Saltar para o conteúdo

Author Archive

Episódio 110: As “Notas Histórico-Pedagógicas” de Alfredo Bensaude

sexta, setembro 8th, 2023

Formar pessoas e não técnicos. Se pudéssemos resumir numa frase as “Notas Histórico-Pedagógicas” de Alfredo Bensaude, primeiro diretor do Instituto Superior Técnico (entre 1911 e 1920) e ainda hoje uma profunda inspiração para a Escola, esta abertura seria uma forte possibilidade. Mas se quisermos ir mais fundo, podemos recorrer às palavras de Pedro Lourtie, antigo estudante e docente do Técnico, que foi também diretor da Editora IST Press: “As ideias pedagógicas que ele apresenta são efetivamente revolucionárias. Aliás, não há muita gente a aplicar algumas das ideias que ele defende aqui nas notas Histórico-pedagógicas”.
O livro, editado pela primeira vez em 1922 (e reeditado pela IST Press em 2003), apresenta “ideias que há cada vez mais gente a defender” por nunca terem perdido a atulidade. Pedro Lourtie destaca algumas, após nova leitura da obra. Um: “Ele tinha uma ideia de que o ensino devia ser progressivo, no sentido em que não se vai colocar o aluno perante problemas que são muito complexos e que, provavelmente, ele não consegue resolver. Portanto, colocam-se apenas problemas que ele consegue resolver e vai-se progressivamente apresentando problemas cada vez mais difíceis para que ele possa acompanhar e, no fundo, não ‘descole’, para que não haja insucesso”. Dois: “Era completamente contra o chamado ‘ensino verbalístico’. Verbalístico é o termo mesmo dele – o ensino oral, unilateral, em que o professor expunha e o aluno tinha de aprender a partir disso. Ele tentava compensar isso introduzindo muito o ensino aplicado, a prática, ou seja, do ensino teórico partia-se para a prática”. Três: “Ele era contra outra coisa que ainda agora se discute – a ideia de que o exame final não é a melhor forma de avaliação. As pessoas aprendiam, estudavam o suficiente para conseguir resolver o exame e, passado uns tempos, tinham esquecido completamente aquilo que se tinha passado. Porquê? Porque a atitude do aluno não era uma de aprendizagem, mas sim de passar nos exames. O importante é o aluno ser capaz de aprender, de querer aprender”.

O perfil de Alfredo Bensaude e o seu génio foi já explorado no 1.º episódio deste podcast (Ouvir Episódio 1 – O violino de Bensaude), em que se recorda a história de um jovem estudande de Engenharia de Minas, na Alemanha, que suspendeu os seus estudos durante um ano para construir violinos. Um deles está ainda hoje na sala do presidente da Escola. “Tecnicamente, é muito difícil construir um violino com as características que tem e, por outro lado, ele simboliza um pouco daquilo que é, tem sido e, espero, continuará a ser a matriz cultural do Técnico em termos de formação”, defendia Rogério Colaço, presidente do Técnico, falando sobre o violino. Mas o legado de Bensaude vai muito para além desse instrumento. Essa “matriz” acabaria por inspirar também um novo modelo de ensino da Escola, aplicado em 2021.
Raquel Aires Barros, professora do Departamento de Bioengenharia do Técnico, esteve envolvida no desenho do modelo de ensino e práticas pedagógicas. “Dados os desafios a nível internacional e no próprio país, a crescente competitividade internacional das escolas mais reconhecidas, era necessário que refletíssemos sobre o modelo de ensino do Técnico, as suas práticas pedagógicas, e foi isso que se fez”, explica. O grupo de trabalho “Comissão de Análise do Modelo de Ensino e Práticas Pedagógicas do Instituto Superior Técnico” identificou a necessidade de aumentar a flexibilidade nos diferentes cursos, de tornar a aprendizagem menos baseada em exames, de aumentar a interligação entre as várias disciplinas, de introduzir as chamadas soft skills – “um engenheiro, hoje em dia, só é completo se tiver uma forte formação básica e técnica, mas também é necessário introduzir outras competências para a sua formação. Saber dirigir equipas, saber trabalhar em equipa, saber gerir bem o seu tempo, ser mais eficaz, mais eficiente…”. A inspiração nas notas de Bensaude não é rejeitada: “Daí também a nossa ideia de haver mais ensino laboratorial, mais ensino baseado em projetos… pode ser um bocadinho mais complexo, acaba por dar mais trabalho, mas acho que só temos a ganhar com isso em termos de aprendizagem”, defende Raquel Aires Barros. Vem também daí a importância de continuar a publicar estas notas pedagógicas com mais de um século, simplificada em dois pontos por Pedro Lourtie: “Primeiro, porque isto é a história do Técnico. É um documento essencial para perceber o início do Técnico. Segundo, porque tem ideias das quais não fazia mal nenhum que as pessoas se lembrassem de vez em quando”.

 

Extra: Um modelo de ensino capaz de ensinar a criatividade?

«Inovação, criatividade, sim… nós estamos na Universidade de Lisboa e o que nós identificámos é que o aluno poderia escolher, por exemplo, fazer música, uma cadeira de política. Consoante os seus objetivos, ele poderia escolher diferentes disciplinas, artes, disciplinas mais sociais… poderia escolher o tipo de disciplina. Pode escolher o que quiser dentro das escolas da Universidade de Lisboa – Direito, por exemplo, ou então uma disciplina mais relacionada com ciências ou matemática…
Olhámos para a Carnegie Mellon University (CMU), para o MIT, para a DTU na Dinamarca, para a EPFL, para a ETH, para a KTH na Suécia, para a Melbourne University da Austrália, para o Politécnico de Torino na Itália, uma universidade em Singapura, para a TU Delft na Holanda, para a Universidade Católica do Chile, para a Universidade Politécnica da Catalunha, para a Universidade Politécnica de Madrid… portanto, foi uma variedade de universidades. Selecionou-se unidades de referência e foram perceber o que essas universidades ofereciam. Daí depois nasceram os 12 aspetos que eles consideraram relevantes e necessários de introduzir no novo modelo de ensino.

[Os 12 aspetos enumerados no relatório final da comissão:
· Uma formação de base sólida em ciências da engenharia
· Internacionalização
· Curso geral de ciências de engenharia de primeiro ciclo lecionado em inglês
· Anos letivos organizados de modo a potenciar maior foco e trabalho contínuo
· Diversidade de diplomas
· Competências transversais integradas nas unidades curriculares de que falámos há pouco
· Projetos integradores, multidisciplinares
· Formação em empreendedorismo e inovação
· Uma forte ligação entre empresas e academia
· Flexibilidade nos percursos académicos
· Boas condições de ensino, estudo e vivência para a comunidade académica
· Um ensino com uma componente humanista
· um ensino baseado em projetos, em investigação, em relação com o mercado e com uma filosofia hands-on]

Se nós formos ler as notas de Alfredo Bensaude, ele é bastante crítico à avaliação ser feita somente por exames. Ele refere mesmo isso, “entre nós, tem-se estudado, em geral, mais para o exame do que para o saber”, e também refere que (não só tem a ver com a avaliação e a forma da avaliação ser feita por exame final) provém do nosso ensino verbalista. Daí também a nossa ideia de haver mais ensino laboratorial, mais ensino baseado em projetos… pode ser um bocadinho mais complexo, acaba por dar mais trabalho, mas acho que só temos a ganhar com isso em termos de aprendizagem.»
(Raquel Aires Barros)

 

Episódio 109 – O Calorímetro

sexta, setembro 1st, 2023

Medir calor através da variação da temperatura. Esta acção passou, desde há mais de um século (1898), a ser operacionalizada por um novo instrumento criado para o efeito – o calorímetro, com um exemplar ainda hoje a marcar presença no campus Alameda do Instituto Superior Técnico. “Eu confesso que quando olhei para aquilo pela primeira vez não acreditei que fosse um calorímetro”, introduz Hermínio Diogo, professor no Departamento de Engenharia Química do Técnico. “Estava à espera que um calorímetro tivesse um sistema de agitação ligeiramente diferente, e esse sistema de agitação é manual. Parece quase a roldana de um poço. Modernamente, obviamente, isso é tudo feito eletricamente. Num período intermédio, houve uma altura em que aquilo tinha uma pequena hélice, uma turbina, em que o motor fazia a agitação”, aprofunda. O professor do Técnico lembra-se de ver este calorímetro desde os seus tempos de aluno, exposto junto ao anfiteatro de Química. “Na altura nós até dizíamos que era o ‘calorímetro do vinho do Porto´” [risos], por estar revestido de tiras de madeira que faziam lembrar um pequeno barril. 

 

O calorímetro integra o espólio do Departamento de Química e, acredita-se, terá pertencido a Herculano de Carvalho (ouvir Episódio 49 – A Máquina de calcular, de manivela, de Herculano de Carvalho), diretor do Técnico entre 1938 e 1942. O instrumento esteve ligado à investigação que procurava determinar o poder calorífico de combustíveis, nomeadamente de carvões, enquadrada nos estudos para aproveitamento de minas de carvão do país. “Estamos a falar, provavelmente, entre os anos 30 e os anos 60, em que essas medidas foram feitas, usando esse aparelho. Essas e outras medidas eram necessárias para o poder energético, digamos assim, dos combustíveis. Não só do carvão, mas provavelmente de outros combustíveis sólidos e líquidos necessários na altura”, explica Hermínio Diogo.

“Começou por pensar-se em carvões para aquecimento, mas também para geração de eletricidade. Houve até contratos de desenvolvimento industrial em que, por exemplo, foi demonstrado o funcionamento de uma caldeira de leito fluidizado que tinha depois a possibilidade de passar o vapor gerado nessa caldeira numa turbina a vapor para geração de eletricidade”, explica Isabel Cabrita, atualmente professora no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) e antiga diretora do Departamento de Energias Convencionais no Laboratório Nacional de Engenharia e Tecnologia Industrial. Na altura em que assumiu esse cargo, nos anos 80, teve a oportunidade de levar consigo o calorímetro mas tal não viria a acontecer. “Levei os equipamentos que havia e foram selecionados precisamente os equipamentos mais modernos”, justifica. “Na altura o calorímetro já era uma peça de museu. Eu até estou satisfeita que tivesse ficado porque, ao fim de tantos anos, vim ter com ele, e se o tivesse levado comigo talvez não tivesse essa sorte, uma vez que neste momento não temos um museu de equipamento no laboratório”, defende. Hermínio Diogo concorda, com pragmatismo: “Está cá, está preservado, vamos preservá-lo e a história está contada”.

 

Episódio 108 – O espetrómetro de desvio constante

sexta, agosto 25th, 2023

Espetro. No dicionário Priberam: “registo da dispersão ou distribuição de energia ou radiação”. Na prática, com recurso a espetrómetro, o seu registo permite identificar o tipo de luz emitida e os compostos que estão a gerar essa a luz. Uma outra forma de descrever o espetrómetro de desvio constante, recorrendo a palavras de João Mendanha Dias, professor no Departamento de Física do Instituto Superior Técnico e investigador no Instituto de Plasmas e Fusão Nuclear (IPFN): “é um aparelho que normalmente pega em sinais ondulatórios e hierarquiza-os nas suas frequências. Neste caso, como é um espetrómetro ótico, olha para as ondas eletromagnéticas (que é a nossa luz, na zona do visível) e vai separá-las nas suas frequências. No nosso caso, na luz visível, é nas várias cores do vermelho ao azul”.
Datado de 1919, o espetrómetro tinha como principal função a análise química de elementos – “porque os elementos têm níveis discretos de excitação e vão emitir em várias frequências muito precisas, e isso dá uma assinatura do próprio elemento, como se fosse um código de barras. Se nós olharmos para aquele elemento, sabemos ‘aqui é ouro, é prata, é oxigénio, é carbono’, explica João Mendanha Dias. Estamos a entrar na “parte quântica do próprio átomo”, onde os eletrões se mexem à volta do núcleo, com energias bem definidas. Através do espetrómetro ótico, é possível decompor a luz nas suas componentes individuais, com cores que correspondem a diferentes frequências ou comprimentos de onda.

Esta ferramenta foi crucial para, por exemplo, algumas das grandes descobertas da área da astronomia. Nas primeiras décadas do século XX, acumularam-se uma série de estudos que conduziram os investigadores para a teoria do Big Bang e da Origem do Universo. Edwin Hubble (1889-1953), por exemplo, “viu que o espetro das estrelas mais distantes estava cada vez mais para o vermelho”. Ou seja: “verificou que quanto mais distante estava a galáxia, ou a estrela, mais o desvio era para o vermelho: ela estava a movimentar-se com uma velocidade maior. Se todos os objetos que nós vemos estão a afastar-se uns dos outros, isto quer dizer que o Universo está em expansão, como se fosse uma explosão”. explica João Mendanha Dias. “Medindo os espetros, vê-se as riscas de absorção do cálcio das estrelas e, vendo que essas riscas se vão desviando cada vez mais para o vermelho, chegou-se à conclusão que estrelas mais distantes andam a uma velocidade cada vez maior. Não terá sido um espetrómetro destes, porque os espetrómetros que estão nos telescópios estão desenhados propriamente para eles, mas os fundamentos são os mesmos e da mesma época”, complementa.

O espetrómetro de desvio constante do Técnico foi construído por Adam Hilger, em Londres. Pensado para os químicos usarem na identificação de vários elementos, foi desenhado com caraterísticas que o tornavam mais portátil, nomeadamente um prisma especial, que lhe permite ter dois braços a 90 graus, fixos. Com cerca de um metro de comprimento, construído em ferro, não necessitava de energia para funcionar, “apenas” luz. A descrição do objeto continua nas palavras Gonçalo Tavares, professor no Departamento de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores do Técnico e investigador do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores (INESC-ID). “Há duas inovações neste espetrómetro: o facto de os braços serem fixos, chama-se de desvio, um espetrómetro de desvio constante, e um tambor que permitia ajustar o comprimento de onde central de observação. Portanto, isso fez com que o espetrómetro na altura tivesse tido, além da portabilidade, um grande sucesso”.
“É um aparelho absolutamente notável para a altura”, defende. “Eu olho quase como uma peça de arte. Para mim, é fascinante o trabalho minucioso que têm estes suportes”, complementa João Mendanha Dias.
Como todos as peças que integram a coleção do Museu Faraday, este objeto foi totalmente recuperado pela equipa do Museu, estando operacional. Um ressuscitar da máquina que tinha sido utilizada pela última vez por Manuel Alves Marques (ouvir episódio 18 – O 1.º laser em Portugal), o primeiro a realizar um doutoramento pelo Instituto Superior Técnico (em 1962).

Episódio 107 – A sonda da ressonância magnética

sexta, agosto 18th, 2023

“Ainda me lembro da nossa alegria e curiosidade quando vimos entrar, por uma abertura feita na parede exterior da sala no 4.º piso, um íman com mais de uma tonelada”. Nesta memória de José Ascenso, professor aposentado do Departamento de Engenharia Química do Instituto Superior Técnico, estamos em 1975 e o buraco aberto na parede do complexo interdisciplinar do campus Alameda expunha temporariamente o primeiro laboratório de ressonância magnética do Centro de Química Estrutural (CQE). Lá fora, na Rua Alves Redol, trânsito cortado e uma grua erguia o equipamento, demasiado pesado para ser transportado pelo elevador. 

O “íman” era, na verdade, o primeiro espetrómetro de ressonância magnética nuclear (técnica conhecida como NMR) que existiu no Técnico / CQE. A NMR “é uma das técnicas mais importantes para o estudo da estrutura molecular das substâncias em solução no estado sólido e semissólido e está, por isso, associada aos importantes desenvolvimentos verificados na área da Química, Física, Bioquímica, Materiais e Saúde, onde a tomografia por ressonância magnética é hoje uma técnica bastante usada de diagnóstico”, contextualiza José Ascenso. 

O espetrómetro chegou ao Técnico dois anos depois de António Xavier (1943-2006) ter fundado o Grupo de Biofísica Molecular, que José Ascenso viria a integrar. Durante cinco anos serviu, de base à investigação feita pela comunidade do Técnico. “Foi nesse equipamento que eu e alguns dos meus colegas fizemos grande parte da nossa tese de doutoramento”, recorda. Estudou-se, por exemplo, “a aplicação de iões lantanídeos para a determinação de estruturas de moléculas”, alguns deles hoje usados como agentes de contraste para fazer as imagens médicas por ressonância magnética. “Dá-se às pessoas uma dose daquele agente de contraste. Os protões da água relaxam mais depressa com estes agentes de contraste e isso permite distinguir uma zona que está afetada por um tumor, ou qualquer coisa do género, das partes que estão normais”, descreve José Ascenso. “Claro que não existia a imagem médica nem nada parecido, mas estava a tentar desenvolver-se estes agentes de contraste”, recorda. 

Desse equipamento original sobreviveu, para contar a história, apenas uma sonda que servia para detetar os sinais das amostras. José Ascenso, que a guardou, descreve-a em detalhe: “é o modelo GNN-DBT-F-10P100E, da Jeol – um fabricante de espetrómetros de NMR que existe ainda hoje (é uma firma japonesa). Era montada entre os polos norte e sul do eletroíman, ficando o campo magnético perpendicular à sonda, o que não acontece hoje, em que o campo magnético fica segundo o eixo da sonda”.

Em 1980, com a chegada de um novo espetrómetro com mais potência e mais leve, não sobrou alternativa senão desmontar o equipamento. Entrou inteiro, de grua, pela parede esventrada e saiu desmontado em peças, não sem alguma dor. “Não nos queríamos desfazer do equipamento, mas era impossível ter na mesma sala aqueles dois equipamentos, porque os ímanes não eram blindados e, portanto, o campo magnético de um afetava o campo magnético do outro”, explica. E como se fez? “Tivemos de chamar o pessoal das oficinas e eles, peça a peça, desmontaram o íman, que foi para a sucata, teve de ser. Não havia hipóteses”.

 

 

Episódio 106: O MeteoTécnico

sexta, agosto 11th, 2023

Foi no Técnico que nasceu o primeiro modelo montado em Portugal com a capacidade de fazer previsões meteorológicas diárias. O MeteoTécnico surgiu em 1999 a partir da vontade de dar resposta a preocupações ambientais, através da compreensão da atmosfera. Perante as perguntas ‘onde vão parar os poluentes que saem de uma chaminé de uma fábrica?’ ou ‘para onde vão os poluentes que saem da central de Carvão de Sines?’, surgiam também respostas a ‘Como saber que tempo vai fazer?’. “Era necessário ter a capacidade de fazer uma modelação adequada da atmosfera. Modelar a atmosfera é perceber quando chove, quando a temperatura varia, como é que as nuvens se comportam, que é no fundo usar o modelo de previsão meteorológica. E foi isso que o levou a querer montar um modelo de previsão meteorológica aqui no Técnico que pudesse dar resposta a estas preocupações em termos ambientais”, explica Tiago Domingos, professor de Ambiente e Energia no Instituto Superior Técnico e filho de José Delgado Domingos (1935-2014), professor catedrático do Técnico e criador do modelo.
Para a executar esta ideia, era necessário adotar um modelo de previsão que gerasse um enorme volume de dados, o que exigia computadores capazes de os processar com a velocidade necessária. Os servidores (como os da imagem) deram, ao longo dos anos, corpo a uma ideia que começou a ganhar forma no trabalho de mestrado desenvolvido por Tânia Sousa, a partir de 2001. A antiga estudante de Engenharia do Ambiente, e hoje professora do Técnico, dedicou a sua tese à montagem do sistema MeteoTécnico, por proposta de Delgado Domingos. “Naquela altura, grande parte do tempo dele passava à volta disto. Era preciso assegurar que aquilo funcionava, que os dados eram descarregados, que aquilo estava a funcionar, que eram produzidos os resultados do modelo e que esses dados ficavam disponíveis”, recorda. A partir de um modelo meteorológico americano (o MM5) disponível na internet, e com dados iniciais cedidos pelo Instituto de Meteorologia da Galiza, começavam a surgir os primeiros resultados um ano depois. “Depois de implementar o modelo, adaptámo-lo. O que era possível melhorar com a informação local que tínhamos, nós fizemos. Depois de fazer ajustes, parametrização das nuvens e precipitação, por exemplo, começámos a obter resultados, que foram bastante bons”. Um ano depois era a vez de Jorge Palma, atual engenheiro do ambiente, terminar o curso e dar continuidade ao projeto em colaboração com Tânia Sousa. “Apanhei o modelo já montado. O meu papel era mais de manter o sistema, o que não era pouco: os dados têm de ser processados, tem de se ter programas que leiam os outputs do modelo e possam ser transformá-los de uma forma que possamos vê-los”, explica. Após atualizações sucessivas, o MeteoTécnico conta hoje com uma média de visitas diárias de cerca de 3 mil pessoas. “Tenho tido um feedback muito positivo: há pessoas a dizer que são as melhores previsões em Portugal”, revela Jorge Palma. A comprovar essa crença, surge a história contada por Tiago Domingos, passada na competição de ténis Estoril Open (em 2007 ou 2008): “Estava-se à beira de cancelar ou não a final por causa da chuva e o professor Cruz Serra, que na altura tinha funções dirigentes aqui no Técnico, estava lá como convidado. Naquele momento diz aos organizadores: ´o Técnico tem previsão meteorológica, a previsão diz que não vai chover, não tenham medo, podem fazer a final e não é preciso cancelar por causa da chuva´”, recorda.

Melhor do país ou não, o MeteoTécnico continua também a desempenhar o seu papel em contribuir para a investigação que se faz no Centro de Ambiente e Tecnologia Marítimos (MARETEC – LARSyS), em colaboração com vários grupos de investigação nacionais. Já o portal MeteoTécnico continua acessível com previsões, gráficas, mapas e até frases inspiradoras sobre o tema. Para todos e gratuitamente. Foi sempre assim desde 2001.

História Extra: O pioneirismo de José Delgado Domingos explicado pelo filho
«O MeteoTécnico começa com o meu pai, professor José Delgado Domingos, que era professor catedrático aqui no Técnico, no Departamento de Engenharia Mecânica. Nos anos 90, chegou à conclusão que era preciso montar um sistema de previsão meteorológica aqui no Técnico. As razões já vinham de trás. Ele originalmente, nos anos 60, lançou a investigação em Engenharia Mecânica aqui no Técnico, foi o primeiro autor de um artigo científico na área da Engenharia Mecânica em revistas internacionais, nos anos 60, e começou a trabalhar nas questões de termodinâmica e transferência de energia e massa. Nos anos 70, começou a dedicar-se às implicações ambientais destas questões. Esteve associado ao debate sobre energia nuclear em Portugal. E também esteve associado à questão da poluição atmosférica. Nos anos 70 fez alguns trabalhos, numa visão simplista de como é que funcionava a atmosfera para poder perceber como é que os poluentes se dispersam na atmosfera. Entretanto foi maturando as ideias sobre este assunto e no início dos anos 90 foi um dos criadores da Licenciatura em Engenharia do Ambiente, do qual o Jorge e a Tânia foram alunos e eu a Tânia somos dois professores. E concluiu que era fundamental ter uma boa capacidade de perceber como é que a atmosfera funciona. Para perceber quando os poluentes saem de uma chaminé de uma fábrica, onde vão parar. Os poluentes que saíam da antiga central de carvão de Sines, se iam para a Lisboa, para Setúbal ou Tavira… Para fazer isso concluiu que era necessário ter a capacidade de fazer uma modelação adequada da atmosfera. Modelar a atmosfera é perceber quando chove, quando a temperatura varia, como é que as nuvens se comportam, que é no fundo usar o modelo de previsão meteorológica. E foi isso que o levou a querer montar um modelo de previsão meteorológica aqui no Técnico que pudesse dar resposta a estas preocupações em termos ambientais.
Simultaneamente acabou por montar um modelo de previsão meteorológica que não só permite dar resposta a estas preocupações ambientais mas também permite fazer previsão meteorológica, ter todos os dias disponível uma previsão para o dia a seguir, naquilo que foi o primeiro modelo montado em Portugal com a capacidade fazer previsão diariamente. O próximo passo foi montar este sistema e pô-lo a funcionar e a fazer previsão meteorológica.
O meu pai faleceu em 2014 e desde então tem sido o Jorge que tem mantido a tocha em andamento e continuado a atualizar o sistema e a fazê-lo progredir.»
(Tiago Domingos)

 

Episódio 105: A consola de teleoperação espacial

sexta, agosto 4th, 2023

Parece uma imagem do futuro: Um robot em Marte e um ser humano na Terra a receber todas as suas sensações. Com a mão esquerda sente a orientação em que o robot está e, com a mão direita, sente se o robot está, ou não, a perder tração. No presente, este é já um objetivo real da consola de teleoperação espacial construída por investigadores do Instituto Superior Técnico e do Instituto de Sistemas e Robótica de Lisboa (ISR-Lisboa). “Por exemplo, se o robot estiver a perder tração de deslizamento, sente-se na mão direita, com a luva, uma sensação de alguém estar a tocar-nos com a mão na pele, a deslizar um dedo pela pele. Se o robot estiver preso, sentimos um pulsar na mão a dizer-nos que o robot está preso e que por isso é que não está a andar”, exemplifica Rodrigo Ventura, professor auxiliar no Técnico e investigador no ISR-Lisboa.
A consola foi desenvolvida para ser usada numa missão analógica a Marte, que decorreu em Israel, em 2021. A sua particularidade: tem dispositivos táteis que permitem melhorar a noção que um operador tem quando está a reparar um robot à distância. “A mala foi construída para poder ser um dispositivo que contém tudo o que é necessário para teleoperar um robot, poder observar a imagem da câmara do robot e poder “sentir” aquilo que é a operação do robot, aquilo que, no fundo, ele está a “sentir” conforme se locomove no seu cenário”, aprofunda Rodrigo Ventura. A esse processo chama-se “mapeamento de um-para-um”: em vez de estarmos a tentar simular o que está a acontecer fisicamente com aquele robot, estamos a transmitir para uma pessoa exatamente o que está a acontecer com ele. Para além da informação visual, este objeto “faz apelo a outros sentidos”. A ideia surgiu para dar resposta ao excesso de informação visual que, mesmo em operadores experientes, tem causado algum sobrecarregamento cognitivo no processo de tomada de decisões em tempo real. “Já há alguns anos que temos vindo a estudar formas de tirar essa informação desse canal visual para usar outros sensores, como os tácteis”, explica.

Esta consola de teleoperação espacial é uma espécie de mala, um pouco maior que as convencionais malas de viagem, pesa cerca de 12 kg, com um portátil e um conjunto de dispositivos no seu interior. Como foi desenhada para missões analógicas a Marte em que os investigadores e criadores não estão presentes, é preparada de modo a que um astronauta análogo, possa montar a mala e colocá-la pronta a utilizar. “Há um conjunto de instruções que o operador tem de percorrer para montar a mala. Os fios têm de ser retirados e montados na borda da mala. Existe uma luva que o operador também tem de usar, existe um joystick que tem de ser tirado da mala e montado e, portanto, é um produto pronto a usar”, explica.
Entre os resultados já alcançados com este projeto, destaca-se um mais surpreendente para os investigadores envolvidos: “o dispositivo de altitude não só nos dá uma boa noção da orientação do veículo ou robot mas também uma perceção muito fidedigna do tipo de terreno ou do tipo de perturbações sobre as quais o robot ou veículo está a andar. Isto permite ter uma noção sobre se, por exemplo, podemos acelerar o robot até ao máximo porque temos noção de que o piso nos permite isso, que nos dá essa tração, ou se, por ser gravilha, ao acelerarmos estaremos a derrapar”, exemplifica.

Integrado no projeto europeu MEROP (More Effective Remote Operation of Planetary ground robots using multimodal interfaces), e com génese em projetos de robots de busca e salvamento (ouvir Episódio 45 – Raposa, busca e salvamento), a estrutura que surgiu em 2019, a partir de uma iniciativa da Agência Espacial Portuguesa e do ‘AMADEE’, organizado pela Austrian Space Forum, integrou a missão ‘AMADEE 20’, realizada no final de 2021. Para 2024 está já agenda a próxima missão do projeto. Enquanto se investiga e se espera, esta “mala” continua a gerar a despertar o interesse de quem visita o ISR-Lisboa, como aconteceu com o astronauta americano, Danny Olivas. Jéssica Corujeira, estudante do doutoramento do Técnico e investigadora do ISR-Lisboa, conduziu o encontro que resume assim: “É quase como estar com uma estrela. Para mim foi espetacular poder mostrar o nosso trabalho e ter o feedback do astronauta. Ficou maravilhado. Achou interessante termos pensado nessas formas de desenvolvimento e usado dispositivos hápticos para dar feedback que de outra forma seria dado visualmente, e que poderia não ser a melhor forma de perceber-se o que está a acontecer com o robot que não está em linha de vista”.

Episódio 104: Stork, a pedra elástica

sexta, julho 28th, 2023

Não salta mas permite saltar. E também não é bem uma pedra, mas antes um compósito constituído por vários pedaços de pedra, envolvidos por camadas de fibra e resina e também por cortiça. A história da Stork, descrita pelos seus criadores como a “pedra saltitona”, começou a ser desenhada há muitos anos, quando Pedro Miguel Amaral, professor do Departamento de Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico, no início da sua carreira de investigação, integrou um projeto de investigação europeu para estudar a pedra natural e o seu comportamento ao corte. “Aquilo foi tudo uma grande interrogação para mim na altura recém-formado engenheiro de materiais. Porque é que eu iria estar a trabalhar agora em coisas como “calhaus”? Na altura, achei que o desafio era suficientemente interessante para aceitá-lo e nunca mais larguei a pedra natural e o fascínio que tenho pelo desenvolvimento em torno deste material e desta indústria”, recorda. 

Voltando aos saltos com pedras e ao porquê do uso da expressão “pedra saltitona” para descrever este tipo de material: “Nós é que saltamos em cima deles e eles não se destroem e, portanto, a sensação que dá é que, quando nós saltamos, a pedra ajuda-nos a saltitar com ela”. Para chegarmos a este projeto foi essencial a chegada de Joel Pinheiro, atual responsável pela Autorque, uma empresa fornecedora de sensores para bicicletas elétricas. Em 2013 era estudante de Engenharia Aeroespacial e juntava o seu interesse pela utilização de cortiça no espaço, em revestimento de satélites, à área das pedras naturais e dos compósitos. “Tínhamos ali a oportunidade de encontrar funcionalidades acrescidas que não existiam até então nos produtos normais de pedra natural”, sublinha Pedro Miguel Amaral. Nascia assim o grande desafio (e, na altura, bloqueio) da investigação de Joel Pinheiro: “Como é que eu consigo dar alguma – vou chamar-lhe assim – inteligência à pedra natural? Quando digo inteligência é na medida em que a inteligência vem do ser humano, ao introduzir novas funcionalidades e novas características num material que, à partida, tem milhões e milhões de anos”. “É evidente que nós não conseguimos transformar a pedra num ser inteligente, isso parece-me que é mais ou menos óbvio para qualquer material, mas conseguimos torná-la mais adaptada e mais “certa” para as aplicações que vamos utilizar”, complementa Pedro Miguel Amaral. No caso, a stork (nome que funde as palavras stone e cork – pedra e cortiça – e ao fazê-lo fica com o nome “cegonha” em inglês) consegue ter uma “pseudo-elastiicdade”, recuperando a sua forma inicial depois ser pressionando por um peso maior. 

Essa experiência pode ser confirmada no Laboratório de Ensaios Mecânicos e de Materiais do Departamento de Engenharia Mecânica, no campus Alameda do Instituto Superior Técnico, onde nascerem e se estudam pedaços de “stork”. “As relações de espessuras entre a cortiça e a pedra, bem como o tipo de fibras que estão aplicadas e a orientação das mesmas, podem ser trocadas para ir ao encontro das características desejadas. Essa é a componente de inteligência que nós aqui colocamos”, aprofunda Joel Pinheiro. O universo de investigação e de experimentação é, desse modo, quase infinito, tal como a junção entre pedra natural e cortiça. “Parecia óbvio que tínhamos de fazer este caminho juntos, e foi assim que isto foi começando. Se nós formos capazes de pegar numa pedra natural e, de repente, tiramos-lhe quatro vezes o seu peso e acrescentarmos características que ela não tinha… se calhar isto tem hipótese de poder vingar. E foi um bocadinho esta a forma como nós olhámos para isto inicialmente, ainda um bocado imberbe nessa altura. Não sabíamos bem para onde é que íamos conduzir a coisa”, explica Pedro Miguel Amaral.

O que se sabe agora é que o conceito e funcionalidades da Stork começou a chamar a atenção em feiras internacionais, acabando por ser comprada pela empresa Filstone. Neste momento, tem aplicação em painéis colocados à entrada de uma ala do Hospital da Luz, em Lisboa. E poderá ter muitas outras aplicações num futuro próximo. “Sobretudo do ponto de vista de mercado e para Portugal (ou seja, do impacto que o Técnico teve e terá a nível nacional), acho que ainda vai ter muito caminho para andar”, acredita Pedro Miguel Amaral.

 

 

Conteúdo Extra: Pedra natural + Cortiça = valorização económica nacional
«E aqui também há uma razão, também muito importante do ponto de vista de termos desenvolvido todo este processo – a pedra natural é um material de grande valorização económica para o país. Primeiro, porque temos a matéria-prima “cá dentro” de Portugal. Depois, porque todos os processos que conduzimos sobre a pedra natural são, muitos deles, feitos com tecnologia que também é portuguesa, o que significa que o valor acrescentado bruto para o país é muito, muito, muito grande.
Aliás, há umas comparações muito interessantes entre aquilo que é a indústria da pedra natural e a Autoeuropa. A indústria da pedra natural resulta para Portugal num valor acrescentado bruto idêntico ao valor da Autoeuropa. Apesar de a Autoeuropa ter muito mais valor de mercado (na perspetiva em que vende mais e tem mais transação financeira), o que deixa para Portugal é muito menor do que aquilo que a pedra natural faz em comparação, porque a tecnologia, matéria-prima e mão-de-obra são nossas, portanto temos a faca e o queijo na mão para trabalhá-la.
Ora, a indústria da cortiça tem exatamente a mesma lógica da indústria da pedra natural, o que significava que parecia quase uma espécie de “1+1=2”.
Parecia óbvio que tínhamos de fazer este caminho juntos, e foi assim que isto foi começando. Portanto, se nós formos capazes de pegar numa pedra natural e, de repente, tiramos-lhe quatro vezes o seu peso e acrescentarmos características que ela não tinha… se calhar isto tem hipótese de poder vingar. E foi um bocadinho esta a forma como nós olhámos para isto inicialmente, ainda um bocado imberbe nessa altura. Não sabíamos bem para onde é que íamos conduzir a coisa.
Toda a receita, todo o desenvolvimento que foi feito até conseguir atingir-se esta conjugação de… não só de materiais mas de características mecânicas, o próprio método de fabrico… tudo isto influencia a característica final do material, até porque muitas vezes nós ouvíamos “ah, isso de colar pedra na cortiça parece ser uma coisa simples”, e a verdade é que há muito know-how e houve muito trabalho de investigação por detrás para conseguir chegar-se às características reais que o produto consegue hoje ter.»
(Pedro Miguel Amaral)

 

Episódio 103: O 1.º equipamento 4G em Portugal

sexta, julho 21st, 2023

Quanto tempo passa entre o nascimento de uma ideia e a sua concretização? A resposta depende muito do contexto e de cada área de conhecimento. Em Telecomunicações, como arrisca Carlos Fernandes, professor do Instituto Superior Técnico e investigador do Instituto de Telecomunicações, “desde o momento em que se planeia e se concebe um conceito novo, até ele chegar a um produto que sai para o mercado, para o grande público, passam tipicamente entre 15 e 20 anos”. “Tem de se começar a pensar, a ser criativo muito antes da altura em que é suposto as coisas acontecerem”, complementa. Estes saltos no tempo levam-nos até 1992, altura em que um projeto de investigação abria caminho para o aparecimento do primeiro equipamento 4G em Portugal. “Na altura em que a segunda geração entrou em funcionamento, nós estávamos a pensar na quarta geração. A terceira já estava a ser desenvolvida na altura e já estava numa fase terminal”, recorda.
O projeto envolveu vários parceiros europeus, incluindo o Instituto Superior Técnico e pretendia criar um sistema de comunicações móveis que fosse capaz de transmitir cerca de 150 megabits por segundo por utilizador. “Na altura, quando nós pensámos neste tema (e foram vários parceiros a nível europeu), a ideia era transmitir vídeo de alta definição e não havia ideia na altura de uma aplicação que fosse particularmente interessante para o grande público”, explica. A grande ambição do consórcio, incluindo a cadeia de transmissão britânica BBC, era “verem-se livres do cabo e terem câmaras de vídeo de alta qualidade que permitissem transmitir a sua informação para a regie via rádio”. São coisas corriqueiras hoje em dia, mas na altura não existiam. Exemplos: a reportagem televisiva em direto, “sem fios”, é hoje uma prática corrente mas só se tornou norma em Portugal depois de 2010.
A possibilidade de transmitir grandes quantidades de informação, de transmitir vídeo de alta definição sem fios tornava-se uma possibilidade. Mas… “este projeto nasceu demasiado fora do tempo. Ele provou que era viável, mas o GSM (que era a segunda geração) ainda tinha muito para dar. Estava a começar, portanto ninguém iria apostar num sistema destes”, explica Carlos Fernandes. “A mesma coisa aconteceu com o 3G, depois aconteceu o 4G, e nós estamos a ver que o 5G começa só agora a apresentar características que nós já estávamos a experimentar naquela altura. Só agora é que se vislumbra uma aplicação que justifique um investimento para os operadores”, aponta.
À frente do seu tempo, como convém na investigação nesta área, e também “único no mundo”, o projeto contou com um forte contributo do Técnico a nível de hardware mas também de conceção de sistema do software. A liderança estava a cargo da companhia portuguesa “Radio Marconi” e a mensagem a transmitir é clara: “Não havia previamente qualquer outro projeto que tivesse desenvolvido algo idêntico”.

Para dar corpo à ideia era necessário construir um objeto, assim descrito: “A melhor descrição é olharmos para o astronauta, daqueles que saem das naves espaciais e que fazem as suas missões cá fora, que têm um género de caixote nas costas. Basicamente, era isso”, descreve Carlos Fernandes.
Um caixote com cerca de 1,10 metros de altura e 60 centímetros de largura, com 60 quilos, que incluía uma torra com duas lentes semicirculares e antenas (na fotografia). Tudo isto era complementado por um cinto com 12 baterias que, amarradas à cintura, alimentariam o sistema (que consumia 60 watt).
“Foram feitos vários testes previamente e houve membros da equipa que quiseram experimentar e sentir o peso. Era suportável. Eu não experimentei [risos], mas houve quem experimentasse, de facto”, recorda.
A experiência a sério foi efetuada durante a Expo 98 (ver texto extra), no então Pavilhão da Utopia (atual Altice Arena), tendo o aparelho funcionado sem falhas. “Todos nós na equipa estávamos ansiosos para ver aquele sistema a funcionar com aquela perturbação, porque o ambiente daquele pavilhão, muito grande, cheio de pessoas… não sabíamos exatamente qual é que seria o efeito no nosso sistema”, recorda.
Passados 25 anos, é abundante o número de telemóveis ao dispor dos utilizadores, reinando já a tecnologia de 5.ª geração. Mudanças de conceitos e de sistemas de comunicações à parte, é sempre bom lembrar que muito antes de podermos aceder à informação na palma das mãos, já investigadores do Técnico carregavam uma espécie de telemóvel gigante e sem teclado. O tempo entre uma ideia e a sua aplicação também pode ser, literalmente, carregado às costas.

História Extra: Uma utopia do final dos anos 90: Investigadores apresentam 4G na Expo 98
«O projeto terminou em 1998 com uma demonstração na Expo 98 no Pavilhão da Utopia (na altura era assim que se chamava). Funcionou perfeitamente e sem falhas. Todos nós na equipa estávamos ansiosos para ver aquele sistema a funcionar com aquela perturbação, porque o ambiente daquele Pavilhão, que é um pavilhão interessante, muito grande, cheio de pessoas… não sabíamos exatamente qual é que seria o efeito no nosso sistema. Obviamente que, como engenheiros, nós éramos capazes de prever que não haveria problema, mas há sempre aquela ansiedade e, portanto, naquele dia, no dia da demonstração, ficámos obviamente ansiosos à espera que aquilo funcionasse. Acabou por funcionar muito bem. Qual é que era a nossa realização, quando é que diríamos que aquilo tinha funcionado? Era quando o operador pudesse circular livremente por todo o pavilhão sem qualquer fio e manter a sua transmissão para a regie sem que houvesse qualquer quebra na transmissão e, de facto, isso aconteceu, o que nos deixou a todos bastante satisfeitos. Portanto, nessa altura, aquilo de que me lembro era a satisfação de todas as pessoas e do público, também a querer aparecer – sempre que há uma câmara, o público gosta sempre de fazer “adeus!” e é mais ou menos disso que tenho ideia.
Foi possível demonstrar com um dispositivo portável – eu não lhe vou chamar “portátil” porque o rádio que foi construído pelos diversos parceiros pesava qualquer coisa como 60 quilos e consumia cerca de 60 watt. O dispositivo era pesado, era carregado às costas por uma mochila, mas bem pesada e aquilo teve autonomia para funcionar durante uma hora no Pavilhão da Utopia. Enquanto as pessoas enchiam o pavilhão, o sinal estava a ser gravado e depois era transmitido para aquilo a que chamamos uma estação base, que estava colocada no topo do Pavilhão. Daí, por fibra ótica, era transferido o sinal para uma sala onde havia visitantes e convidados, para verem o sistema a funcionar pela primeira vez.
Nós queríamos fazer a prova dentro do Pavilhão da Utopia, transmitindo todo aquele ambiente próprio daquelas feiras mundiais, com pessoas de várias nacionalidades e um público muito generalizado, desde miúdos a pessoas adultas e de muita idade. Naquele ambiente meio de festa, as pessoas entram nos pavilhões à procura de diversidade… e quando entravam ali no Pavilhão da Utopia, estavam na expectativa de ver um espetáculo que era interessante, que tinha pessoas e, bom, parecia um bocadinho o Cirque du Soleil e era isso que planeávamos filmar. Mas depois, à última da hora, houve um problema de direitos de autor e acabámos por não poder filmar o espetáculo, mas permitiram-nos, pelo menos, filmar o ambiente das pessoas e aquilo que me lembro de ver (e que aliás está registado em vídeo) era trazer aquele equipamento que era pesadíssimo, fazê-lo “vestir” ao operador de câmara (eram precisas duas pessoas para ajudar a colocar aquilo às costas) e depois ele andar, com aquele dispositivo muito estranho por ali a filmar. Isso era muito estranho para todos.»
(Carlos Fernandes)

 

Nota:
O Desenvolvimento desta tecnologia ocorreu no âmbito do projeto MBS – Mobile Broadband Systems, (1992-1995) e do projeto SAMBA – System for Advanced Mobile Broadband Communications, (1996-1998).
O projeto MBS foi liderado pela Companhia Portuguesa Radio Marconi (CPRM) e envolveu 16 parceiros europeus: British Telecom Labs, Deutsche Aerospace AG, Thomson Semicond, Philips Microwave Limeil, Alcatel Face, Technical University of Aachen, Nowegian Telecom Res, Instituto Superior Técnico, BBC, VTT, Daimler-Benz Research, Thomson CSF-LER, Thomson CSF–RCC, Thomson CSF–CNI, Université de Lille, e CNET France Telecom.
O projecto SAMBA foi liderado pelo Centro de Estudos de Telecomunicações da Portugal Telecom, e envolveu, a Deutsche Aerospace AG, Technical University of Aachen, BBC, IMIS Conseil, Robert Bosch, TMN, Instituto Superior Técnico, Instituto de Telecomunicações, BBC, Thames TV, Daimler-Benz Research, TELENOR, Telis, and Mitsubishi Electric Co.

 

Episódio 102: A ampola de Wehnelt

sexta, julho 14th, 2023

“Eu vi um espanto de que não me esqueço nos olhos dos alunos, de verem a trajetória dos eletrões, de verem os eletrões pela primeira vez, numa experiência que nós executávamos nas aulas de Eletrónica”. A memória remonta a 1979, altura em que Carlos Ferreira Fernandes se iniciava como professor no Instituto Superior Técnico. Deu aulas até 2020, mas nenhuma memória se sobrepõe ao fascínio provocado pelas aulas em que a ampola de Wehnnelt permitia, no escuro das salas de aulas do Técnico, ver o invisível, nomeadamente ver eletrões. “É-me particularmente importante falar deste aparelho que faz parte do espólio do Museu Faraday”, reforça o também diretor executivo do Museu. “Quando estamos a falar de um átomo, um átomo tem uma dimensão, tipicamente um número com doze algarismos, portanto é um milhão de milhão de milhões de vezes inferior a um metro, qualquer coisa que é impensável. Os eletrões ainda têm uma dimensão inferior a isso”, complementa.
A explicação de funcionamento é avançada por Moisés Piedade, diretor honorário do Museu e professor aposentado do Técnico: “Estas ampolas permitem ver o trajeto dos eletrões. Eles têm energia e, quando colidem com os átomos de um gás muito rarefeito que lá está, dão luz. Quando está a ver uma lâmpada néon, destas que há por aí nos anúncios, são eletrões que estão a colidir com átomos do gás e, portanto, depois a seguir dão luz. Libertam energia dos átomos”. A experiência entusiasmou estudantes do Técnico ao longo de gerações, mas na sua origem está uma verdadeira revolução no conhecimento do mundo e da sua estrutura. É uma recriação científico-pedagógica de uma experiência realizada por Joseph John Thomson, nos finais do século XIX, que abriria caminho para uma descoberta fundamental da física que permitiria perceber que os átomos eram “feitos de coisas mais pequenas”, os eletrões. “O Thomson verificou, de facto, que eram partículas que se estavam a mover e verificou que essas partículas tinham carga. Não conseguiu determinar a carga, mas conseguiu determinar a relação entre a massa que elas tinham e a carga que transportavam. Esta experiência de Thomson originou uma série de tubos e ampolas para demonstrar esta relação entre a massa e a carga de um eletrão”, complementa.

Entre esses tubos nasceria também, na década de 50, uma ampola fabricada pela marca Leybold (Wehnelt é o nome de uma das muitas pessoas que trabalharam na criação deste tipo de ampolas) que viria tornar-se um instrumento pedagógico de relevo nas aulas de Eletrónica no Técnico até ao final da década de 80. É, assim, “uma ampola de raios catódicos (feixes de eletrões) para determinação da relação entre a massa e a carga de um eletrão”. A visualização do processo é feita através da ação de uma campo magnético externo gerado por duas bobinas à volta da ampola que criam um movimento circular dos eletrões. “Portanto, fazendo um movimento circular consegue determinar-se o raio, sabendo a velocidade com que as partículas estão (que é relativamente fácil de saber), conhecendo o campo magnético, consegue determinar-se a relação massa sobre carga”, aprofunda Moisés Piedade. É a visualização do invisível, exercício ainda hoje praticado pelos visitantes do Museu Faraday, no campus Alameda do Técnico, mantendo viva a chama que há 43 anos entusiasmou tantos estudantes do Técnico. Voltamos a Carlos Ferreira Fernandes: “Era algo inesquecível. Quando lhe digo que me recordo de uma coisa que se passou há 43 anos, isso aconteceu várias vezes. Lembro-me de os alunos dizerem “Eu vi os eletrões e eles são azuis”. É engraçado, “azuis”. Eu lembro-me do azul…”.

História Extra: As aulas no escuro no Técnico para ver eletrões
«Estas aulas (em 1979) tinham algo aliciante, eram dadas às escuras. Logo isso… Às sete da manhã, nós tínhamos de fechar as persianas porque é necessário visualizar bem a trajetória dos eletrões, e isso requer uma certa escuridão. Muitas dessas aulas eram também apontadas para a noite. As aulas não decorriam completamente às escuras e, portanto, podíamos recorrer a alguma fonte de luz. Permitia-se aos alunos que vissem e fizessem algumas medições. Era uma aula de demonstração, precisamente por envolver um grande número de alunos e nós não termos essa peça em quantidades suficientes para cada grupo fazer o seu trabalho. Funcionava assim: o que nós púnhamos era um problema que, na verdade, tinha uma realização prática que eles iam fazer imediatamente a seguir. A aula tinha essas duas componentes: estão a fazer um problema e vão vê-lo. Mas quando vão vê-lo, não é uma simulação (porque pode simular-se). Não, era mesmo a realidade – eles iam ver a trajetória de partículas que tinham uma dimensão inferior à dos átomos. Quando estamos a falar de um átomo, um átomo tem uma dimensão, tipicamente um número com doze algarismos, portanto é um milhão de milhão de milhões de vezes inferior a um metro, qualquer coisa que é impensável. Os eletrões ainda têm uma dimensão inferior a isso. Ora, o ar deles, de verem, verem, não é uma coisa que é simulada, detetarem a presença de algo que é pequeno comparado com um átomo. E podíamos fazer uma experiência, manipulando o tal aparelho, fazendo com que a visualização deixasse de ser possível, desaparecesse. Eles deixavam de ver o eletrão. Mas eles estavam lá, e essa era a situação que era normal. Normalmente, não se vê. Isso ainda dava ‘mais sala’ à aula porque eles diziam assim: “afinal, quando estamos a vê-los, é porque estão lá. Mas quando deixamos de vê-los eles estão lá na mesma”»
(Carlos Ferreira Fernandes)

 

Episódio 101: As bolachas de silício

sexta, julho 7th, 2023

Têm a forma de uma bolacha, são redondas e aparentemente planas (vistas de longe), mas não são para comer. Observadas de mais de perto, apresentam “pepitas”, não de chocolate ou de outra iguaria, mas feitas de microcircuitos constituídos por diferentes materiais que as tornam alimento para diversas aplicações tecnológicas. Convidamos Susana Freitas, professora do Instituto Superior Técnico e investigadora no Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Microssistemas e Nanotecnologias (INESC MN), a selecionar alguns exemplos: “um sensor que possamos colocar na falange de um robot para detetar a pressão e a força com que segura num objeto; um sensor que detete a quantidade de hidrogénio no ar à nossa volta…”. A lista de possibilidades é quase infinita. “Podemos desenhar o que nós quisermos e na própria bolacha nós podemos escolher os desenhos. Temos ferramentas digitais que nos ajudam a desenhar os circuitos, os níveis que queremos, a geometria que queremos e escolher os materiais. Depois combinamos esses materiais e esses desenhos de uma maneira diferente e, se forem compatíveis, podem ser processados, microfabricados na mesma bolacha”, descreve.
A bolacha de silício (um elemento químico semimetálico e um dos mais abundantes na terra) é, desse modo, uma espécie de tela em branco que dá aos investigadores possibilidades infinitas de aplicações através da criação de circuitos (ouvir episódio 63 – O primeiro circuito integrado português). A arte final plasmada nessa “tela” não é estética mas sim tecnológica. “Quando o sensor funciona bem, cumpre uma série de requisitos físicos, ou seja, cumpre as equações físicas que regem o seu funcionamento e a beleza também está aí”.
A arte desenvolvida nas bolachas de silício do Técnico, assenta em blocos maciços de silício com “algumas contaminações intrínsecas” que permitem mudar as propriedades elétricas. É em cima disso que se acrescentam as “pepitas” ou se faz a escultura, de acordo com a metáfora preferida. “Fazemos camada a camada com diferentes materiais, que têm propriedades todas elas muito diferentes umas das outras e que nós escolhemos e customizamos e desenhamos para fazer o propósito que nós lhes queremos dar”, explica Susana Freitas.

O processo exige cuidados especiais, como trabalhar com superfícies lisas e planas, como o são as bolachas, sendo mais fáceis de manusear para dentro de máquinas ao longo do processo. Facilitam também a colocação de camadas de material (átomos) em cima dessa base. Este trabalho minucioso de construção dos sensores é elaborado em contexto de sala limpa, um ambiente controlado onde se tenta evitar a interferência de partículas presentes no ar.
Na sala limpa do INESC-MN, junto ao campus Alameda do Técnico, é feito esse trabalho, também aberto aos estudantes da Escola. “Temos dado formação em ambiente de sala limpa e ensinamos os alunos a desenhar os sensores, a escolher os materiais, a perceber como é que se faz esse empacotamento dos vários níveis uns em cima dos outros, nas placas de silício (e em placas de outros materiais)”, descreve.
Para além da investigação dirigida à indústria tecnológica, cumpre-se assim o papel de a direcionar para o meio académico. “A formação de alunos é muito importante nestas áreas e os alunos têm de poder experimentar variando, testando, alterar as dimensões e ver qual é o efeito”, descreve Susana Freitas. É, de resto, uma missão que considera uma grande responsabilidade: “não estragar aquilo que recebi mas, mais do que isso, fazer mais ainda e passar o testemunho aos outros”. É a filosofia que aplica para tentar contaminar com esse entusiasmo os estudantes à sua volta. Só dessa forma se valoriza o caminho que veio desde circuitos pioneiros em Portugal até ao poder que hoje significa ter nas mãos as ferramentas para fazer circuitos e sensores cada vez mais evoluídos. Só assim se garante que o conhecimento não fica retido na bolacha.

close navigation
close Search