tinham a bola eles começavam a bater palmas da mesma maneira para ver se eles faziam mal o que tinham que fazer. Uma coisa completamente ridícula. Mas estão a ver ao ponto que isto chegava. Misturava-se toda a racionalidade dos investigadores com a irracionalidade da bola.»
Pedro Lima

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Episódio 40 – O Retrato a Óleo de Alfredo Bensaude

sexta, abril 1st, 2022

É o retrato de “uma figura que sai da escuridão” para iluminar o ensino da engenharia em Portugal. “Não fazemos ideia se está de pé ou se está sentado. É a mágica do Alfredo Bensaude: não precisa de se colocar onde quer que seja para mostrar aquilo que é”. A descrição é de Ana Mafalda Cardeira, professora do ensino do 3.º ciclo e secundário e doutorada em Belas Artes, e refere-se ao retrato a óleo de Alfredo Bensaude (1856 – 1941), datado de 1924, atualmente na sala do presidente do Técnico, no campus Alameda, em Lisboa.
O retrato terá sido pintado por João Reis (1899 — 1982) – e não por Ricardo Bensaude como se acreditava até à elaboração deste episódio – no âmbito da sessão solene de homenagem a Alfredo Bensaude, o primeiro diretor do Técnico (entre 1911 e 1922). A homenagem surge a partir de uma encomenda do então Conselho Escolar do Técnico, feita em 1924, também o mesmo em que Alfredo Bensaude foi nomeado diretor honorário do Instituto Superior Técnico. O “formador, pedagogo, uma espécie de génio”, nas palavras de Ana Mafalda Cardeira, aparece no retrato sem qualquer tipo de adereços. “É um sentido que João Reis dá a esta pintura. Não há necessidade de aceitar elementos quando a figura está tão bem representada”. O retrato realça e ilumina a cabeça de Alfredo Bensaude, destacando assim as suas ideias, a sua mente. “Aqui está a poética do João Reis, que se vê muito bem nesse quadro”, defende.
Palmira Silva, docente no Departamento de Engenharia Química do Instituto Superior Técnico, foi responsável pela programação das comemorações do Centenário do Técnico, em 2011, sendo na altura membro do Conselho de Gestão (CG) da Escola. Viu o quadro pelas primeiras vezes em 2009, quando se sentava na mesa de reuniões da sala do Presidente. “No início o que tínhamos era só aquele quadro, aquela imagem daquele senhor de bigode e não sabíamos muito mais sobre ele. Depois foi-se tornando uma personagem absolutamente fascinante à medida que íamos descobrindo as caraterísticas e a forma fantástica como ele pensava”, recorda. O quadro de Alfredo Bensaude deu, de resto, o mote para o trabalho desenvolvido nas comemorações do centenário.

“O Técnico deve a Alfredo Bensaude ser a Escola de referência que é hoje porque foram essas as bases com que foi criada. Insistia, por exemplo, num ensino muito rigoroso da matemática, com bases muito fortes de física, tendo contratado docentes estrangeiros”, descreve. Uma das suas máximas – “uma escola de amadores não forma bons profissionais” – foi, de resto, adotada por gerações de alunos e professores do Técnico.
Bensaude deixou como uma das suas grandes heranças a proposta de reestruturação do ensino da engenharia em Portugal, apoiada na opinião dos alunos, aceite pelo governo republicano e que daria origem à criação do Técnico, em 1911. Os seus onze anos de diretor, após Doutoramento em Engenharia de Minas na Alemanha, foram ainda marcados pela procura de novas instalações para o Instituto Superior Técnico, mas viria a sair sem conseguir concretizar esse “sonho”. “Agora já não o vejo como um senhor de idade com um bigode. Quando olho para o quadro já vejo todas as fases do Bensaude e olho para ele de uma maneira completamente diferente”, acrescenta Palmira Silva. E não só vê tudo isso, como “ouve” instrumentos musicais. Explicando: Bensaude foi também um exímio construtor (amador) de violinos (ver episódio 1). Um deles foi recuperado pelo Técnico e outro emprestado pela família para a inauguração da exposição do Centenário do Técnico, que contou com um pequeno concerto com ambos os violinos no átrio do pavilhão Central do campus Alameda. “Quando olho para o retrato ouço os violinos”.

 

O retrato de Alfredo Saúde tem novo autor quase 100 anos depois
«Tínhamos a indicação de o retrato ter sido pintado por Ricardo Bensaude, que era um primo de Alfredo Bensaude. Mas quando olhei para a pintura, em termos plásticos, não fazia sentido. Temos uma pintura de cariz naturalista, clássico e, digamos assim, académico, que não corresponde à plástica de Ricardo Bensaude, que é uma plástica já moderna. Aumentando algumas zonas da pintura deparo-me com a assinatura do João Reis, filho de Carlos Reis, naturalista tal como o pai, que tenta dar continuidade…
É uma pintura muito interessante, comparando até com outras obras do João Reis e vendo até os outros retratos que há no Instituto, de facto é impressionante. As suas dimensões são confortáveis. Estamos ali num 1m de altura, ou se calhar até 80cm. Não é demasiado grande. O grande que sai das trevas para a luz é o Alfredo Bensaude e isso é que é muito interessante para essa altura.
João Reis foi um colega e muito amigo de Ricardo Bensaude, conviviam na Escola de Belas Artes. Pode ter sido uma indicação do próprio Alfredo Bensaude que tinha as recomendações do Ricardo Bensaude…
Nessa altura, a pintura portuguesa vivia num período de transição (um certo atraso de meio século face à Europa). A modernidade já tinha entrado completamente em Paris e cá ainda havia este atraso. Ainda uma prevalência do naturalismo. Havia essa resistência de gosto»
Ana Mafalda Cardeira

 

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Episódio 39 – A Régua de Cálculo

sexta, março 25th, 2022

A régua de cálculo assumiu-se como um instrumento indispensável para qualquer engenheiro até ao aparecimento das máquinas de calcular, nos anos 70, e teve como “ponto alto” a viagem à Lua, realizada em 1969. “Chegou à lua e voltou no bolso do Buzz Aldrin. Foi substituída pela máquina de calcular logo a seguir”, descreve Gabriel Pires, professor do Departamento de Matemática do Instituto Superior Técnico. Não estudou no tempo em que a régua de cálculo era essencial no dia-a-dia do Técnico, ao contrário de Moisés Piedade, professor aposentado do Técnico e fundador do Museu Faraday, que terminou o seu curso em 1971: “Os estudantes tinham uma certa avidez de usar a régua de cálculo. Sabíamos que era um instrumento fundamental da Engenharia. A primeira coisa que os estudantes faziam era comprar uma régua de cálculo, mesmo que não tivessem necessidade de a usar”, recorda.
Para a sua geração, a régua era incontornável para a resolução de problemas matemáticos e de engenharia. “Eram réguas de bolso que acompanhavam o estudante para onde ele fosse. O trabalho que nós tínhamos para fazer contas em tempo útil nos exames era uma coisa que os nossos estudantes nem sequer fazem ideia”, descreve. Falamos, claro, de réguas mais pequenas do que aquela que hoje está em exibição no Museu Faraday, no campus Alameda do Técnico. A Fabber-Castell exposta no Museu, com cerca de 1,8m por 70cm, era usada pelos Professores do Técnico como elemento de demonstração, durante as suas aulas nos anfiteatros do Pavilhão Central. “A régua descia, ficava em frente aos quadros pretos e o professor exemplificava a execução de contas usando a régua”, explica Moisés Piedade.

A génese das réguas de cálculo, sustentada na invenção dos logaritmos, remonta ao século XVII e o instrumento deu origem a uma verdadeira revolução na forma de multiplicar, em especial no cálculo das trajetórias astronómicas e de navegação. “Veio simplificar esta complicação da multiplicação. Algumas contas duravam anos a fazer”, sustenta Gabriel Pires. A régua de cálculo veio concretizar essa ideia “que existia desde a antiguidade de podermos simplificar a multiplicação recorrendo à soma” aplicando um “modelo de progressão aritmética lado a lado com progressão geométrica”, como explica o docente.
Uma régua de cálculo é, na definição doméstica de Moisés Piedade, uma “calculadora mecânica que permitia aos alunos fazer operações muito complexas, requeridas pelos cursos de engenharia aqui no Técnico”. A regra de cálculo do Técnico é já uma versão evoluída das originais, que incorpora 12 escalas de cada lado. “Nesta régua, a origem não começa com 0. Começa com 1 e vai até 10. E a distância nesta régua entre 1 e 2 é muito maior que a distância entre 2 e 3 e assim sucessivamente vai diminuindo. Isto é a estranheza desta régua assim num primeiro impacto. São os logaritmos que nos permitem fazer esta escala para que isto tudo funcione e que nos permitem fazer as contas rapidamente”, explica Anabela Teixeira, professora de Matemática da Escola Secundária Camões, em Lisboa.

O Técnico foi uma das muitas instituições de ensino ou investigação nacionais dotadas com réguas de cálculo nos anos 60. “Tarde demais para vingar”, como resume Anabela Teixeira. Mas a chegada da calculadora não foi suficiente para que se perdesse o fascínio por este instrumento capaz de fazer multiplicações complexas em poucos segundos. Anabela Teixeira, por exemplo, faz demonstrações e formações para os mais novos, em colaboração com o Museu Nacional de História Natural da Universidade de Lisboa: “Ando sempre com uma régua e sempre a treinar”. E Luís Ferreira, antigo aluno do Técnico, que terminou o liceu em 1973, partilha também a sua nostalgia: “No Liceu criava-se aquela ansiedade. Um dia vamos poder ir para o sexto ano mexer naquela coisa que está ali pendurada em cima daquele quadro negro”, recorda. Só a partir do sexto ano se começava a utilizar a régua de cálculo. Mas quando lá chegou, já reinavam as calculadoras.

  • Agradecimentos:
    Ana Silvestre (Comunicação Departamento de Matemática)
    Anabela Teixeira
    Gabriel Pires
    Luís Ferreira
    Moisés Piedade
    Departamento de Matemática do Instituto Superior Técnico
    Liceu Camões
    Museu Nacional de História Natural da Universidade de Lisboa
    Museu Faraday

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Episódio 38 – A Turbina Birradial

sexta, março 18th, 2022

Ilho do Pico, Açores, 1999. Na zona mais exposta à concentração das ondas – “quase um pesadelo” – foi encontrado, entre rochas resultantes da erupção vulcânica do século XVII, o local ideal para a instalação da primeira central de energia de ondas do mundo. Uma construção “muito difícil” de uma estrutura de betão na água que significava um grande avanço científico na área da energia e que integrava uma equipa do Instituto Superior Técnico. É um dos momentos históricos da investigação portuguesa na área, que se destacou ao longo das últimas quatro décadas.“É um esforço de investigação e desenvolvimento que não é de meia dúzia de anos, é mais que a vida ativa de um docente aqui do Técnico”, descreve António Falcão, professor catedrático emérito do Departamento de Engenharia Mecânica do Instituto Superior Técnico. Outro momento alto aconteceu em 2011, com a patente da turbina birradial, que colocou o Técnico no grupo da frente da investigação europeia na área do aproveitamento da energia das ondas. Pelo meio, a história da central, construída para fornecer energia elétrica (ou parte dela) aos cerca de 15 mil habitantes da ilha, esteve ativa quase 20 anos. Mas para percebermos toda a história desta linha de investigação é necessário recuar até aos tempos do PREC (Período Revolucionário em Curso), entre 1974 e 1975.

Nesse período, entra na história do Técnico e pelo Pavilhão Central (campus Alameda) adentro “um Senhor chamado Agnelo David, na altura com cerca de 40 anos, comerciante de profissão, de Almeirim, e inventor nas horas vagas”. Agnelo não tinha formação técnica nem científica, mas trazia uma ideia: lembrou-se que as ondas do mar, do oceano, tinham muita energia e talvez fosse possível aproveitar essa energia. Veio ao Técnico mostrar a sua invenção e procurar apoio, porque não tinha capacidade técnica nem científica para desenvolver a ideia. E apresentou uma geringonça descrita assim em detalhe por António Falcão: “Era um tanque de água, talvez de fibra de vidro, de 1m por 1m, e encheu aquilo até pouco mais de meio. Havia uma placa articulada no fundo junto a um dos lados do tanque; segurando a placa com as mãos de um lado para o outro faziam-se ondas dentro daquele tanque. Do outro lado da placa havia uma espécie de caixa, com abertura virada para baixo, e parte fora de água, de tal maneira que as ondas faziam oscilar a água dentro dessa caixa e, portanto, comprimiam ou descomprimiam o ar que ficava por cima da água. Na parte de cima havia uma abertura e ele lembrou-se de pôr ali uma turbina, talvez com uns 10 ou 15cm de diâmetro, e quando o ar soprava quer de dentro para fora, quer de fora para dentro, a turbina girava e acionava um dínamo de bicicleta. O dínamo estava ligado a um rádio de pilhas. A observação (científica) consistia em fazer ondas com a placa e ouvir o rádio a tocar”. Agnelo faleceu em 1991, oito anos antes da turbina do Pico, mas sentiu que tinha feito parte do desenvolvimento da investigação de energia das ondas em Portugal, garante António Falcão, que também se inspirou nele para os 40 anos de trabalho que leva nesta área.

Nos anos 80, o Técnico tinha já uma equipa de investigadores dedicada a esta área e um convite de uma empresa de energia dos Açores para fazer a prospeção no Arquipélago. Começava a odisseia de investigação do grupo que viria a patentear a turbina birradial, aqui explicada por Luís Gato, professor associado do Departamento de Engenharia Mecânica do Técnico: “A turbina birradial é um dispositivo de conversão da energia das ondas para uma classe de dispositivos que utilizam o ar como meio de conversão dessa energia. A ideia é converter essa energia pneumática que é gerada pelo movimento ondulatório das ondas com um corpo fixo ou flutuante. A turbina tem que ser capaz de funcionar com o escoamento alternado em dois sentidos, bidirecional, o que exige um desenho especial. Esta turbina birradial é capaz de fazer isso e com um desenho que foi concebido aqui no Técnico que propicia rendimentos muito elevados quando comparados com soluções anteriores”. “Nas turbinas convencionais a direção do escoamento do fluído, do gás ou do ar é sempre no mesmo sentido. Nas centrais de energia das ondas o escoamento do ar é promovido pela subida e descida do nível da água dentro de uma caixa. E, portanto, é preciso criar uma turbina que funcione igualmente bem quando o escoamento é da caixa para a atmosfera e da atmosfera para a caixa”, complementa António Falcão. A ideia de produção em larga escala de energia elétrica a partir das ondas tem perdido terreno para outras formas de energia renovável, atualmente mais económicas, mas é fundamental em mercados de nicho como a observação e exploração marinha e oceanográfica e de aquacultura.

Patenteada em 2011, e atualmente em exposição no Laboratório Nacional de Energia e Geologia (LNEG), em Lisboa, a turbina personifica o posicionamento pioneiro do Técnico na investigação no aproveitamento deste tipo de energia. Este reconhecimento gera ainda hoje muitos convites para “participar em projetos internacionais tendo como foco da nossa participação a conversão da energia das ondas e a utilização de turbinas de ar”, como explica Luís Gato. O processo de invenção e implementação causa-lhe ainda alguma incredulidade: “Hoje olhamos para a conceção e vemos uma conceção simples. Porque é que não nos lembrámos disto antes?”.

Extra:
Agnelo David, o inventor nas horas vagas que semeou uma ideia no Técnico
«A história que vou contar começou há cerca de 47 anos aqui neste sítio onde eu estou, o átrio do Pavilhão Central do Instituto Superior Técnico. Foi em pleno PREC, em 1974/1975. Nessa altura apareceu aqui um Sr. chamado Agnelo David, na altura com cerca de 40 anos, comerciante de profissão, em Almeirim, e inventor nas horas vagas. Não tinha formação técnica nem científica, era um simples comerciante. Mas era um homem inteligente. Ele lembrou-se que as ondas do mar, do oceano, tinham muita energia e talvez fosse possível aproveitar essa energia e apareceu aqui no Instituto Superior Técnico com uma espécie de geringonça que era um tanque de água, talvez de fibra de vidro, de 1m por 1m, e encheu aquilo até pouco mais que meio. Havia uma placa articulada no fundo junto a um dos lados do tanque, de tal como que segurando a placa com as mãos de um lado para o outro se faziam ondas dentro daquele tanque. Do outro lado da placa, havia uma espécie de caixa, com abertura virada para baixo, e parte fora de água, de tal maneira que as ondas faziam oscilar a água dentro dessa caixa e comprimiam ou descomprimiam o ar que ficava por cima da água. Na parte de cima havia uma abertura e ele lembrou-se de pôr ali uma turbina de sua aviação, teria talvez uns 10 ou 15 cm de diâmetro, e quando o ar soprava quer de dentro para fora, quer de fora para dentro, a turbina girava e acionava um dínamo de bicicleta. O dínamo estava ligado a um rádio de pilhas. De tal maneira que a observação era fazer ondas com a placa e ouvir o rádio a tocar. Agnelo David tinha tido essa ideia algum tempo antes quando se passeava aqui na costa rochosa a norte de Lisboa e as ondas entranhado em cavidades da rocha faziam soprar o ar e portanto havia sopros de ar e lembrou-se ‘por que razão não arranjo uma coisa artificial que aproveite estes sopros de ar com uma turbina de ar?’.
Veio ao Técnico para mostrar a sua invenção, mas também para procurar apoio, porque ele não tinha capacidade técnica nem científica para desenvolver uma ideia que era complexa. Tinha estado também no LNEC, no Departamento de Hidráulica. Os especialistas (técnicos e professores acharam aquilo interessante, mas tinham outras coisas para fazer). De modo que ele na altura não teve muito apoio, mas eu interessei-me por aquele invento. Eu na altura ensinava no Departamento de Engenharia Mecânica, as disciplinas de Mecânica dos Fluidos Exteriores e de Turbomáquinas, portanto aquele invento tinha uma pequena turbina e aquilo era a minha área. Eu tinha feito o doutoramento em Inglaterra, exatamente sobre turbomáquinas, não sabia de ondas do mar mas tinha formação em mecânica dos fluidos e aerodinâmica. Achei aquilo interessante. Resolvi estudar as ondas. Foi isso que despoletou o meu interesse no aproveitamento da energia das ondas do mar. Na altura achei a ideia interessante: eu não sabia muito sobre a hidrodinâmica das ondas, era uma especialidade mais cultivada em Engenharia Civil, mas Engenharia Civil não tinha investigação aqui no Técnico, era feita no LNEC. Aliás o Pavilhão de Engenharia Civil aqui ao lado, não existia nessa altura.
Comecei a estudar a parte de hidrodinâmica das ondas, depois também o ambiente revolucionário não era o mais estimulante para concentração em coisas científicas. Passou-se algum tempo e eu fui estudando aquele assunto. Entretanto, o primeiro colaborador apareceu, António Sarmento tinha acabado o curso precisamente em 1975, foi fazer uma pós-graduação sobre turbomáquinas na Bélgica e quando regressou precisava de um tema de doutoramento. Perguntei-lhe: ‘Você não quer fazer um doutoramento sobre o aproveitamento da energia das ondas do mar?’ Ele não percebeu e tive que repetir. Ele disse ´deixe-me pensar´. E passado um ou dois dias depois disse ‘vou aceitar’. E foi o primeiro colaborador. Entretanto houve alunos que se foram interessando e fomos constituindo um grupo. Em 1979 repetiu-se a cena. O Luís Gato acabou o curso, entrou para assistente, e perguntei-lhe: ‘você quer fazer um doutoramento sobre o desenvolvimento dos equipamentos dos sistemas de energia das ondas, em particular estas turbinas especiais que são diferentes das outras?’ Ele aceitou e foi o segundo. 1983: O então Laboratório Nacional de Engenharia e Tecnologia Industrial, que já não existe, interessou-se. Tinham um departamento de energias renováveis e acharam que era interessante fazer alguma coisa sobre as ondas. Decidiram criar lá um grupo… criou-se um pequeno grupo no LNEC, que foi aumentando. Em 1979 fui de licença sabática a Inglaterra e pude fazer alguns contactos. Em particular, participei nas duas primeiras reuniões científicas sobre o aproveitamento da energia das ondas, e fui começando a conhecer as pessoas. Regressado desse ano sabático, comecei a fazer trabalho de laboratório… no Técnico não havia maneira de gerar ondas em laboratório, mas havia no LNEC, o Departamento de Hidráulica tinha tanques e canais de fazer ondas onde eram estudados… e aí começou o trabalho experimental. Por outro lado, começaram-se a desenvolver as turbinas e nós estávamos em pleno andamento, já com trabalhos publicados, quando no fim do Verão de 1986 veio uma notícia dos Açores: a empresa de eletricidade dos Açores, que pertencia ao Governo Regional, e era a maior empresa dos Açores, queria começar a pensar na energia das ondas e convidaram-nos para irmos fazer uma prospecção no Arquipélago».
António Falcão

  • Agradecimentos:
    António Falcão
    Luís Gato
    João Henriques
    Departamento de Engenharia Mecânica do Instituto Superior Técnico

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Episódio 37 – Os Modelos de Minas de Freiberg

sexta, março 11th, 2022

Em plenos anos 80, os corredores do edifício de Minas, no campus da Alameda do Técnico, estavam preenchidos com dezenas de volumosos modelos de Minas. “Passava sempre pelos modelos para entrar nos gabinetes ou para ir para as aulas”, recorda Matilde Costa e Silva, docente na área de georrecursos do Departamento de Engenharia Civil, Arquitetura e Georrecursos. “Todas as pessoas da minha geração recordam de certeza aqueles modelos”, em particular os cuidados que o professor Fernando de Mello Mendes tinha quando alunos e professores passavam para as aulas. “Zangava-se quando alguém punha os livros em cima de algum modelo, como eram materiais muito frágeis…”.
A história destes mais de 50 modelos, começa em Freiberg (Alemanha), ainda no século XIX, e cruza-se com o Técnico pela mão de Alfredo Bensaude, primeiro diretor da Escola. Primeiro no Instituto Industrial e Comercial de Lisboa, e posteriormente no campus da Alameda, onde permaneceram muitas décadas até seguirem para o Centro Ciência Viva do Lousal, onde estão agora expostos. Todos com exceção de um, que se encontra nos Museus de Geociências do Técnico.

Estes Modelos de Minas de Freiberg são réplicas de minas reais e do equipamento utilizado nessas minas, sobretudo as subterrâneas. Representam o processo de extração de uma mina e replicam o conjunto de uma estrutura constituída por várias galerias e pelo poço de acesso. Estes modelos antigos são constituídos por peças amovíveis, o que possibilitava uma visualização a três dimensões, um potencial pedagógico fundamental para grande parte do século XX. “O meu orientador, Fernando de Mello Mendes (que foi o grande zelador destes modelos, sem ele estes modelos não tinha chegado até hoje), contava com alguma graça que nos anos de estudante dele, que seriam os anos 40, os livros de consulta bibliográfica não abundavam e portanto para os alunos era extremamente importante, eram muito didáticos com estas peças amovíveis, perceber quais eram os componentes fixos e os componentes móveis. A alternativa era visitar uma mina para perceber”, conta Matilde Costa e Silva.

Depois de décadas no Técnico e muitas mudanças e restauros, os Modelos de Minas viajaram 140 quilómetros até ao Centro Ciência Viva do Lousal “Mina de Ciência”, no Alentejo, num complexo mineiro verdadeiro, que esteve ativo entre 1900 e 1988. Converteu-se em “Museu” em 2001 e apresenta no seu espólio instrumentos de produção de ar comprimido, fundamental para a operação mineira; equipamentos de produção de energia elétrica, grupos de combustão interna e, claro, as maquetes de modelos de minas do Instituto Superior Técnico. As maquetes estão espalhadas em sete áreas diferentes da indústria mineira, dedicados à parte subterrânea, ao transporte, às questões do ar, da água, de lavagem e tratamentos minérios e, por último, do fogo.
“Esta parceria permite a conservação dos objetos e por outro lado a exibição dos mesmos, perpetuando a sua função na capacidade de educar, de formar, agora num contexto informal e como conhecimento histórico e não projetado para o futuro”, aponta Álvaro Pinto, Diretor Executivo do Centro Ciência Viva do Lousal (CCVL) e professor na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (Ciências ULisboa). “A alternativa de não os expor seria a sua morte e não queríamos que objetos como estes desaparecessem. Estamos a perpetuar a sua vida”, complementa. “Uma vez aqui instalados, têm essa enorme mais valia de estarem acessíveis, visíveis e acima de tudo revelarem a evolução que a história faz para termos o que temos nos dias de hoje. Estes modelos permitem uma leitura museológica a vários níveis: para muitas crianças equivalem a brinquedos fascinantes e à medida que os níveis etários aumentam vão tendo leituras cada vez mais técnicas”, complementa Jorge Relvas, Presidente do CCVL e também docente em Ciências ULisboa.
Matilde Costa e Silva gosta do espaço que os modelos ocupam no Museu: “Têm um espaço digno para estar, aqui não teriam essa visibilidade. O que não quer dizer que se o Técnico vier a fazer um museu grande de várias áreas, eu preferia que estivessem aqui”. Uma expressão da saudade que encontra equivalência no pensamento de Jorge Fernandes, funcionário do Técnico, que foi contratado no final dos anos 80 com o objetivo de restaurar os modelos: “Eu vim para cuidar deles, estavam todos partidos. Aquilo não era meu mas era como se fosse meu. Ainda não tive a oportunidade de os ir visitar [ao Lousal]. Um dia destes sou capaz de passar lá, quando tiver um trabalho para aqueles lados”.

O futuro dos modelos e a reabilitação do Museu Mineiro do Lousal
«Projeto AMPERE (Arqueologia Mineira e Património Elétrico como Recurso Educativo) que pretende reabilitar o museu mineiro do Lousal. O Museu abriu em 2001 e está a necessitar de ser revisto. Vamos usar tecnologia precisamente para dar um maior destaque a estas peças. No que respeita às maquetes do Técnico, o objetivo será diminuir a sua área expositiva mas, no entanto, investir em alguns objetos de destaque, melhorando o discurso expositivo destes objetos de destaque, reabilitando alguns destes objetos e dando o destaque que cada um deles merece neste Museu. O Museu vai fechar nos próximos meses e em 2024 devemos voltar a abrir. Em 2024 verá um Museu completamente modernizado. Os Modelos do Técnico estarão na nave central do Museu do Lousal, parte dela continuará a ser dedicada a esta exposição de modelos de minas. A ideia será selecionar alguns objetos de destaque também para lhes dar mais espaço, para que as pessoas explorem o detalhe. Deixando sempre uma abertura para que façamos renovações porque temos cerca de 50 modelos. Há a possibilidade de expor parte destes modelos e depois temporariamente fazer alterações aos que estão expostos, e ir disponibilizando os diferentes modelos ao longo do tempo».
João Costa, gestor de projetos do Centro Ciência Viva do Lousal

 

  • Agradecimentos:
    Álvaro Pinto
    Matilde Costa e Silva
    João Costa
    Jorge Fernandes
    Jorge Relvas
    Centro Ciência Viva do Lousal

    Departamento de Engenharia Civil, Arquitetura e Georrecursos
    Museus de Geociências do Técnico

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Episódio 36 – A bilha de azeite

sexta, março 4th, 2022

É hoje um dos símbolos do Grupo de Cantares Tradicionais do Instituto Superior Técnico, mas fez um grande caminho no tempo até aqui chegar. A bilha de azeite chegou ao Técnico durante o período da construção do campus da Alameda do Técnico, que durou entre 1929 e 1942, e esteve escondida entre caves e arquivos até ser adotada pelo grupo do Técnico, fundado em 2001. Vamos por partes e pelas palavras de Delminda Carneiro, funcionária aposentada do Técnico e uma das fundadoras do grupo: O Engenheiro Duarte Pacheco, diretor do Técnico à época da sua construção (ouvir episódio 19), “trouxe – não sei se da terra dele – dois Senhores que vieram para ajudar nas obras da construção do Instituto Superior Técnico e deu-lhes casa na cave do Edifício Central”. A partir de então, e por tempo difícil de determinar, viveram dois casais no edifício principal do Técnico, que se viram a tornar funcionários do Técnico. Quando as casas ficaram livres e as equipas do Técnico foram retirar os pertences, foram encontrados dois objetos históricos – um merendeiro de vime e a bilha de azeite. “Eles eram ali da região de Cernache do Bonjardim ou da Sertã. Os objetos são naturais dessa região e muito antigos”, descreve. O irmão de Delmina, Hermínio Carneiro, esteve nessa equipa que desmantelou a casa e ao ver os objetos históricos, decidiu guardá-los num arquivo morto da secção de contabilidade. O objeto passou quase uma vida no Técnico e assim avançamos décadas e décadas até à fundação do Grupo de Cantares Tradicionais: “Quando fundámos o grupo, ele trouxe estes dois acessórios tradicionais porque fazia todo o sentido que fizessem parte do Grupo”.
Esta bilha de azeite, ou talha de azeite dependendo da região, encarna também na perfeição os objetivos deste grupo. “O Grupo de Cantares, preserva não só as modas (género musical) mas também os usos e costumes de antigamente” resume Delmina Carneiro.

A bilha de azeite é acompanhada por uma pequena “jaula” de madeira, que servia para a proteger durante o transporte. Caso batesse em alguma coisa, não ficava amassada.
É uma das estrelas da companhia, para além dos 15 elementos que compõem atualmente o grupo e acompanha muitas vezes o grupo quando tem atuações fora de Lisboa. “Normalmente vamos de véspera e costumamos levar farnel daquele cesto”, descreve. É também usado para a decoração do palco. “Já participámos em concursos nacionais de música tradicional, precisamente para simbolizar que somos um grupo tradicional e mantemos viva a tradição”.
O grupo de Cantares Tradicionais do Técnico veio, na opinião de Delmina, colmatar uma necessidade que existia na instituição. “Grande parte dos funcionários que vieram para cá nos anos 70 era gente lá de cima da Beira Alta e do norte do país. E havia essa necessidade porque havia pessoas que tinham umas vozes muito lindas e que deviam ser aproveitadas. Reunirmos um bocado da cultura e das tradições da região dessas pessoas e trazê-las para dentro do Técnico”, descreve. O grupo, fundado no seio da Associação do Pessoal do Instituto Superior Técnico (APIST) e entretanto autonomizado, dedica-se ao levantamento e interpretações do cancioneiro de várias regiões do país, de norte a sul e ilhas.

Delmina acumulou 43 anos de funcionária do Técnico e está no grupo de cantares desde a sua fundação, há 21 anos, e mantém-se otimista com o futuro do grupo: “Fico contente porque vejo que entram pessoas quem nem estavam ligados a este tipo de música e estão a aderir e penso que serão eles que vão ser os continuadores deste grupo. Nomeadamente alunos que entram, vêm com um pensamento de se os mais velhos faltarem, nós continuamos. Enquanto os mais velhos e até os mais novos tiveram este espírito que temos tido, isto não vai terminar”. A vida do grupo manifesta-se todas as semanas no Técnico: há ensaios todas as segundas-feiras.

  • Agradecimentos:
    Delminda Carneiro
    Grupo de Cantares Tradicionais do Instituto Superior Técnico

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Episódio 35 – A Maquete da Ponte da Arrábida

sexta, fevereiro 25th, 2022

A 22 de junho de 1963 era lançado sobre o rio Douro um record mundial em forma de ponte, naquela que viria a ser a segunda ligação rodoviária entre o Porto e Vila Nova de Gaia. Nascia a Ponte da Arrábida, obra de arquitetura e engenharia assinada por Edgar Cardoso (1913-2000) e que inclui elementos escultóricos assinados por Salvador Barata Feyo (ouvir episódio 23) e por Gustavo Bastos, que se assumia como a ponte com o maior arco em betão armado de todo o mundo.
Pelo Técnico, onde Edgar Cardoso foi também uma das grandes referências no ensino de Pontes e Estruturas, passou e ficou – pelo menos a partir dos anos 70 – a Maquete da Ponte, que representa uma versão intermédia da obra. “Eu não sei exatamente a origem, mas lembro-me ainda como aluno, portanto estamos a falar dos anos 70, de a ver nos corredores do Pavilhão Central do Técnico. Imagino que deve ter sido uma maquete oferecida pelo professor Edgar Cardoso, que era aqui professor da disciplina de Pontes e Estruturas Especiais”. Quem percorre a memória é Fernando Branco, professor catedrático do Instituto Superior Técnico, no Departamento de Departamento de Engenharia Civil, Arquitectura e Georrecursos. A maquete remonta ao período de início das obras de construção da ponte, a partir de 1957. “As maquetes habitualmente são feitas para as pessoas verem a ponte que vai ser realizada. Esta maquete deve ter sido feita depois de estar já concebida”, explica. Depois de ter estado longos anos nos corredores do Pavilhão Central do Campus da Alameda, encontrou finalmente espaço no Museu de Civil, inserido do Pavilhão de Civil, inaugurado em 1993.

“Estamos a falar de uma época – anos 70 – em que o Técnico já denotava alguns problemas de conservação. Todo o ensino da Engenharia Civil era feito no Pavilhão Central, em salas em que as janelas não abriam nem fechavam, em que as carteiras estavam com poucas condições. Do que me lembro, a maquete estava bastante deteriorada na altura. A maquete é metálica e eu tenho ideia de a ver verde, nem estava sequer pintada, estava relativamente deteriorada”, complementa Fernando Branco. A maquete foi, entretanto, retocada e pintada, provavelmente quando foi mudada para o Edifício de Civil.
Informação mais específica tem Carlos Ferraz, atual representante da empresa Edgar Cardoso, Laboratório e Estruturas, e que muito colaborou com o professor: “A ponte foi estudada no princípio dos anos 50 – porque a avaliação depois da solução que foi mesmo a concurso é de 1954. Portanto, esta é uma hipótese de ponte, porque existira uma solução também em metal e estrutura metálica. Duas em betão, uma pré-esforçada e era apenas um pórtico, a de betão era praticamente igual a esta, assim como também de alvenaria, de pedra, de granito. A opção que veio a ser executada é muito parecida com esta ou quase igual, mas de betão armado. A razão para isso foi a escolha sobre os materiais, preferindo-se os materiais nacionais”.

Edgar Cardoso, com um trabalho “exigente” e “rigoroso”, de acordo com Carlos Ferraz, raramente fazia uma obra igual à anterior. “Estava sempre a estudar e a fazer coisas novas”. E acompanhava de perto todas as suas obras. Por exemplo, no caso das obras da Ponte da Arrábida, “todas as semanas se ia ver os trabalhos da ponte e reunia com cerca de 20 pessoas”.
As obras preferidas de Fernando Branco são a Ponte São João, também no Porto, e duas pontes construídas no então Ultramar, em Moçambique, no Save e no Tete, onde utilizou pela primeira vez, de forma pioneira, o sistema das pontes suspensas mas de múltiplos vãos. “Se pensarmos que aquilo foi construído em África sem tecnologias nenhumas e com meios muito complicados. Para mim aquelas pontes são, digamos, as mais notáveis que foram feitas”, defende.
Edgar Cardoso foi também pioneiro no recurso a modelos de ponte, com secções desenhadas à escala, para lhe colocar sensores e medir extensões, deslocamentos, testando a sua resistência. “Começou a usar modelos com instrumentação mecânica, para estudar os esforços equivalentes na ponte ou no próprio modelo final, no protótipo. Na altura não havia, ele próprio desenhou esses instrumentos para poder medir os deslocamentos, as flechas, as extensões, tudo isso”, recorda Carlos Ferraz. “Isto foi a grande inovação que ele trouxe. Até ter começado a usar os modelos, basicamente os projetos eram feitos com modelos planos, ou seja, não havia a terceira dimensão nas pontes”, complementa Fernando Branco.
As obras de Edgar Cardoso destacavam-se ainda pelo forte pendor estético. “As obras dele são sempre anormalmente belas. O produto das coisas que ele fazia é de facto muito bonito. São obras de engenharia, mas que tem a beleza de uma escultura”, descreve Fernando Branco. Mas será que o engenheiro se via como um artista. Carlos Ferraz nega-o. “Via-se como uma pessoa que trabalhava muito”.

Três histórias sobre Edgar Cardoso:
Um: Salazar e o preço das esculturas da Ponte
«É uma história engraçada e verídica, contada pela filha do Governador Civil do Porto à data da inauguração. Diz basicamente que o Salazar não ia habitualmente à inauguração das grandes obras. Ia de véspera ver se estava tudo bem. Então, avisou o governador civil que ia lá precisamente na véspera da inauguração. E quando chegou lá estava o Governador Civil do Porto, precisamente junto a uma dessas torres, onde estão as tais figuras do Barata Feyo. Recebeu-o e acho que o Salazar não ligou muito às figuras. E o Governador Civil disse: “Aproveitámos e fizemos uma decoração toda bonita com estas figuras do escultor Barata Feyo”. Ele olhou e fez o seguinte comentário: “Lá feias são e devem ter custado muito”.»
Fernando Branco

Dois: A “cor Edgar Cardoso” e a Ponte vermelho-boi
«O Professor tinha uma cor que nós chamávamos a cor Edgar Cardoso, que era branco marfinado ligeiramente azulado. E há uma história que por acaso é curiosa, na altura da construção da Ponte da Figueira da Foz. E perguntaram-nos se a ponte podia ser pintada de vermelho sangue boi ou de azul marinho. E o Professor respondeu: ‘A ponte não foi calculada para essas cores’. E as pessoas ficaram assim ‘como é que a ponte não foi calculada para essas cores?”. É muito simples: uma ponte, qualquer superfície clara que reflita a energia aquece muitíssimo menos, enquanto que uma superfície que seja de tons mais agressivos, mais escuros, absorve muita energia. O que é que isto quer dizer? As dilatações são completamente diferentes. Vou dar um exemplo: a gente experimentava tudo… um carril pintado de branco e um carril normal como aqueles que a gente vê: colocávamos aquilo na varanda do gabinete íamos almoçar e voltávamos, e as diferenças de temperatura que conseguíamos medir de um para o outro eram cerca de 30 graus. Ou seja, em termos de extensões depois eram uma diferença brutal. Portanto, a ponte não foi calculada para aquela temperatura porque junto aos apoios das juntas essas retrações ou dilatações iam ter influência. No entanto, hoje em dia está de uma cor… azul marinho talvez. Venceu a outra parte».
Carlos Ferraz

Três: O Professor Edgar Cardoso e as Provas Orais
«Falar da fama [de Edgar Cardoso] é falar de alguns relatos que me chegaram de outros colegas, não diretos mas essencialmente mais velhos. Basicamente o Professor obrigava toda a gente a ir à oral, e não chumbava ninguém mas havia muitos que chegavam a lá ir seis ou sete vezes. Primeiro que passassem… Era do tempo em que não havia muitos alunos e portanto podia-se fazer isto. São famosas as orais em que ele fazia muitas vezes perguntas só para apanhar a sensibilidade do engenheiro. Perguntava coisas como por exemplo ‘qual é a altura que acha que tem do rio até lá acima?’. Se o indivíduo falhava dois ou três metros… ‘pode voltar cá daqui a uma semana’. Ele era famoso por isso.
Ele queria essencialmente que as pessoas tivessem sensibilidade na Engenharia. Ele não se preocupava muito com as contas…queria era que as pessoas percebessem como é que funcionavam as estruturas. No oral era ali que ele via se a pessoa podia levar o selo de engenheiro ou não».
Fernando Branco

«Eu posso talvez complementar que ele não chumbava ninguém. As pessoas tinham que ir aprimorando o seu conhecimento mas as orais percorriam as matérias todas, ou seja, era a Geotecnia, a parte Estrutural, a parte Estética, tudo. Era professor de Pontes e de estruturas especiais mas corria as matérias todas e, naturalmente, a parte de resistência de materiais, que são as coisas importantes para um Engenheiro poder de alguma ter algum critério quando olha para uma obra e dizer, bom aquela obra tem dimensões muito incorretas ou dimensões corretas. Olhamos para aquela ponte e vemos que está bem. Podia ser mais espessa, havia professores, nomeadamente no Porto, que faziam coisas pouco esbeltas, com dimensões muito exageradas».
Carlos Ferraz

Artigos da autoria de Edgar Cardoso na Revista Técnica:
1939 – N.º 102 – Vigas hiperstáticas de momento de inércia variável.
1939 – N.º 106 – Cálculo dos sistemas hiperstáticos com o auxílio de modelos reduzidos.
1940 – N.º 115 – Algumas considerações sôbre as pontes de arcos e abóbadas.
1941 – N.º 124 – A investigação Experimental Científica.
1942 – N.º 128 – Breve simplificação nos cálculos estáficos das estruturas.
1943 – N.º 135 – Estudo experimental de tabuleiros de pontes com apoios inclinados.
1943 – N.º 136 – Estudo experimental de tabuleiros de pontes com apoios inclinados.
1943 – N.º 139 – O tabuleiro das pontes tipo «Bow-string» de betão armado.
1944 – N.º 148 – A aparelhagem utilizada num método de determinação mecânica das incógnitas hiperestáticas das estruturas reticuladas.
1945 – N.º 159 – Uma aplicação dum tipo especial de pórtico simples.
1947 – N.º 176 – Um aparelho que determina duma só vez o momento flector e o esforço transverso em qualquer secção dum modelo reduzido plano ou do espaço para todas as espécies de solicitações.
1954 – N.º 245 – Ponte sobre o rio Cávado, na albufeira da Caniçada.
1957 – N.º 270 – CAPA — Passagem superior de betão armado, com vão de 47m, em Sacavém, para a SACORVigas principais do tipo arco com tirante semi-rigido, triangulado na região central. Tabuleiro inferior pré-esforçado longitudinalmente. Execução de Construções Técnicas, Lda., segundo projecto do Eng. Edgar Cardoso.
1957 – N.º 271 – Cuidados a ter na construção das grandes pontes de betão armado.
1957 – N.º 272 – CAPA – Uma das 4 pontes sobre a albufeira de Barragem do Maranhão – Projecto do Eng.° Edgar Cardoso – Construção da NOVOPCA.
1958 – N.º 286 – A Engenharia Civil na época actual – Concepção, cálculo e possibilidades construtivas.
1965 – N.º 346 – A Engenharia Civil no Ultramar Português.

 Artigos mencionados na Revista Técnica sobre Edgar Cardoso e a Ponte da Arrábida:
1960 – N.º 306 – O controle da fabricação do betão e a medição da sua qualidade no estaleiro, pelo Eng. Civil (IST) A. de Sousa Coutinho, Investigador do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (menciona a Ponte Arrábida, pág. 96)
1960 – N.º 307 – O controle da fabricação do betão e a medição da sua qualidade no estaleiro, pelo ENG. Civil (IST) A. de Sousa Coutinho, Investigador do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (fala sobre a Ponte Arrábida, pág. 147-150)
1961 – N.º 308 – Porto: estudos e realizações de urbanismo; Miguel Falcão. Binário, n° 26, Novembro de 1960 (Aborda Edgar Cardoso e a  Ponte da Arrábida, pág. 239)
1961 – N.º 308 – Programa do Seminário Internacional de Hidráulica – (Visita à Ponte da Arrábida, pág. 206).
1961 – N.º 316 – Do Mundo Técnico – Comentário ao colóquio sobre construções anti-sísmica (Fala de Edgar Cardoso, pág. 136).
1963 – N.º 325 – Na secção Ficheiro dá a refª ao artigo (depois do anúncio 36) –  A montagem do cimbre da ponte da Arrábida de J. C. Araújo Sobreira. Boletim da Ordem dos Engenheiros, 7-8-1962, pág. 221-235.
1963 – N.º 331 – Anúncio pág. I – Vista parcial dos acessos da Ponte da Arrábida assentes sobre Estacas Franki.

  • Agradecimentos:
    Carlos Ferraz
    Fernando Branco
    Departamento de Engenharia Civil, Arquitectura e Georrecursos
    Museu de Civil
    Filomena Santos (Biblioteca do Técnico)

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Episódio 34 – ISTSAT-1: O 1.º Cubesat português

sexta, fevereiro 18th, 2022

Se tudo correr bem, daqui a dois anos estará a arder ao reentrar na atmosfera. Antes disso, a previsão é que vá para o espaço, ainda este ano, à boleia de um satélite da Agência Espacial Europeia (ESA), e cumpra a sua missão. Para além dos objetivos científicos do projeto, o ISTSAT-1 leva no seu histórico muitas horas de dedicação e de criação de propostas tecnológicas inovadoras de alunos e professores do Instituto Superior Técnico. É o primeiro nanosatélite, no formato Cubesat, totalmente desenvolvido em Portugal e está praticamente pronto para entrar em órbita, a 580 km da Terra, e testar a capacidade de deteção da presença de aviões em zonas remotas.
Entre botões, rádios, monitores e microfones, a partir do espaço que acolhe o projeto ISTSat – a sala 0.77 do campus TagusPark do Técnico (Oeiras) – e que em breve se tornará na sala de controlo de missão do ISTSAT-1 –  Rui Rocha, coordenador do projeto e professor do Departamento Engenharia Eletrotécnica e de Computadores, explica-nos os próximos passos da iniciativa: “Entregaremos o satélite à ESA, para depois passar uma série de testes e exames em ambiente espacial e provar que continua a funcionar e é suficientemente fiável para colocar a bordo. A ESA colocá-lo-á num lançador, provavelmente o Ariane 6, que será lançado na base da Guiana, em Kourou, para uma órbita. O que se sabe até agora é que será elíptica, não se sabe exatamente os parâmetros ainda, e com esta órbita ficará um ou dois anos em serviço. Se tudo correr bem, será controlado a partir desta sala onde estamos agora”. Uma vez no espaço, o ISTSAT-1 será projetado e seguirá o seu caminho sozinho. Depois de lançado e identificada a sua posição enviará dados sobre os aviões para algumas estações terrestres habilitadas pelo projeto.

O projeto ISTSAT-1, que começou a ser construído em 2017, insere-se num programa espacial criado para equipas universitárias, o Fly Your Satellite. É um dos quatro sobreviventes entre 13 propostas iniciais e o único que desenvolveu toda a estrutura do satélite. “Quando começámos a pensar no nanosatélite, um dos nossos objetivos era fazer tudo aqui no Técnico. Foi a nossa principal motivação inicial: sermos capazes de fazer pela primeira vez em Portugal um satélite de raíz, desde o zero”, explica Moisés Piedade, antigo professor do mesmo Departamento e um dos responsáveis pelo projeto. Antes deste satélite já existia também no TagusPark, desde 2005, uma estação de rastreio de satélites, que deu origem ao projeto Nanosat.
O satélite é um cubo de 10/10, cada aresta com 10cm – tamanho uniformizado internacionalmente para este tipo de aparelhos – onde “cabe muita coisa”, sensação amplificada pelo potencial da nanotecnologia na eletrónica. “Lá dentro tem um sistema bastante complexo. Levamos a bordo cinco placas, cinco subsistemas”, explica Rui Rocha. A maior parte destas placas são aquilo que se designa pela plataforma como aviónica e tem que existir em todos os satélites. Todas têm um computador. Uma delas é a chamada carga útil do satélite e o resto faz parte das plataformas de alimentação, incluindo o computador de bordo que controla tudo, o processador de comunicações e a placa responsável pela missão.

E como se escolheu a missão? “Foi um bocadinho difícil arranjar uma missão que, de alguma forma, fizesse sentido e nos fizesse sentir que o satélite era útil em alguma coisa”, explica Rui Rocha. Acabou por se encontrar um enquadramento relacionado com os sinais que os aviões são obrigados a enviar, desde 2020. É através desses sinais que é possível, por exemplo, saber o paradeiro de qualquer avião, como podemos observar em algumas aplicações informáticas. Esses sinais concentram-se, contudo, em zonas onde existem aeroportos e onde se vê a terra. Em zonas remotas geralmente não se detetam aviões, não por não existirem mas porque não há nenhuma estação terrestre a receber esse sinal. “É exatamente esse o interesse de um serviço destes oferecido a partir do espaço e é isso que o Satélite no fundo vai provar: que o nosso sistema, a nossa carga útil é capaz de receber esses pequenos sinais a partir da órbita”, complementa. “O grande objetivo é provar que é possível num espaço tão pequeno e com aquele tipo de eletrónica e com aquele tipo de antenas (fáceis de fabricar) receber esses sinais”.

“Para mim é um desafio de engenharia ao mais alto nível podemos fazer aqui no Técnico. Foi basicamente isso que nos motivou”, resume Moisés Piedade. “Mesmo que o cubo seja posto no espaço e não funcione, nós já ganhámos porque já aprendemos imenso: criámos entusiasmo entre os alunos e aprendizagens para além daquilo que lhes proporcionamos no curso. O que mais me motiva é isso: o desafio de resolver problemas muitas vezes por mecanismos que nunca foram estudados”, complementa Rui Rocha. E há sempre novos ângulos para perguntas por responder. Como a questão da alimentação de energia para estes satélites, explicada por Moisés Piedade: “Foi uma aprendizagem muito grande para nós, porque as normas da ESA são extremamente exigentes. Fizemos testes pela primeira vez com as baterias de lítio nestes pequenos satélites e foi uma coisa que a própria ESA aprendeu connosco”.
O projeto poderá dar um contributo fundamental à ciência aeroespacial. Um longo caminho desde a recolha de dados à morte planeada, cujas datas apenas descobriremos assim que se determine o dia e identifique local de entrada do satélite em órbita.

Quatro histórias contadas por Rui Rocha sobre o ISTSAT-1:

Um: Porquê um cubo tão pequeno?
«Quanto maior for o peso, mais caro fica lançá-lo. Nós começámos por propor um satélite de 3 us (3 unidades de satélite), mas era muito mais caro do que lançar só um u, que é um pequeno cubo, com 10 por 10 por 10cm.
Esse u vem da proposta de estandardização que surgiu nos Estados Unidos no início do século exatamente como uma maneira de democratizar o acesso ao espaço e até para facilitar esse acesso a estudantes universitários. Resolveram estandardizar a medida e este cubo de 10cm de aresta passou a designar-se por unidade fundamental que é um u. E partir deste u desenvolvem-se satélites grandes. Por exemplo, 12 u, 24 u…. Atualmente os satélites são todos desenvolvidos com base neste padrão, que é uma coisa incrível.
Normalmente para estes satélites pequenos não se contrata um lançador e o que se faz é usar estes lançamentos, por exemplo em satélites de maiores dimensões, ou aqueles dedicados às telecomunicações ou à observação da Terra, e leva-se a bordo quase como passageiros clandestinos estes pequenos satélites. E o problema punha-se: como é que se vai lançar isto, como se faz este lançamento? Normalmente o posicionamento em órbita é feito por dispositivos especiais que são transportados na cúpula destes foguetes que depois abrem… Para além da dimensão dos cubos, foi proposto também um lançador. É uma espécie de catapulta, imagine um tubo com uma mola no fundo, que permitia lançar satélites com uma unidade (Um U) ou dois U. Essa geringonça chama-se P-Pod e permitiu democratizar estes lançamentos. Estas boleias em foguetes que seriam usados para lançar estas coisas.»

Dois: A história do nome que nasceu antes do projeto
«O Satélite chama-se ISTSAT-1, mas o nome original era ISTNanoSAT-1. E o responsável pelo seu batismo é precisamente o Professor Moisés Piedade, porque a história começa muito antes do Satélite ter realmente existido (a partir de 2017). Na prática a história do nome vem da altura em que essa estação de rastreio de satélites foi inaugurada no campus TagusPark do Técnico (2008). Nós fizemos aqui uma sessão de apresentação à imprensa, com vários convidados e vários jornalistas. Foi uma sessão essencialmente levada à prática por alunos entusiastas que já faziam parte da equipa do centro de rastreio, que chamámos pomposamente Centro Espacial Português. Um dos alunos é hoje mundialmente famoso, é o Diogo Mónica (CEO da Anchorage), que foi quem fez a apresentação à comunidade do Centro de Rastreio. E à saída desse evento, o Prof. Moisés Piedade é entrevistado e diz que não vamos ficar por aqui: ‘vamos também começar a construir um satélite’. Lembro-me muito bem dessa altura, porque pensei ‘Está louco’. Se não estou em erro, disse logo nessa entrevista que seria o ISTNanosat. O nome vem daí.
E foi a partir daí que nós, lançando as primeiras teses, começámos a pouco e pouco a construir este satélite. A mudança de nome talvez valha a pena explicar: acontece numa fase posterior, já com ligação à ESA, em que eles precisavam que o nome fosse simplificado. E, por outro lado, precisávamos também que o nome do satélite não fosse exatamente o mesmo que o nome do projeto (que se chamava ISTNanosat).»

Três: Que seria do satélite sem as baterias?
«A história das baterias é muito interessante: O satélite já teve várias vertentes em termos de lançamento. Primeiro era para ser lançado através da Estação Espacial Internacional (ISS). Depois, por qualquer motivo, a ESA não chegou a acordo com o intermediário que estabelece o contrato com a empresa que trata desses lançamentos. Inicialmente o satélite teve que ser desenhado a pensar que ia ser colocado a bordo da ISS. Como é um veículo espacial tripulado, os índices de rigor são muito mais elevados e no caso das baterias as regras a cumprir são muito mais apertadas do que num voo não tripulado. Portanto, tivemos que fazer a validação destas baterias de acordo com essas normas apertadas para voos tripulados, o que representou um desafio ainda maior do que o normal no caso em que vamos voar. Foi um pouco inútil, mas implicou uma aprendizagem, o que é bom para nós como escola de engenharia que queremos ser.
As baterias servem de armazenamento energético quando o satélite passa a eclipse. Quando passa numa parte da órbita não iluminada. Quando está ao sol, carrega, quando está digamos na sombra descarrega e as baterias aguentam em funcionamento o satélite.
A duração de um satélite tem que ver com a órbita em que é colocado. Se for colocado numa órbita demasiado baixa, se calhar ao fim de 6 ou 8 meses reentra na atmosfera e incinera-se. Se for colocado numa órbita mais alta, pode estar uns aninhos. De qualquer forma, atualmente, as normas de combate aos detritos especiais, digamos assim, estabelecem que nenhum satélite pode estar mais de 25 anos em órbita. e tem que se autodestruir, não digo autodestruir explodindo, que isso é o pior que pode acontecer, mas autodestruir-se reentrando na atmosfera.
Nós o que fizemos foi cálculos para perceber que em determinadas órbitas o satélite reentrará dentro de X meses. Mas há casos de satélites que estão em órbitas tão longínquas que tem mesmo que ser através de sistema de eutanásia. Normalmente são uns foguetes que são acionados e fazem com que o satélite mude de órbita e se dirija para a terra, e naturalmente reentrará na atmosfera».

Quatro: Como encontrar um satélite perdido numa órbita?
«Essa fase chama-se a fase Comissioning, em que temos uma restrição inicial de espera pelo arranque dos sistemas, inicialmente eram 30 minutos, pedimos para passar a 45. Inicialmente para garantir um maior afastamento da ISS. O satélite quando é lançado está morto / latente – é só um cubo – e a partir de 45 minutos acorda para a vida, libertando as antenas, o satélite vai a rodar, e há uma fase em que o satélite tende a parar esta rotação, para garantir que há uma maior qualidade nas comunicações com a Terra.
O grande problema nesta fase, e aí vamos precisar da ajuda de todos, que é o que é normal nestas situações, é que mesmo da ISS nós não sabíamos exatamente em que ponta da órbita ele fica quando lançado (apenas a geometria da órbita). A questão é tentar apanhá-lo, quem receber os sinais em primeiro lugar. Passado uns dias, a própria rede de vigilância dos objetos espaciais, que tem uma resolução bastante grande…
Até o satélite ser detetado decorre ainda um conjunto de órbitas. E é importante detetá-lo não só através deste sistema desta rede de estações mas também de sinais de rádio, porque muitas vezes vários são lançados e estão ali perto, não se consegue perceber se é o objeto A ou objeto B ou C.
Normalmente é uma questão de tempo, a não ser que o satélite tenha uma qualquer anomalia e fique mudo, consegue-se saber que há ali um objeto e, mesmo por exclusão de partes, se os outros que foram lançados ao mesmo tempo na mesma órbita,consegue-se perceber que é aquele.
Este é um campo de investigação: a deteção nas primeiras horas onde está o objeto. Há vários sistemas que já têm sido propostos desde LEDs identificados da Terra até GPS que leva a bordo, portanto que depois reporta qual a sua posição.»

Episódio 33: O Laboratório de Análises Portátil de Isabel Gago

sexta, fevereiro 11th, 2022

Isabel Gago é um nome indissociável da história do Técnico: primeira mulher engenheira química, segunda mulher engenheira e a primeira mulher professora do Técnico. A herança que deixou à Instituição vai para além da memória enquanto professora, tendo também sido responsável pela construção de alguns objetos icónicos, como o “Laboratório de Análises Portátil”, ainda durante a primeira metade do século XX.
Falamos de “uma mala que se abre e que expõe todo o arsenal de material para ensaios e que descreve também todos os ensaios que se podem fazer, em particular os ensaios de microanálise, dentro do domínio da mineralogia”, explica João Salvador Fernandes, professor associado do Departamento de Engenharia Química do Técnico. Atualmente guardado no Departamento de Engenharia Química do Técnico, este Laboratório foi “feito ao milímetro” para permitir que os investigadores pudessem usá-lo em trabalho de campo sem precisarem de recorrer a mais nada. “Tinha que haver reagentes em quantidade para cada visita e, ao mesmo tempo, permitia fazer todo o tipo de ensaios sem ter que voltar ao laboratório”, explica João Salvador Fernandes, que descobriu o objeto já depois do falecimento de Isabel Gago (1913-2012).

Descrito ao pormenor em dois artigos da Revista Técnica de 1946, o objeto adapta uma mala de viagem e converte-a num laboratório. É composto por diversas “caixas” que são como estojos com portas de correr, expondo diversos tipos de material: frascos com reagentes, frascos de ácidos fortes, acessórios, almofarizes, uma lupa de relojoeiro, provetas, pipetas, uma ampulheta, vidros de relógio, lâminas, cadinhos e até uma pilha seca de 4,5 volts e outros materiais que já não estão. Entre eles, um está descrito na Revista Técnica como “não existindo no tamanho adequado para caber na caixa”: um maçarico de gasolina. “Havia (ainda) uma lamparina de álcool que se perdeu entretanto, e existia também um equipamento adequado a um tipo de ensaio – a técnica do método eletrográfico – que utilizava a pilha de 4,5 volts e que promovia a oxidação do minério de maneira a que se pudesse fazer a deteção dos seus elementos”, explica.
O interior do Laboratório Portátil, todo em madeira, feito provavelmente nas Oficinas do Técnico (nos anos 40 “conhecidas como oficinas de muito grande qualidade”), utilizava a parte de cima da mala como mesa de trabalho para que as análises pudessem ser feitas por cima dos joelhos do operador. O Laboratório é, de resto, um dos muitos exemplos do engenho que Isabel colocava na construção de “montagens experimentais”, feitos à medida, para que se conseguisse realizar os ensaios que ela pretendia. “Em termos de tamanho, precisão, era tudo desenhado por ela”. Entre os mais notáveis está ainda uma mesa de trabalho onde se pode arrumar material de laboratório. “Tinha que criar, porque não tinha meios. Os financiamentos na altura eram muito reduzidos e portanto era preciso ter muita imaginação para conseguir fazer as coisas e conseguir trabalhar, e conseguir resultados experimentais, como era o caso dela. Ela era muito ativa e quando tinha vontade de fazer uma coisa, não olhava a meios”, explica João Salvador Fernandes.

Isabel Gago dedicou todo o seu percurso ao Instituto Superior Técnico, desde que ingressou como aluna em 1933. Terminou a licenciatura em Engenharia Química em 1939 e foi, a par de Maria Luísa Pereira dos Santos, uma das duas primeiras Engenheiras Químicas licenciadas pelo Técnico. Permaneceu na Escola como assistente, seguindo a carreira de docente universitária até se aposentar em 1984, com 70 anos. Lecionou bastantes cadeiras, em geral na área da eletroquímica e da hidrometalurgia, e deixou marcas em várias gerações de alunos: “Quando havia uma sessão solene no Técnico em que ela estava presente a, fila – como eu digo para o ‘beija mão’ era uma coisa digna de se ver”, recorda João Salvador Fernandes. “Jubilou-se em 1984 e eu tê-la-ia tido como professora nesse ano, portanto já não a apanhei. Mesmo depois de se jubilar continuou a trabalhar por aqui até praticamente aos 80 e muitos anos”, complementa.
Para além da relação com estudantes e do rigoroso trabalho de investigação, ficam também na memória outros “diálogos” que Isabel Gago estabeleceu com autores dos livros que ofereceu à Biblioteca do Departamento. Por exemplo, num livro de John Bockris, um dos grandes eletroquímicos do nosso tempo, anotou o seguinte comentário numa passagem do livro: “Mas isso já eu sabia, eu tinha deduzido isso antes de ti”.

Conteúdo Extra: Duas histórias contadas por João Salvador Fernandes

Um: Isabel Gago, os computadores e a máquina Polaroid
«Conheci a professora Isabel quando comecei a trabalhar como monitor aqui neste laboratório, no laboratório de eletroquímica. Nós na altura todos os membros do grupo tínhamos secretária na mesma sala. Portanto, eu estava na mesma sala da Professora Isabel Gago e do meu orientador na altura e, portanto, convivíamos diariamente e na prática acabei por ajudar também um pouco a professora Isabel porque ela nessa altura estava a iniciar um trabalho em que precisava de tratamento computacional de dados. Então ela comprou um computador – estamos a falar de mais ou menos 1990 – e decidiu-se a trabalhar com ele mas não sabia programar. Portanto, acabei por fazer o trabalho de programação para o tratamento dos dados eletroquímicos que ela produzia. Toda a gente que trabalhou aqui, todos os colegas que ainda cá estão tinham um respeito enorme pelas caraterísticas específicas dela. Todos reconhecíamos que era uma pessoa fora do comum.
O grande empenho em fazer as coisas da melhor maneira, apesar de todas as dificuldades. Diria que o trabalho que ela fazia em 1990 e tal, em termos tecnológicos talvez já se pudessem fazer de uma maneira um pouco mais moderna, mas lembro-me que ainda utilizava por exemplo uma máquina Polaroid para tirar fotografias ao ecrã de um osciloscópio, isso era a técnica que se usaria nos anos 60 talvez mas nos anos 90 tínhamos alternativas um pouco mais viáveis e até rigorosas para tirar dados.
Ela contava diferentes histórias e teve um percurso também que passou por exemplo por Moçambique e pelos efeitos de uma linha de Alta Tensão que passava por cima de Lourenço Marques, na altura. E as dificuldades que ela teve para implementar toda uma gaiola de Faraday lá dentro, para conseguir fazer os ensaios dentro da própria gaiola. Todas estas histórias tinham uma parte bastante animada que mostravam bem o feitio dela.

Dois: Ser Mulher no Técnico no início do século XX
«Isabel Gago foi a primeira mulher professora no Instituto Superior Técnico, sendo também uma das duas primeiras Engenheiras Químicas e como engenheira apenas antecedida pela engenheira civil, Maria Amélia Chaves. Penso que ficou logo no Técnico depois de se formar, o que aconteceu em 1939. Foi um feito e lembro-me de ela contar que mesmo entre homens colegas ser mulher e estudante de engenharia não era bem visto. Lembro-me de ela contar que um colega teria dito “eu quando casar quero que seja com uma mulher a sério”. Há episódios marcantes em que ela assumiu papéis de engenharia pura, portanto um papel que nessa altura era visto como um papel de homem. Mas se pensarmos por exemplo no caso paralelo da engenheira Maria Amélia Chaves, que se dedicou mesmo ao exercício da Engenharia Civil – ela ia a obras, por exemplo. Naquela altura devia ser uma tarefa muito difícil de executar num mundo completamente de homens.
Terá sido muito prejudicada pelos tempos em que viveu, e mesmo assim fez algumas viagens, algumas visitas de estudo, fez algumas estadias em laboratórios estrangeiros, mas nada comparável com aquilo que nós podemos fazer hoje. E portanto a sua própria carreira acabou por ser marcada por essas dificuldades.
A engenheira Isabel Gago, no seu estágio de fim de curso, fez o estágio na Secil, e teve que se mudar para Setúbal para viver numa pensão. Nessa altura tinha que levar a mãe, porque uma menina não podia viver sozinha noutra terra. Segundo ela me contou, uma vez, no dia em que fez a primeira inspeção ao forno rotativo, a fábrica parou porque todos os homens quiseram ver a mulher a inspecionar o forno.
Isabel Gago sentia-se um pouco traída pela forma como foi tratada ao longo dos anos no Técnico, sem dúvida pelo facto de ser mulher. Ela podia ter tido uma carreira ou um estatuto melhor. Ela disse-o nas últimas entrevistas que deu quando começou a aparecer este movimento de reconhecimento e foi homenageada juntamente com a Prof. Sílvia Costa como as duas grandes primeiras professoras do Técnico. Sentia-se essa mágoa nela. Mas o tempo passou e penso que o Técnico já estava em paz com ela e ela em paz com o Técnico.
Deixou um livro publicado e deixou mais trabalhos. Naquela época não se faziam doutoramentos, não tinham oportunidade de os fazer, não tinha orientadores na altura no país, e não tinham possibilidades de ir para o estrangeiro, portanto ela até certo ponto foi um pouco prejudicada. Só passou a Professora com a Lei Pintassilgo, portanto com a criação do Estatuto da Carreira de Docente Universitária, mas todo o conhecimento por um lado e a maneira de estar e o profissionalismo e a postura dela perante a vida ficaram para todos nós».

 

Episiódio 32: Rhino, o 1.º Robot pedagógico do Técnico

sexta, fevereiro 4th, 2022

“Robot Rhino, os motores são passo a passo”. Esta era a resposta que o primeiro robot pedagógico do Técnico dava, nos anos 80, ao jovem aluno do Técnico, Mário Ramalho, durante o seu trabalho de Mestrado da cadeira de robótica, quando este o programava para fazer movimentos. Em resposta, o estudante n.º 24066 “dizia” ao motor “avança dez passos” e o robot ia dizendo quantos passos faltavam. “Se eu contasse o número de passos que faltavam eu conseguia saber se ele estava a bater nalguma coisa. Nós aí conseguíamos inverter-lhe o movimento e tentar deslocá-lo para um dos lados”, explica o agora professor auxiliar do Departamento de Engenharia Mecânica. “Era na altura a fina flor da tecnologia, como se costuma dizer”, defende.
Começou a trabalhar com o Rhino (o nome não tem qualquer relação com a palavra rinoceronte; é apenas o registado pela empresa que o comercializou) nas cadeiras dos últimos anos de mestrado, entre 1984 e 1986, e continuou a aprender com ele e a usá-lo para ensinar já como professor. O robot encontra-se atualmente exposto numa vitrine do edifício de Mecânica III, no campus da Alameda, e é um engenho de memórias de muitos estudantes do Técnico dos anos 80 e 90. “Na altura [quando o Rhino chegou] eu não conhecia mais nenhum robot aqui no Técnico”, recorda Mário Ramalho. O entusiasmo era tal que, numa demonstração na Escola Escola Náutica, os alunos interromperam as aulas quando souberam que tinham lá um robot a funcionar.

O Rhino era essencialmente um robot de aprendizagem, o primeiro do Técnico. Compensava uma não tão brilhante capacidade de repetir movimentos com a possibilidade de ser uma poderosa ferramenta de robótica para uma geração de estudantes. Como grande novidade tinha o seu sistema de comando eletrónico, que permitia que os movimentos independentes do braço fossem programados. Por outras palavras: “Eu podia pôr o robot a fazer os movimentos que quisesse, que me interessassem, manter isso em memória e ele ia repetir essa sequência de movimentos sempre que fosse necessário”. É o chamado grau de liberdade do robot que aplica esses movimentos repetitivos de forma prática em todas as tarefas como colocar parafusos, apanhar peças à saída da máquina e colocá-las de maneira ordenada numa caixa, aplicar colas, linhas de soldadura, entre outras. Movimentos razoavelmente complexos para serem feitos pelas máquinas que existiam até essa altura.

“As demonstrações que nós fazíamos com os alunos passavam por, baseando na base rotativa, programar movimentos de alternar peças, colocar peças umas em cima das outras e tarefas desse tipo”, relembra. No fundo, a pequena e frágil base do Rhino não era muito diferente do princípio que vemos hoje em dia nas linhas de montagem da indústria automóvel, por exemplo. “Basicamente o robot tem um braço, com um número necessário de motores e é uma estrutura articulada juntamente como uma caixa de comando. Eles continuam a ser programados. Hoje têm uma multiplicidade de sensores que lhes permitem tomar decisões, ajustar-se e fazer tarefas de uma maneira muito mais eficiente do que o robot Rhino tinha naquela altura”, descreve Mário Ramalho.

A evolução tecnológica avassaladora e o passar do tempo expuseram algumas das fragilidades de Rhino. Por exemplo: se o braço do robot batesse em algum objeto, ele pura e simplesmente tentava continuar a fazer o movimento até alguém o parar. Hoje em dia, os robots ao detetarem uma colisão param e invertem o movimento. A vida ativa do Rhino terminaria no início dos anos 90, com a renovação dos laboratórios de Engenharia Mecânica e com a chegada de robots de outra geração capazes de admitir mais sistemas de programação, mais fiáveis, e precisos. No entanto, os desafios que se exploraram com o Rhino mantiveram-se nas máquinas que lhe seguiram. “Ele era um brinquedo muito interessante, que dava para desenvolver todas essas aptidões desde o esquema de programação aos problemas que advinham da falta de repetibilidade de fiabilidade, etc, que se põem também nos robots seguintes”, explica Mário Ramalho. O Rhino testemunhou o arranque de um espantoso processo de transformação industrial entretanto consolidado e transformação do que na altura era “absolutamente fabuloso” em ferramentas que hoje fazem parte do quotidiano. “Há robots em todo o lado, a operar em todas as áreas, mesmo aquelas onde na altura se dizia que não iam entrar, como a agricultura… uma panóplia de utilizações perfeitamente espantosa”.

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